A propósito do Dia Mundial da Bicicleta, assinalado este sábado (3 de Junho), importa discutir os principais temas da mobilidade ciclável em Portugal, como a Estratégia Nacional para o sector, o papel dos municípios na mudança de paradigma, a segurança dos ciclistas ou os incentivos aos utilizadores.

Para isso, convidámos várias associações nacionais a dizer de sua justiça, como a Braga Ciclável ou a Ciclaveiro, cujas entrevistas publicamos hoje. Na segunda-feira será a vez da MUBI – Associação pela Mobilidade Urbana em Bicicleta.

Para todas, a actuação das câmaras municipais é encarada como fundamental, seja ao nível da infraestrutura, da redução de automóveis nas cidades ou das acções de sensibilização. Unânimes são também as críticas à estratégia definida pelo Governo, tanto a nível da concretização das metas, como do investimento atribuído.

MÁRIO MEIRELES – PRESIDENTE DA ASSOCIAÇÃO BRAGA CICLÁVEL

A Estratégia Nacional para a Mobilidade Activa Ciclável (ENMAC) traçou objectivos ambiciosos até 2030, como uma quota modal de viagens em bicicleta de 10% nas cidades (7,5% a nível nacional) e uma rede de ciclovias com 10 mil quilómetros. Será esta meta exequível?

Só será exequível se os municípios quiserem. Não depende apenas do Governo e da Estratégia em si, mas em grande parte daquilo que os municípios quiserem efectivamente fazer, porque ela vai estar dependente das transformações das nossas ruas, avenidas, cidades e vilas. De facto, temos todas as condições naturais para que as pessoas se desloquem de bicicleta, mas isso não acontece porque a infraestrutura não o permite. É claro que existem dois problemas: primeiro é preciso que os municípios ponham a mão na massa e comecem a transformar as suas ruas e avenidas para se induzir um tipo de mobilidade mais activa e saudável. Outro problema deve-se ao facto da própria Estratégia em si também precisar de algum reforço, quer ao nível das verbas, quer de recursos humanos. Definitivamente, merecia-se um investimento mais significativo.

Porque é que as cidades são tão perigosas para os ciclistas e a convivência entre o automóvel e as bicicletas continua a não ser pacífica, resultando muitas vezes em acidentes graves?

Nós temos 70, 80 anos de infraestrutura construída a pensar exclusivamente nos carros. Quando há um sistema como esse a funcionar e depois colocamos veículos de velocidades inferiores, acontecem mais sinistros, mais atropelamentos e mais colisões, porque as velocidades são muito díspares. Há um gap muito grande entre quem vai a circular de bicicleta, a 20, 25 km/hora ou quem vai de carro, a 50, 60, 70 km/hora. Portanto, é efectivamente necessário baixar velocidades para que possa haver algum tipo de convivência mais pacífica. Depois, é claro que também há outros factores externos, como o álcool, o telemóvel ou o facto de nos sentirmos mais poderosos quando estamos dentro de um carro. Por isso, há uma necessidade de desconstrução do actual paradigma, para que o espaço urbano seja realmente de todos.

A falta de adesão à bicicleta em Portugal é condicionada de forma determinante pela sensação de falta de segurança?

Não tenho dúvidas disso e consegui demonstrá-lo na minha tese de doutoramento. Pelo menos em Braga o factor determinante é mesmo o sentimento de insegurança que as pessoas têm relativamente à infraestrutura. Por exemplo, a velocidade dos carros e a falta de vias dedicadas levam a que as pessoas tenham medo de utilizar a bicicleta e mesmo de andar a pé na cidade. Essa foi, de facto, a reposta que as pessoas deram, mais de 68% dos bracarenses, e também há um estudo nacional que fala em mais de 65% da população portuguesa. De facto, elas têm medo de conviver com os carros, mas acredito que iriam aderir às bicicletas se houvesse melhores condições. É certo e sabido que há uma franja da população que nunca vai utilizar a bicicleta e que vai continuar a preferir o carro, cerca de 15%, mas também há uma grande parte da população que estaria disposta a fazer algumas viagens de bicicleta se a infraestrutura assim o permitisse, garantindo deslocações seguras.

JOANA IVÓNIA, VICE-PRESIDENTE DA ASSOCIAÇÃO CICLAVEIRO

No Orçamento do Estado 2023, o Governo destinou um milhão de euros à Estratégia Nacional para a Mobilidade Activa Ciclável e à Estratégia Pedonal. Consideram este valor suficiente?

Não, de todo, não é suficiente. Portugal é o país da Europa que menos investe na mobilidade activa em bicicleta, portanto é claramente um valor abaixo do que é necessário. Se também somos um dos países que utiliza menos a bicicleta, supostamente deveríamos ser dos que precisa de um maior investimento, o que não acontece. É claro que não se trata apenas de uma questão de investimento, mas também de qualidade de investimento e de como se faz o investimento. Mas, mesmo assim, é claramente um valor muito abaixo daquilo que o país precisa, face às necessidades que temos, ao atraso em relação a outros países e às metas que definimos.

Há quem defenda a criação de uma espécie de subsídio/incentivo financeiro para quem utilizar a bicicleta como meio de transporte. Concordam com esta ideia?

Alguns países fazem isso e nós até já discutimos programas de incentivo em várias empresas, mas é difícil ter uma noção clara dos resultados, porque poderiam ter uma baixa adesão e ser difíceis de controlar. E, mesmo assim, estaremos sempre muito dependentes da infraestrutrura e do tipo de território. Numa perspectiva pessoal, não me parece que a questão financeira seja o real motivo para as pessoas mudarem, porque os combustíveis estão caríssimos e os salários baixíssimos, e elas continuam a deslocar-se de carro. Os incentivos financeiros ou em dias de férias poderão funcionar, mas mais ao nível da sensibilização e de uma tentativa de conversão, mas não me parece que, por aí, a mudança venha a ser significativa.

A utilização da bicicleta aumentou nos últimos anos em algumas cidades, como Lisboa, mas diminuiu noutras regiões, como a de Aveiro, que era considerada uma referência nacional nesta área. Que razões explicam este facto?

Não temos dados concretos para conseguirmos contra-argumentar os números do Censos. Na verdade, se por um lado percepcionamos que as pessoas estão mais sensíveis e até possam querer utilizar mais a bicicleta, por outro continuamos a ver cada vez mais carros na cidade. Portanto, o balanço não é positivo, por mais medidas avulsas que se possam tomar. Se as pessoas que moram a três ou quatro quilómetros da cidade não conseguem lá chegar de transporte público ou de bicicleta porque faltam serviços e infraestrutura, facilmente percebemos porque razão os números nos mostram que, realmente, as pessoas andam menos de bicicleta. Aveiro é conhecida por ser uma cidade muito ligada à bicicleta, mas depois aposta-se num parque de estacionamento subterrâneo central e numa avenida nova, recuperada recentemente, em que a ciclovia é partilhada com autocarros e estes até perdem a prioridade para o carro.

Fotografia de destaque: © Braga Ciclável