Os mais recentes desafios que as cidades enfrentam trouxeram uma questão essencial: como (re)desenhar um espaço público de qualidade, mais inclusivo, sustentável e inteligente? Devolvendo a rua às pessoas, respondem os especialistas, que defendem uma cidade para todos, partilhada, e não uma “cidade-túnel” dominada pelos carros. Renaturalização, perspectiva de género e analítica urbana são outros temas chamados à praça pública.
Com a pandemia de Covid-19 e o cenário quase distópico criado pelo isolamento, surgiu uma nova oportunidade para repensar o espaço público. Se a isso juntarmos as actuais crises climática, económica e social, parecem reunidas as condições para uma nova era na cidade. A questão que se coloca agora é clara, mas ao mesmo tempo complexa: como desenhar um espaço público mais inclusivo, sustentável e inteligente? Pelo menos, num ponto, todos os especialistas estão de acordo: nos nossos dias, não basta criar (ou recriar) espaços públicos, esperando que as dinâmicas das cidades façam o resto e lhes tragam vida. Para que isso aconteça, é preciso que as cidades tenham qualidade e, como tal, os espaços públicos devem ser acessíveis a todos, independentemente da idade, do género, do grau de locomoção ou de qualquer outro tipo de condição. Devem ser seguros, confortáveis e funcionais, livres de barreiras e de poluição, com cada vez mais pessoas e menos automóveis. O grande desafio passa por conseguir juntar (e negociar) tudo isso.
ESCUTAR A RUA, EQUILIBRAR O ESPAÇO
Como melhorar o desenho da rua tem sido, precisamente, um dos temas essenciais dos webinars The Future Design of Streets, que desde 2020 convocam especialistas nacionais e internacionais para debaterem o futuro do espaço público urbano. Conceitos como humanização, co-criação, proximidade e diversidade têm estado omnipresentes nestes eventos, paralelamente com a ideia de ser necessária uma visão holística para enfrentar os desafios actuais da rua. Daniel Casas Valle, membro da organização e investigador do Centro de Estudos de Arquitetura e Urbanismo da Universidade do Porto, defende que é preciso uma intervenção “integrada com muitas disciplinas, muitos olhares e muitas abordagens, que envolva stakeholders, mas sem esquecer a comunidade, e que seja menos tecnocrata e mais social, até porque continua a haver pouca abertura da parte de quem encomenda”. Para o urban designer, é preciso “saber escutar a rua” e ter em conta que “ela, além de ser um lugar de mobilidade, também é um espaço natural, ecológico e de biodiversidade, que precisa de responder à [necessidade de] adaptação climática.”
Devolver a rua às pessoas é outro desígnio do espaço público contemporâneo, afirma José Carlos Mota, director do Mestrado em Planeamento Urbano e Regional da Universidade de Aveiro. Para o especialista, é urgente, antes de mais, equilibrar a distribuição do espaço: “sabe-se que 50 a 70% do espaço público das nossas cidades serve para nos deslocarmos ou [para] estacionarmos os automóveis, portanto, cabe muito pouco às funções do andar, do parar e do estar com os outros.” A este dado juntam-se outros da última edição dos Censos, que mostram que, nos últimos dez anos, aumentou a percentagem de pessoas que usa o automóvel, diminuiu a de quem anda pé e pouco cresceu a de quem utiliza a bicicleta. “O problema maior”, adverte José Carlos Mota, “é que seria preciso reconhecer a necessidade de mudança para se actuar, mas o que a política pública está a fazer é precisamente o contrário. E isso é muito, muito, preocupante”.
O LUGAR DE TODOS, QUE SE QUER PARA TODOS
Nas suas obras, os arquitectos portugueses Ana Brandão e Pedro Brandão classificaram o espaço público como “O Lugar de Todos” e o urbanista dinamarquês Jan Gehl defendeu o imperativo de se desenhar uma “Cidade para Pessoas”. Mas, na realidade, nem todos têm acessibilidade plena e incondicional ao espaço público. Pessoas com mobilidade reduzida, cegos, idosos, crianças, mulheres ou membros das mais diversas minorias expõem diariamente a necessidade de existir um território mais inclusivo, equitativo e seguro.
“Um bom espaço público é aquele que está aberto a todos e [que] permite a todos o poder de utilizá-lo realmente, seja um idoso, [seja] uma criança de mão ou alguém com deficiência; por isso, é fundamental que seja inclusivo e responda às necessidades de conforto”, lembra Ana Brandão, investigadora do Centro de Estudos sobre a Mudança Socioeconómica e o Território, do ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa. Para tal, é preciso derrubar muitas barreiras – de mentalidade, culturais, urbanísticas – e, ao mesmo tempo, enfrentar um constrangimento de raiz, porque existem “muitos espaços públicos herdados, ou seja, que não foram desenhados tendo em conta as expectativas e os usos que hoje” lhes são atribuídos. “E isso exige grandes alterações”, considera a também co-coordenadora do livro O Lugar de Todos.
No passado, construiu-se mal e hoje, dizem muitos especialistas, continua a fazer-se o mesmo. Apesar de existir uma maior consciencialização para as questões da inclusão, ainda há muito por cumprir, a começar pela própria lei. “Temos legislação desde 1997 e uma segunda lei desde 2006, mas todos os dias se constrói mal e se ignoram as normas. Por exemplo, continua-se a fazer passeios minúsculos, cheios de obstáculos e ratoeiras, e, depois, não há passadeiras, rampas, elevadores públicos, acessos de entrada, nada”, lamenta Paula Teles, presidente do Instituto de Cidades e Vilas com Mobilidade. Além disso, num país onde quase 1,8 milhões de pessoas têm algum tipo de incapacidade (segundo os Censos de 2011), a maioria dos municípios continua sem um plano de acessibilidade para pessoas deficientes e a revelar políticas ambivalentes em relação ao automóvel. “Enquanto tivermos autarcas e políticos que ignoram as necessidades de inclusão e acham que podem perder as eleições porque estão a retirar lugares de estacionamento, não vamos a lado nenhum”, acrescenta a especialista em mobilidade urbana inclusiva e sustentável.
Também as crianças encontram uma cidade desfasada das suas características e necessidades. A rua, que durante muitas gerações foi o espaço de descoberta e brincadeira por excelência, tornou-se mais insegura, poluída e ruidosa, limitando o lugar das crianças aos parques lúdicos. Mas esses, em geral, dão pouco espaço à criatividade, ao contacto com a natureza e à descoberta. O mesmo acontece com o percurso até à escola, que, cada vez mais, é feito de automóvel. “Vários dados demonstram que os melhores alunos são aqueles que fazem um trajecto diário que os estimula antes de chegarem à escola. Também por isso é fundamental evitar uma realidade ‘cidade-túnel’, em que as crianças só conhecem o meio que as rodeia a partir do banco de trás do automóvel ou do smartphone”, adverte Paula Teles.
Desde os anos 90 do século passado que Francesco Tonucci, psicopedagogo e criador do conceito A Cidade das Crianças, propõe a criação de “caminhos escolares” com percursos seguros, agradáveis e estimulantes. Várias cidades europeias inspiraram-se nessa ideia, incluindo Lisboa, que criou o Programa Municipal de Comboios de Bicicleta. Outras, como Torres Vedras ou Valongo, juntaram-se à rede internacional A Cidade das Crianças, fundada pelo italiano, que advoga a autonomia das crianças, de forma a viverem a cidade o mais livremente possível, sem abdicarem do direito a brincar. Tonucci defende, igualmente, que se a cidade for boa para as crianças também o será para outros grupos mais frágeis, como as pessoas com dificuldades de mobilidade ou os idosos.
De facto, termos como segurança, autonomia ou mobilidade universal aplicam-se também ao usufruto da cidade pelos idosos. O envelhecimento demográfico acentuou a importância do conceito age friendly e a necessidade de se criarem espaços e políticas para esta franja (cada vez maior) da população. Porque as boas práticas vão muito além dos parques para ginástica sénior que existem por todo o país, alguns municípios já estão a desenvolver políticas mais integradas que envolvem os mais velhos na cidade. São os casos do Porto e de Ponte de Sor, que aderiram à Rede Mundial de Cidades Amigas das Pessoas Idosas, uma iniciativa da Organização Mundial de Saúde que procura incentivar a criação de ambientes urbanos favoráveis à participação cívica dos idosos na sociedade. Loulé, no Algarve, é também um bom exemplo, ao investir 50 milhões de euros em práticas de envelhecimento activo, como o Programa Seniores em Movimento.
O impacto do espaço público a partir da perspectiva de género é outra condição que o planeamento urbano não deve descurar. Afinal, como disse a geógrafa feminista britânica Jane Drake, “as nossas cidades são patriarcados escritos na pedra, no tijolo, no vidro e no cimento”. Da escolha do pavimento à iluminação, passando pelo desenho dos percursos ou mesmo pela disposição do mobiliário urbano, há vários factores que influenciam o dia-a-dia das mulheres na cidade, mas não são considerados por quem planeia e decide – regra geral, os homens. “A verdade é que continuamos a ter estratégias e políticas sustentadas pelo que poderíamos chamar de falso-neutro, ou seja, ouvimos dizer que as cidades são para todas as pessoas, mas na realidade são apenas para as pessoas que se configuram num modelo similar ao do decisor, seja ele o político, o arquitecto ou o urbanista”, diz Patrícia Santos Pedrosa, investigadora do Centro Interdisciplinar em Estudos de Género e presidente da Associação Mulheres na Arquitectura. Embora não acredite em “repostas securitárias”, a arquitecta lembra também a questão da percepção de segurança, que acaba por condicionar a vivência das mulheres. Em 2017, o Plano de Acessibilidade Pedonal (PAP) da câmara municipal de Lisboa considerou que elas eram o grupo mais exposto ao medo de estar nos espaços públicos. Na altura, foi proposta a criação de um projecto-piloto que respondesse a este problema, mas, meia dúzia de anos depois, não há relato de qualquer avanço.
RENATURALIZAR AS CIDADES
Nos últimos anos, os efeitos das alterações climáticas e da poluição fizeram soar os alarmes nas cidades e aceleraram a urgência de um desenvolvimento sustentável no contexto do espaço público. As estratégias verdes generalizaram-se e com elas sugiram mais parques, jardins, corredores ecológicos, hortas urbanas e outras soluções de vegetação que reconectam os aglomerados urbanos à natureza. Também a Estratégia de Biodiversidade da União Europeia para 2030 apela ao reforço dos espaços verdes e da biodiversidade nas cidades, através da implementação de planos ecológicos e da criação de mais áreas verdes com acesso público.
O desafio que agora se coloca é, assim, mais amplo e levanta novas questões, a começar pelo tipo de natureza que queremos na cidade: uma natureza mais gerida, “manicurada” com arranjos florísticos e de jardinagem, como acontece na maioria dos parques e jardins urbanos, ou uma natureza mais selvagem, autónoma, menos controlada? A resposta pode ser… ambas.
Para cada vez mais especialistas, os modelos tradicionais de infraestruturas verdes podem – e devem – ser complementados com processos de renaturalização (rewilding, em inglês), um conceito nascido nos Estados Unidos no final do século passado, mas que tem ganhado muitos adeptos na Europa. É o caso de Henrique Miguel Pereira, investigador em conservação da biodiversidade na Universidade de Leipzig, na Alemanha, e no InBio, da Universidade do Porto: “seja através do aumento da conectividade entre territórios, de processos de perturbação naturais, como as inundações, ou do regresso de espécies nativas aos ecossistemas, a renaturalização pode perfeitamente ser aplicada – e exercer um papel importante – na gestão dos espaços naturais das cidades.” O investigador fez parte de um grupo internacional de cientistas que publicou um estudo na revista Science sobre o tema – Rewilding complexe ecossystems –, demonstrando que a renaturalização é eficaz na recuperação dos ecossistemas. Em Portugal, também já há várias autarquias a seguirem processos semelhantes, como Cascais, que apostou na renaturalização das margens das ribeiras do concelho de forma a aumentar a permeabilização dos solos, minorando os efeitos das cheias e alargando os espaços verdes. Braga, no Parque das Camélias e na zona envolvente do Rio Torto, Cabeceiras de Basto, nas margens do Rio Peio (Zona de Lazer da Ranha), e Loulé, com intervenções na Ribeira do Cadoiço, são outros municípios que decidiram avançar para soluções de renaturalização.
E poderá ser a renaturalização um entrave à re-humanização do espaço público? Ou seja, há lugares e momentos em que as pessoas deverão estar afastadas da natureza, para melhor a protegerem? Henrique Miguel Pereira defende que as duas podem coexistir: “a renaturalização é uma forma de pensarmos a natureza de modo a respeitarmos a sua autonomia. Não é tanto que devamos estar ausentes, mas que sejamos espectadores respeitosos dos processos naturais e que possamos apreciá-los e experienciá-los na sua plenitude, seja em espaços verdes urbanos, seja em espaços mais selvagens.”
ESPAÇOS PÚBLICOS INTELIGENTES
Tantas vezes silenciosa e quase invisível, a construção da inteligência urbana encontra no espaço público um palco privilegiado para a experimentação e aplicação no terreno de todas as vantagens e de todos os desafios que a tecnologia oferece às cidades. Miguel de Castro Neto, director da NOVA IMS – Information Management School e coordenador do NOVA Cidade – Urban Analytics Lab, explica que o recurso à tecnologia e à analítica “por parte de quem gere as cidades é cada vez mais incontornável na gestão dos espaços e dos problemas do dia-a-dia”, porque “permite construir cenários e, depois, validá-los, de forma a perceber o impacto das diferentes opções, garantindo que uma determinada intervenção é a melhor para um local, sabendo que esta pode ser completamente distinta para outro local a apenas 500 metros.”
Além de simular cenários e possibilidades, a tecnologia permite monitorizar em tempo real a vivência e a eficiência dos espaços públicos, ajudando a adoptar e a desenvolver políticas sustentadas em dados reais e elementos quantificáveis. Com isso, favorece a tomada de decisão, tornando-a mais transparente e flexível. No caminho para a transição inteligente, ela já actua a vários níveis no espaço público, por exemplo, na gestão do tráfego e segurança rodoviária, na disponibilização de informação útil aos cidadãos, no controlo de multidões ou em sistemas de medição de qualidade do ar e do ruído. Torna-se, desta forma, numa espécie de cérebro das cidades que tira partido de todo o manancial de informação existente e é capaz de aplicá-lo na urbe. E, assim, também as cidades inteligentes fazem do espaço público um novo e privilegiado ponto de encontro – agora entre os dados e a rua, a tecnologia e o desenho urbano, os gigabytes e as pessoas.
O ESPAÇO PÚBLICO, PROTAGONISTA DA HISTÓRIA
Já na Antiguidade Clássica, a ágora era o local mais importante da cidade, representando um valor urbano, mas também político, de cidadania e de espírito colectivo, ainda que só alguns tivessem o direito de a ela aceder. Mais tarde, na Idade Média, quando a maioria das ruas se tornou insalubre e desordenada, os mercados medievais assumiram o lugar do espaço público; e, durante o Renascimento, surgiram as grandes praças, tantas vezes palco de revoluções e que ainda hoje são espaços de definição urbana. O século XX foi um período de muitas transformações na cidade e no espaço público. Surgiu o Modernismo, o elevador (e com ele os arranha-céus) e o planeamento urbano focado no automóvel, tornando a rua num mero canal de circulação. O local público deixou de ser um espaço privilegiado de encontro e de convívio, papel que passou a ser desempenhado, muitas vezes, por ambientes controlados e climatizados, como são exemplos os centros comerciais ou os cafés. A tudo isto respondeu Jan Gehl, urbanista dinamarquês, que, a partir dos anos 1960, lançou um manifesto de humanização e valorização do espaço público, em defesa de uma “Cidade para Pessoas” que privilegia a qualidade de vida, a felicidade dos cidadãos, a sustentabilidade e a promoção das vias pedonais e cicláveis. Neste século XXI, ganhou força a Cidade dos 15 Minutos, conceito desenvolvido por Carlos Moreno, segundo o qual os moradores de uma cidade devem ter a curta distância todos os serviços essenciais, como escolas, hospitais, locais de comércio, espaços verdes, de lazer e cultura. Cidades como Paris ou Barcelona já o testam e em Lisboa começam a surgir algumas iniciativas, ainda discretas, como o programa Há Vida no Meu Bairro, que aposta na criação de percursos pedonais de proximidade em todas as freguesias da capital.
Este artigo foi originalmente publicado na edição nº 39 da Smart Cities – Abril/Maio/Junho 2023, aqui com as devidas adaptações.