Paris podia ser uma cidade qualquer, mas não é.
À boleia do projecto na UNESCO, pude contactar com o programa do município “Les Parisculteurs”, que arrancou já durante a liderança da sua presidente Anne Hidalgo e revolucionou toda a cidade. Com o “Les Parisculteurs”, todo um ecossistema para a promoção da vegetalização, da agricultura urbana e da biodiversidade se propagou pela urbe. O que Paris percebeu (e fez) com o projecto “Les Parisculteurs” foi criar oportunidade para que toda a cidade se envolvesse e fizesse parte da solução para o próprio sistema agroalimentar. Surgiram pequenas hortas e quintas, criaram-se associações e empresas, várias comunidades de cidadãos se envolveram e estabeleceram uma relação com o serviço de ecossistema que mais necessita ser valorizado – o aprovisionamento alimentar.
Pertencendo ao grupo das Megacidades do mundo, a dimensão dos problemas de Paris para a redução de emissões, para a sustentabilidade, resiliência e bem-estar da sua população é enorme. Com o Pacto Ecológico Europeu, verifica-se a tendência de apostar nas energias renováveis, nos transportes, na digitalização, sendo anunciados projectos de milhões de euros. Mas Paris parece ver mais longe que todos os outros e talvez por isso lhe chamem a Cidade da Luz. Talvez seja essa luz que ilumina Anne Hidalgo a ver aquilo que outros ainda não viram.
A neutralidade carbónica sem um sistema alimentar sustentável é uma miragem. Não agir sobre o sistema alimentar da cidade é ignorar o maior problema ambiental, sendo que este, por si só, é responsável por cerca de um terço das emissões de dióxido de carbono e a maior causa para a perda de biodiversidade no planeta.


Em Paris, surgiram pequenas hortas e quintas, associações, empresas e várias comunidades de cidadãos que participam hoje no sistema agroalimentar
Os estudos demonstram que, de todos os serviços de ecossistemas, o menos valorizado pela população urbana é o serviço de aprovisionamento alimentar. Não é de admirar – quando fazemos incursões rurais vemos paisagens naturais, entramos em contacto com a natureza, a floresta, os rios e com sorte até com a vida selvagem, mas raramente conhecemos quem produz o nosso alimento, como é produzido e de que forma a cadeia de valor funciona. Vivemos distantes da origem do alimento, conhecendo (e, por vezes, mal) apenas quando nos é apresentado no prato. Limitamos a nossa avaliação e valor à experiência olfativa, gustativa e visual. Como valorizar sem conhecer, sem compreender, sem distinguir? O que “Les Parisculteurs” faz é envolver toda a população nas três dimensões do problema: a produção, a distribuição e o consumo alimentar. Não sendo possível aqui dissertar extensamente sobre um assunto tão complexo, abordarei brevemente estas três temáticas, procurando focar-me nas soluções e caminhos.
A produção – o modelo de produção alimentar deverá ser assente nos princípios da fertilidade do solo e da biodiversidade. A agricultura biológica é, sem dúvida, um dos caminhos; mas a ciência, o conhecimento, a inovação e a tecnologia são fundamentais para produzir de forma mais eficiente, com precisão e recorrendo a soluções de base natural. À data de hoje já é possível – através de tecnologia como Deep Root Irrigation (DRI) -, reduzir em 50% o consumo de água, com sensorização e tecnologia drone podemos saber exatamente onde existe uma doença ou uma praga, atuando cirurgicamente e reduzindo a aplicação de pesticidas e fungicidas.
A distribuição – Diz-se que no meio é onde está a virtude, mas nos sistemas agroalimentares é no meio onde encontramos o maior problema. Ancestralmente, o dono do maior celeiro concentrava em si o poder sobre a aldeia e, hoje, o cenário não se alterou assim tão radicalmente. Urge resolver este ponto e, para tal, conheço apenas um caminho: Transparência em toda a cadeia de valor, atuando sobre três pontos essenciais no sistema agroalimentar. Necessitamos de um alimento limpo (isento de químicos), justo (em que todos são retribuídos de forma justa pelo seu trabalho) e bom (para a saúde e para os ecossistemas).
Precisamos também de ser capazes de responder, sempre, ao longo de todo o sistema agroalimentar e em cada momento, a três questões-chave: 1. Quem produz o nosso alimento?; 2. Como é produzido?; 3. Como se distribui o valor do produto na cadeia e o lucro?
O consumo – Como grande consumidora de alimentos e produtora de resíduos orgânicos, a cidade necessita ligar-se ao campo através de cadeias curtas de distribuição e economia circular, garantindo o retorno da matéria orgânica à terra.
Devemos também lembrar a expressão Consumer drives que, de facto, corresponde a uma grande verdade. Se da produção à distribuição recebemos alimentos de baixa qualidade e com grande impacto ambiental, é porque exigimos pouco como consumidores. Por isso, a educação e literacia alimentar são tão importantes. É desde o berço que devemos promover uma nova visão sobre a alimentação – para um crescimento saudável, sim, mas também pensando na relação com o território. O vinho verde do Alto Minho, as cerejas do Fundão, a alfarroba do Algarve não são apenas alimentos que extraímos da terra, têm também uma dimensão histórica e até espiritual. Não conhecer a base alimentar de um país é não conhecer a sua cultura, a sua paisagem, as suas tradições e as suas gentes. Ouso dizer que, quem não sabe o que come, não sabe quem é!
Em tudo isto se exige liderança, exemplo. À semelhança da Câmara de Paris, os municípios têm um grande poder de influência. Nas suas mãos estão as cantinas escolares e a responsabilidade de contratar serviços alimentares ou fornecimento de alimentos.
As regras da contratação pública não impedem, de forma alguma, que se introduzam critérios além do preço aquando da contratação de serviços alimentares. Esse trabalho tem sido feito, de forma exemplar, por dois municípios no país – Porto e Torres Vedras – apesar das abordagens políticas distintas. O denominador comum é a vontade política que, existindo, permite que sejam dados passos seguros e consistentes no caminho certo. A partir do exemplo e da liderança municipal, naturalmente todo o sistema agroalimentar da cidade é influenciado, permitindo às entidades privadas usufruir e tirar partido do novo modelo criado.
A ideia é simples: produção mais sustentável e biológica, circuitos mais curtos de distribuição, maior biodiversidade e mais transparência do campo ao prato. Como se faz? Essa é a questão, que apesar de ter resposta, leva mais tempo do que as palavras que aqui deixo. E sendo esse um dos grandes propósitos e contributos que procuro dar nas organizações com que tenho o prazer de trabalhar, aqui só me é permitido tentar mudar a cidade pelas palavras. Fiquem cientes de que uma das grandes mudanças necessárias tem que ser feita pela boca!
Fotos: Cortesia Noocity
Este artigo foi originalmente publicado na edição n.º 46 da Smart Cities – janeiro/fevereiro/março 2025