Fixar o limite máximo de velocidade nos 30 quilómetros/ hora e limitar o número de carros dentro das cidades são medidas fundamentais para garantir a segurança de ciclista e peões, defende Mário Alves. Presidente da Associação Estrada Viva e um dos fundadores da MUBi, Associação pela Mobilidade Urbana em Bicicleta, lamenta falta de liderança política e de investimento para fazer da estratégia ciclável e pedonal uma realidade nas estradas nacionais. 

Por que razão a bicicleta é ainda tão pouco utilizada em cidades de Portugal em comparação com outras cidades europeias? 

Questões culturais. Portugal teve um aumento da motorização, isto é, do número de carros por mil habitantes, muito tardio em relação à Europa. Nos anos 80 e 90, muita gente adquiriu carro pela primeira vez. E devido a isso há uma certa paixão e vontade de andar de carro. Há outras razões… Há 30, 40 anos, os autocarros da Rodoviária Nacional iam quase a todas as estradas nacionais. Hoje em dia, estamos numa situação em que as redes rodoviárias estão privatizadas e oferecem serviço nas zonas e nas estradas com maior procura. Há muita gente isolada em zonas rurais e para a qual a opção é ter carro.  

Que medidas e investimentos são necessários para colocar mais pessoas a andar de bicicleta?

Começar por reduzir o número de automóveis. Isto consegue-se com planos de mobilidade e com restrições ao uso do automóvel dentro das zonas urbanas, como por exemplo com a redução do estacionamento pendular. A redução do número de automóveis também tem grandes virtudes para a saúde pública, para a qualidade do espaço público, para os nossos pulmões, para os nossos ouvidos e para a segurança. É extremamente importante. O segundo ponto é a redução da velocidade. Portugal assinou o protocolo da Declaração de Estocolmo, há cerca de quatro ou cinco anos, a dizer que onde havia peões e bicicletas que se misturavam a velocidade máxima deveria ser 30 quilómetros por hora (30km/h). Há dois anos, o governo espanhol decretou que 70% das vias urbanas são 30 km por hora. 

Reduzir a velocidade é fundamental… 

No resto da Europa, para lá de Badajoz, já se trabalhou muito a redução de velocidades, com medidas de acalmia de tráfego: gincanes, redução das vias, plataformas para os peões e para pessoas em cadeiras de rodas poderem atravessar em segurança. Tudo isso ajuda a reduzir as velocidades. A partir do momento que reduzimos o número de carros e as velocidades, passa a ser muito mais convidativo andar de bicicleta. Temos de assegurar também muito mais a segurança nas interseções – 80% dos sinistros de bicicletas acontecem nos cruzamentos. E muitas vezes as ciclovias protegem onde é mais seguro, que é vias retas, e depois chegam às interseções e abandonam o ciclista à sua sorte. Simplificando: o problema são as interseções, interseções, interseções. É talvez a parte mais importante em termos de acalmia de tráfego em zonas urbanas. Se mesmo tudo isso não funcionar, então teremos de ir, de facto, para as ciclovias quando houver espaço. 

Que retrato faz das vias cicláveis nas cidades portuguesas?

Estamos a aprender, está a haver esforços. Às vezes sinceros, outras vezes menos. Está a haver algum financiamento por parte da administração central, mas está a fazer-se ainda muito pouco. Principalmente quanto à ideia de reduzir velocidades e aumentar a segurança, porque não vamos conseguir fazer ciclovias por todo lado e vai ter de haver um aumento da segurança nas ruas dos municípios e estradas.  

E das ciclovias? 

Estou a avaliar municípios por causa do concurso Eco XXI, da bandeira verde. E noto que há muitas ciclovias em cima do passeio, muitas mal feitas, principalmente quando chegam aos cruzamentos, que é o sítio mais perigoso e abandonam o ciclista. Há muito, muito a aprender. Mas acho que a ação terá de se começar a dirigir mais para as acalmias de tráfego, porque nem toda a gente vai ter uma ciclovia da origem ao destino.  Já fizemos muito pior. Mas, infelizmente, continuamos a fazer a maior parte das vezes mal… Faz parte de um progresso. 

Estas medidas estão contempladas na Estratégia Nacional para a Mobilidade Ativa Ciclável?

A Estratégia Nacional para a Mobilidade Ativa Ciclável é da administração central, isto é, não tem poder direto sobre os municípios que gerem o espaço público, as ruas e as estradas municipais. A administração central não tem um poder direto para dizer aos municípios aquilo que têm de fazer, nem onde têm de gastar dinheiro. Estes planos são muito, muito importantes, mas não é para obra física no espaço público. Podem incentivar, financiar, encorajar, publicar manuais, mas não há obra direta. 

O financiamento aos municípios é importante para passar dos planos à obra?

A administração central pode financiar obras diretas dos municípios, através de programas de apoio. O problema da Estratégia Nacional para a Mobilidade Ativa Ciclável é que está extremamente atrasada. Começou um pouco antes da pandemia de covid-19, mas não tem havido liderança política, nem investimento do orçamento do Estado para que haja uma equipa, como deve ser. Neste momento, estão quatro pessoas a trabalhar nas duas estratégias, tanto a pedonal como a ciclável, quando, se fizermos contas, devia haver 20 em Portugal. Podemos não ambicionar ter 20 pessoas a trabalhar nas duas estratégias, ou numa delas, mas podemos ambicionar 10. Há muito pouco investimento ao nível de recursos humanos para avançar com a estratégia. 

Além da falta de recursos, que mais está a falhar? 

Foto: © João Beijinho

Também não há recursos para implementar a estratégia, as medidas que estão previstas na estratégia, os tais apoios aos municípios, campanhas culturais para mudar dependência do automóvel. Há aqui dois fatores importantes: um é fazer a estratégia e o outro é implementar a estratégia. Não tem havido liderança política, de maneira que se financie com recursos humanos, financeiros. Só para ter uma ideia da pobreza em que estamos, em termos de financiamento, todos os dias, à hora do almoço, a Irlanda já investiu o mesmo que nós investimos em 2023. A Irlanda tem metade da população de Portugal. Estão a investir um milhão de euros por dia, 360 milhões por ano. Não estamos a exigir que façamos o mesmo, que a Irlanda tem mais dinheiro, mas, quer dizer, estamos aqui a falar de ordens de grandeza totalmente diferentes. 

Depreende-se daquilo que diz que as autarquias também estão a fazer pouco 

Falta esse incentivo da administração central para que as autarquias façam mais, porque se houvesse mais apoio poderia haver muito mais ações por parte das autarquias. E não havendo, as autarquias também acabam por não seguir essa liderança. Falta liderança política, não havendo liderança política ao nível da Administração Central, as autarquias depois também têm mais dificuldade, tanto financeira como até de incentivos políticos para o fazer. 

As autarquias também têm pouca vontade de atentar quanto aos direitos dos automobilistas. Concorda? 

As pessoas têm de começar a perceber que a liberdade de uns implica a liberdade de outros. Uma criança não pode ir a pé ou de bicicleta para a escola para uns terem mais liberdade. Às vezes, digo que a liberdade de uns acaba nos meus pulmões, porque a poluição provocada pelos automóveis provoca doenças gravíssimas; a lista é extensa. Já há casos de tribunal contra o Estado por causa da poluição, em Inglaterra e em França. 

Considera que existe tensão entre os automobilistas, os ciclistas e os peões?

Claramente. Não é, às vezes, tão mau como pensamos, principalmente em relação à bicicleta, que é visto como um meio de transporte extremamente perigoso. Ando de bicicleta diariamente e nunca tive qualquer problema muito grave. A questão dos atropelamentos é extremamente grave, principalmente para crianças e idosos. Estatisticamente, Portugal é dos países que têm mais problemas ao nível das zonas urbanas, principalmente, ao nível de atropelamentos. As tensões existem, mas também têm muito a ver muito com a falta de democracia na divisão do espaço público. Estamos aqui numa situação em que o espaço público também induz a que haja tensões. 

Voltamos à questão da diminuição da velocidade. 

A partir do momento em que há “cidades 30”, essas tensões diminuem bastante. Em Pontevedra, por exemplo, as velocidades a 30 km por hora permitem um diálogo visual entre o peão, a bicicleta, o condutor e é muito mais seguro. As distâncias de travagem também são muito mais pequenas. Os sinistros acabam por não acontecer, tanto a nível da frequência, como da gravidade. É um facto que em Portugal temos uma tensão que não deveria existir. 

Atribuiu esta animosidade à falta regulamentação?

A regulamentação é importante e poderia aumentar a civilidade e a cordialidade dentro do espaço público. No código da estrada, lutei bastante, a MUBI e a Estrada Viva também, para que houvesse uma revisão, em 2014. Até então, a bicicleta era obrigada a ir junto ao lancil, que é extremamente perigoso para circular, encostada e junto a sarjetas que têm zonas com folhas sujas, vidros. Indo junto ao lancil, somos sujeitos a razias. E ultrapassavam-nos na própria via onde circulávamos. Isso é ilegal neste momento. Uma via, por definição do Código de Estrada, é para a circulação de um só veículo, de cada vez. O veículo, tal como está no Código da Estrada, desde 2014, e depois da nossa luta, tem de ocupar a via adjacente quando ultrapassa uma bicicleta. Isto são regulamentações e ainda bem que se fez. Mas se não houver fiscalização, e se não houver uma batalha cultural ao nível da informação, com anúncios televisivos, cartazes, trabalhos nas escolas acaba por ser uma letra morta.  A regulamentação é extremamente importante, mas temos também de fazer a tal reviravolta cultural, de maneira que sejamos gentis, cordiais uns com os outros. 

E ainda guarda essa esperança de um dia chegarmos lá? 

Sim, claramente. sou uma pessoa otimista. Um otimista da vontade, é isso que nos faz mover na vida. Já tenho idade suficiente para ter assistido a muitos progressos. Havia coisas que lutávamos há 10, 20, 30 anos que hoje já aconteceram. É sempre um movimento. As coisas estão sempre a melhorar. Agora, também faz parte da atividade técnica e política estarmos sempre insatisfeitos. Temos de estar sempre com a corda esticada, de maneira que possamos sempre, sempre, sempre puxar pela carroça. 

Falou do caso da Irlanda. Que outros bons exemplos internacionais é que podemos evocar quando falamos no bom uso da bicicleta? 

Se nos focarmos na bicicleta, vou excluir desde já a Holanda e a Dinamarca, porque são muito diferentes, começaram esta transformação há muitos anos. Por exemplo, em Paris e Londres houve uma grande vontade para reduzir velocidades. Neste momento, grande parte da cidade de Paris é a 30 km por hora. Em Bruxelas vive um milhão e 300 mil pessoas dentro de uma zona 30. Quando achamos que as zonas 30 têm de ser em bairros, Bruxelas demonstra o contrário e quase toda a área central da cidade é a 30 km por hora. Londres aumentou imensamente o número de pessoas em bicicleta. Do ponto de vista pedonal, temos Viena, que é extremamente positiva na questão do transporte público. Zurique tem um transporte público muito bom. Estarão, assim, os exemplos que poderei imaginar. Aqui perto de Portugal, temos Pontevedra. Aconselho toda a gente a ir visitar Pontevedra, é um exemplo de uma cidade de 30. 

Nunca se falou tanto de mobilidade, aliás, é algo que está inscrito no discurso político, mas quem olha para o trânsito das cidades, designadamente Lisboa e Porto, percebe que tardam soluções. Há falhas nos planos de mobilidade? 

Há muito poucos planos de mobilidade e muitos não estão publicados ou aprovados. Quando muda a Câmara, por exemplo, o plano de mobilidade que estava a decorrer fica a meio caminho e acaba nas areias movediças. Não há concertação política. A Assembleia Municipal devia aprovar, toda a vereação devia aprovar. Muitas vezes não têm um plano de ação com calendário e com orçamentação. Se tivessem, tanto a oposição política, como a sociedade civil podiam pedir contas. 

É preciso dar a palavra às pessoas? 

Ao nível da participação pública, temos de começar a ouvir muito mais as pessoas numa fase inicial do planeamento, dos projetos. Não é perguntar às pessoas quando as coisas já estão feitas. Temos de começar a planear a longo prazo. Há medidas que poderão ser impopulares e os planos permitem explicar às pessoas por que são necessárias e misturar medidas populares e impopulares. Houve medidas excelentes ao nível da redução tarifária dos transportes públicos. 

O transporte público é fundamental… 

O transporte público é a espinha dorsal das grandes cidades. É por aí que temos de investir. Com o PRR, e apesar dos atrasos, parece que finalmente Portugal está a investir em ferrovias e em transporte público. Parece estar a haver vontade de investir no transporte público. Outra questão positiva em relação ao transporte público é o PART, que é o Programa de Apoio à Redução Tarifária, que foi muito, muito importante para as zonas metropolitanas e para outras zonas do país. Mas falta um elemento essencial, que é mais autocarros, mais frequências, mais corredores bus, mais conforto. E outra coisa, que é, ninguém voa para paragens de autocarro, nem para estações de comboio. Portanto, as bacias de retenção, isto é, 500, 700 metros em torno das grandes interfaces, deviam ser extremamente confortáveis, com árvores, bancos, ser seguro para andar a pé e de bicicleta para conseguirmos chegar lá, pôr a bicicleta ou então entrar no comboio e vir para o trabalho. Muitas vezes, as grandes interfaces são rodeadas por um chamado “park and ride”, um parque dissuasor, que é um oceano de lataria ao sol e ninguém gosta de ir a pé pelo meio dos carros para chegar à estação de comboio. 

O próprio plano de mobilidade pode cumprir uma função de pedagogia, explicando às pessoas até as virtudes de uma rede mais diversificada para se deslocarem, não? 

Um plano, no fundo, tem sempre uma visão. E uma visão é uma história positiva, otimista do futuro. As pessoas vão ter de participar nessa visão, os políticos vão ter de acreditar nela, porque vai haver sempre medidas positivas, populares, e outras menos populares. Mas se tivermos uma visão que seja otimista e que seja positiva, as pessoas acabam por aceitar que temos que por vezes, de fazer sacrifícios, dar um passo atrás para dar dois à frente, por exemplo, faz parte da vivência humana. 

Engenheiro em luta pela felicidade e liberdade de andar de bicicleta

Especialista em mobilidade, Mário Alves usa a bicicleta diariamente “para ir a todo o lado”. Gosta da sensação de liberdade e do prazer que sente quando pedala pela cidade de Lisboa. A década que viveu em Londres fê-lo “deixar de ter medo da chuva”, pelo que enfrenta a pluviosidade “com uma certa liberdade e felicidade por estar debaixo dos elementos”. E é pela possibilidade dessa liberdade e felicidade que luta em várias frentes. Engenheiro civil pelo Instituto Superior Técnico, especialista em transportes e mobilidade com o grau de mestre pelo Imperial College London, Mário Alves trabalhou no Centro de Sistemas Urbanos e Regionais da Universidade Técnica de Lisboa e no Centre for Transport Studies of the University of London como Investigador Associado.

Foi consultor em vários projetos de mobilidade, trabalhou para a Comissão Europeia e foi membro do painel de especialistas da Direcção-Geral de Energia e Transportes da Comissão Europeia. É presidente da Associação Estrada Viva – Liga de Associações pela Cidadania Rodoviária, Mobilidade Segura e Sustentável, membro da direcção da MUBi (Associação pela Mobilidade em Bicicleta) e secretário-geral da Federação Internacional de Peões. 


Este artigo foi originalmente publicado na edição nº 45 da Smart Cities – Outubro/Novembro/Dezembro 20234.