Vila Nova de Gaia arrancou, em Fevereiro, com o processo de revisão do seu Plano Director Municipal (PDM). Durante 24 meses, os responsáveis e técnicos municipais vão olhar para o território, dialogar com os actores e adequar aquele que é o principal instrumento de gestão territorial da cidade às exigências regulamentares e aos desafios que se avizinham. Para isso, o município está implementar um modelo de participação pública que convoca toda a população para a construção colectiva do futuro da cidade.
Em Fevereiro, ainda antes do deflagrar da pandemia de Covid-19 em Portugal, foi dada luz verde ao arranque do processo de revisão do PDM de Vila Nova de Gaia, em vigor desde 2009. Durante os próximos dois anos, a empresa municipal Gaiurb vai ser a entidade responsável pela revisão deste instrumento de gestão territorial (IGT), preparando um documento que permita ao município responder aos desafios actuais e futuros do território, assim como aos anseios e necessidades da população.
Para assegurar que tal acontece, Gaia vai seguir um modelo de revisão diferente do convencional e convida os cidadãos a dialogar e participar em todo o processo, contando com a ajuda da Universidade de Aveiro. Ao longo de todo este processo, será colocada em marcha uma experiência de participação pública que assenta em três fases: diagnóstico colaborativo, apresentação de propostas e experimentação dessas propostas. “O objectivo é o de reforçar a preocupação em construir um plano colectivo que conte com a contribuição activa dos gaienses na discussão de áreas fundamentais, projectando um futuro no qual todos participem e se revejam”, afirma António Castro, presidente do conselho de administração da Gaiurb.
“Queremos ir muito além dos momentos obrigatórios de participação e convocar para este processo os vários agentes – não só os expectáveis, mas também os cidadãos”, reforça Luísa Aparício, directora municipal de Urbanismo e Ambiente. Até 7 de Agosto, decorreu o período de participação preventiva, mas a “ideia é convocar os agentes ao longo do processo de elaboração do plano e para os vários momentos”. Mesmo em contexto de pandemia, esse trabalho já começou a fazer-se com a organização de sessões em videoconferência e, mais recentemente, algumas presenciais com técnicos internos e externos, juntas de freguesia, entre outros, mas sempre “com o distanciamento obrigatório”, garante. De seguida, foram agendadas sessões com a comunidade educativa e colectividades, numa tentativa de chegar ao “público mais diversificado possível”.
Com esta revisão, Vila Nova de Gaia entra na terceira geração de PDM, reflectindo a obrigatoriedade que decorre da Lei de Bases Gerais da Política Pública de Solos, de Ordenamento de Território e de Urbanismo (2014) e do Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (2015), e que deveria ter sido efectuada pelos municípios até 13 de Julho deste ano – um prazo que tem sido difícil de cumprir para a generalidade dos municípios. Por exemplo, na região Norte, no início deste ano, apenas oito municípios tinham já um PDM de 3ª geração, 42 estavam em fase de revisão e um em processo de alteração, de acordo com a CCDR-N.
As novas regras trazem também novidades naquilo que consta no PDM, explica Cláudia Montenegro, directora do Departamento de Urbanismo e Planeamento da Gaiurb. “As alterações legislativas trazem-nos um quadro para um PDM muito mais operacional com uma gestão efectiva de recursos. Vai ter de se pensar na programação, execução, financiamento, e estas situações têm de estar articuladas”, refere. “Queremos aproveitar isto [revisão] para aceitar os desafios que se colocam ao ordenamento do território e que estão alinhados com os sinais de agravamento da crise climática, o actual modelo de crescimento económico, um consumo cada vez maior de recursos, etc., e é nestas problemáticas que vamos trabalhar mais. Alterações climáticas, riscos – incluindo os biológicos –, mobilidade sustentável, eficiência energética, todos estes são temas de grande importância e que vão ser articulados”.
Falar de território e não de PDM
Para a grande parte dos cidadãos, o PDM não é mais do que um documento que define onde se pode ou não construir e o quê. Todavia, este IGT é muito mais do que um manual com as regras do jogo do município. “O ponto transversal do PDM é a vida das pessoas”, exclama Luísa Aparício. “Até no universo municipal, há a ideia de que o PDM só diz respeito ao urbanismo. Queremos desmontar esse conceito – o PDM não é só do urbanismo; é de todos”.
Passar esta mensagem às pessoas e envolvê-las no processo de revisão é um “grande desafio” para o qual o município de Gaia vai dispor da colaboração da Universidade de Aveiro, que tem já experiência na dinamização da participação pública em processos semelhantes, tendo participado na revisão do PDM da Maia. “Somos os mediadores dos cidadãos para que as suas preocupações e anseios sejam vertidos no PDM”, explica José Carlos Mota, docente e investigador da U. Aveiro. E, para aproximar os cidadãos deste processo, “não se fala em PDM, fala-se em território, no qual eles são especialistas”.
Na primeira fase, os cidadãos foram convocados através da partilha quer das suas memórias, quer das suas expectativas para a cidade. “Queremos que as pessoas valorizem aquilo que foram as histórias de vida no território e, de alguma forma, recuperar as memórias felizes e experiências positivas de um território, que, obviamente, já não é igual ao passado, mas o que as pessoas gostariam de ver numa espécie de regresso à origem – o brincar no espaço público; a ligação com a natureza, espaços verdes, linhas de água; a ligação de vizinhança e o encontro no espaço público – e a pandemia mostrou a importância desses laços!”, exclama José Carlos Mota.
A partir destas referências, recupera-se o futuro de alguns desses elementos e, feito um diagnóstico, chega-se, depois, à “agenda dos cidadãos”. Trata-se de uma compilação de propostas que obedecem, também elas, a requisitos. “O processo participativo não é de auscultação de cidadãos, mas de escuta dos cidadãos e dos responsáveis técnicos e políticos, é uma aprendizagem”, sublinha o investigador.
Neste exercício, desde o diagnóstico à experimentação das propostas, Luísa Aparício vê várias vantagens para o lado técnico, já que, ao mesmo tempo que se está a dar conhecimento às pessoas dos projectos em curso, cria-se a possibilidade de integrar as novas propostas no que está programado. Além disso, aponta, é também uma forma de capacitar os cidadãos com competências para que estes possam fazer uma apreciação crítica das propostas apresentadas pelos técnicos.
Ainda que prevista por lei, a participação pública em processos como a revisão de um PDM está pouco oleada em Portugal. Formas de dinamizar essa participação estão a ser experimentadas e, não obstante a experiência, para a U. Aveiro, este continua a ser um processo de “investigação-acção”. O contexto de pandemia torna o caso de Gaia mais desafiante, pois coloca constrangimentos aos métodos e, até ao nível da elaboração do plano, vai obrigar a pensar em novas soluções.
Para que o processo funcione, José Carlos Mota lembra que “há que permitir que haja uma reflexão estratégica política sobre o futuro do território”, não podendo haver demissão dessa componente. Técnicos e cidadãos têm de dialogar, participando num “exercício de aprendizagem em que todos possam sentir que estão a contribuir e a aprender”. Porém, não há posições dominantes – “nem de políticos, nem de técnicos, nem de cidadãos. Garantindo esta horizontalidade, estou convencido de que os resultados serão muito melhores, as pessoas vão querer participar e estas chamadas são consequentes e justas, porque o resultado não é frustrado, nem vai ao contrário daquilo que elas puderam sugerir”.
Por fim, importa perguntar: o que se ganha com um processo de revisão de PDM mais participado? No caso concreto de Gaia, a experiência está alinhada com as ambições do município. “Vila Nova Gaia tem uma forte ambição em afirmar-se como cidade inteligente, resultante do contributo individual e colectivo dos seus protagonistas – os cidadãos, que são, cada vez mais, chamados a intervir no processo que projecta e planeia a cidade onde viverão no futuro”, afirma António Castro. Para o responsável da Gaiurb, o processo participativo é “uma ferramenta estruturante para o investimento no legado municipal [que] permite cruzar diferentes visões de um território heterogéneo que quer afirmar a sua capacidade funcional numa perspectiva sustentável e de criação de valor para as gerações futuras”.
Enquanto mediador dos cidadãos no processo, José Carlos Mota sublinha ainda o reconhecimento de recursos que, até então, a sociedade tende a não valorizar, como os saberes, as histórias de vida ou a resiliência da comunidade. Ao mesmo tempo, o valor do colectivo e o sentido de experimentação que se ganham podem ser fundamentais para definir o futuro, transformar o que é necessário e cometer menos erros, conclui o especialista.
Este artigo foi originalmente publicado na edição nº 28 da Smart Cities – Julho/Agosto/Setembro 2020, aqui com as devidas adaptações.