Nas ruas, há um novo conceito de cidadania, mais participada, mais activa. As cidades são agora palcos de colaboração e de co-criação, nos quais as pessoas assumem o papel principal. Se o “Citizen Kane” de Welles tinha o mundo a seus pés, os cidadãos de hoje têm a força da mudança na palma das mãos.
Já ouviu falar de Jason Roberts? Se ainda não, garanto-lhe que é um tipo que vale a pena conhecer. Com formação em Ciências Computacionais, Roberts transformou radicalmente o bairro onde vivia em Dallas, nos Estados Unidos. Esta história começa quando, numa viagem à Europa, as diferenças entre a forma como se vive nas cidades europeias e a realidade de Oak Cliff despertaram em Roberts a vontade de “mudar”.
Fazer de Oak Cliff um bairro parisiense era impossível, mas muitas outras coisas podiam ser feitas para dar vida àquela zona conhecida como a pior desta cidade do Texas. Começou pelo velho cinema abandonado do bairro, outrora famoso por ter sido palco da detenção de Lee H. Oswald. Roberts e um grupo de amigos remodelaram o espaço e transformaram-no numa galeria de arte temporária. Quando terminaram, mais de 700 pessoas admitiram estar à espera de que alguém decidisse pegar naquele espaço e fizesse alguma coisa com ele. E não se ficou por aí: em Oak Cliff, Roberts criou esplanadas e floreiras para trazer pessoas para as ruas, iniciou campanhas para trazer de volta os eléctricos e ainda promoveu a bicicleta como sendo a imagem de marca daquele bairro (ainda que ninguém a utilizasse até ali). Com acções espontâneas, como criar um website ou organizar um evento, tudo isto foi acontecendo e mobilizando cada vez mais pessoas. Contado assim parece fácil, mas Roberts e a sua equipa fizeram-no praticamente do nada e quebraram muitas regras no caminho. No fim de contas, estas ideias ousadas reflectiam vontades adormecidas da comunidade e, com a sua aprovação e envolvimento, tornaram Oak Cliff num bairro melhor. O segredo? Iniciativa e paixão. “Se somos apaixonados por alguma coisa, vamos provavelmente tornar-nos líderes. Essa paixão vai ser transmitida à comunidade e as pessoas vão seguir-nos”, resume Roberts, que é hoje co-fundador da Better Block Foundation.
Nem todos temos o espírito de Roberts, mas, de alguma forma, todos desejamos melhorar o local onde vivemos. Essa foi também a motivação de Saskia Beer. Decidida a reanimar um bairro empresarial do Sudeste de Amesterdão, esta arquitecta recorreu ao glamour, oferecendo taças de champanhe às pessoas que passavam na rua e perguntando-lhes quais eram as suas ideias para mudar aquela zona. Ultrapassado o cepticismo inicial, a iniciativa envolveu de tal forma esta comunidade que resultou na criação de uma plataforma de planeamento urbano colaborativo.

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Histórias como estas mostram como as vontades das pessoas relativamente àquilo que querem nas suas cidades estão a gritar cada vez mais alto e não podem ser ignoradas por quem as governa. A estratégia unidireccional, do topo para a base, já não funciona e é preciso incorporar também as iniciativas que nascem na génese das comunidades. Colaborar e co-criar são os verbos do momento e, para acompanhar estes ritmos, os poderes políticos estão a encontrar formas de escutar os seus cidadãos – o orçamento participativo é uma das ferramentas mais bem sucedidas e o crowdsourcing é cada vez mais utilizado –, enquanto o papel central das pessoas é entusiasticamente sublinhado quando se fala de smart cities.
Todavia, à preocupação real com os seus cidadãos, junta-se o receio de uma propaganda e referência vazia ao seu papel nas cidades. O processo não é fácil e até as metrópoles mais ricas têm dificuldades em lidar com isto. A socióloga urbana Saskia Sassen aponta o caso de Nova Iorque, onde há um “subaproveitamento do conhecimento dos seus residentes e uma falha na implementação de coisas que podem ser feitas”. Não se refere, claro, às elites, mas àqueles que têm menos poder e que são a maioria. Como inverter o estado das coisas? “É preciso levar os cidadãos a sério”, afirma.
“Sim, nós conseguimos”
Nos últimos anos, as iniciativas cívicas e de co-criação com o objectivo de melhorar as cidades multiplicam-se. Conjunturas económicas difíceis são, muitas vezes, apontadas como o combustível para estes movimentos, mas é também evidente um descontentamento generalizado com a actuação dos poderes políticos. “Há um certo desagrado e desilusão relativamente ao papel do Estado na resolução dos problemas dos cidadãos, em resultado da falta quer de recursos financeiros, quer de vontade política”, explica José Carlos Mota, urbanista e docente na Universidade de Aveiro. Os poderes políticos não são responsivos e cria-se um desapego entre as políticas, políticos e cidadãos, argumenta. De entre uma maioria de pessoas que está desiludida, mas passiva, vemos ocorrer uma mudança: alguns desses cidadãos começam a dizer “se eles não fazem, fazemos nós”. Unidos por este sentimento, os cidadãos rapidamente apercebem-se de que a resolução dos problemas do quotidiano da comunidade está ao seu alcance e a um baixo custo. O impacto destas “intervenções cirúrgicas”, por mais pequenas que sejam, acaba por ser significativo e os resultados vão motivando as pessoas para a acção.
A par disto, é também evidente que está a surgir um “novo perfil” de cidadão, mais qualificado e informado e em domínios diversos, retirando a carga sectorial que víamos, até aqui, muitas vezes associada aos movimentos cívicos. As pessoas já não se interessam apenas pelas questões que lhes estão, de forma profissional, afectas.
A iniciativa é o primeiro passo para a mudança. Mas como distinguir o que faz ou não sentido? A chave está na ideia de benefício colectivo. O que vai, efectivamente, melhorar a vida dos cidadãos? Encontrar essa resposta leva-nos à necessidade de criar espaços de debate público. “Muitas vezes, não se criam condições em que as pessoas sintam que vale a pena discutir. Os responsáveis políticos podem chamar as pessoas para as reuniões do município, mas essas não são locais amigáveis para uma reflexão. São espaços muito fechados, pouco inclusivos. Falta criar espaços de debate”, lamenta o urbanista.
Cidadania inteligente
Neste desafio, a inovação tecnológica tem dado uma ajuda. A criação de plataformas on-line, nas quais as pessoas podem dar as suas sugestões e até conseguir fundos para as iniciativas, tem aumentado e até os governos locais as utilizam para auscultar as necessidades dos seus cidadãos.
Na ultima década, Medellín, na Colômbia, tem feito uma verdadeira revolução e é distinguida como um caso de sucesso de liderança governativa. Na luta contra a violência extrema (estava entre as 50 cidades mais perigosas do mundo), o narcotráfico, a pobreza e a exclusão social, o governo da cidade apostou numa estratégia de valorização da vida humana e da segurança, de melhoria da educação e redução do abandono escolar e da revitalização das zonas mais pobres, não só através da arquitectura como da mobilidade. Neste processo, a alcaldía sabia que tinha um activo precioso – as pessoas – e, por isso, criou a Mi.Medellín, uma plataforma de co-criação que conta, hoje, com mais de 17 mil ideias de propostas para a cidade e de uma agenda para encontros ciudadanos. A ideia é perceber como estes resolveriam questões críticas da cidade, sendo as sugestões, depois, avaliadas e a sua implementação analisada. “Se fechássemos as portas [às ideias das pessoas], haveria um talento no exterior que não estaria a ser aproveitado”, explica Miguel Aristizabal, director de co-criação da agência colombiana OpenCol.
A importância crescente da cidadania não passa despercebida às tecnológicas, inclusivamente “o conceito de Cidadania Inteligente é, de acordo com a Gartner, um dos principais vectores de foco na estratégia operacional governativa”. Rui Silva, business developer desta consultora em Portugal, diz existir mesmo “um mercado da cidadania” e explica: “As empresas tecnológicas estão muito atentas e focadas nestes movimentos. O interesse é transversal à dimensão ou indústria, existindo desde start-ups, blue chips tecnológicas, telcos ou utilities, que tentam dar resposta a este novo mercado de cidadania, em áreas como redes sociais, IoT, wearables, acessibilidade, comunicação, mobilidade, sustentabilidade energética/ambiental, saúde, etc.”. Este é um negócio “com muito interesse”, avança, até porque “as oportunidades na área da cidadania são imensas, não só devido ao crescimento da literacia digital, mas também pelos desafios populacionais”.
Em Portugal, existem já exemplos de como as cidades estão a abraçar esta cidadania digital. “No nosso país, este movimento tem sido liderado pelo poder local, a maioria dos municípios disponibiliza já uma qualquer forma de Orçamento Participativo e têm sido feito investimentos em ferramentas de comunicação com o munícipe, que vão desde a disponibilização de uma agenda de eventos até à participação de situações que carecem intervenção camarária (FixCascais em Cascais, Sou Cidadão em Abrantes, Alerta Bragança em Bragança, etc.)”, enumera Rui Silva.
Real vs. virtual
As ferramentas tecnológicas são apenas uma parte da solução para responder às exigências dos cidadãos. Enquanto, por um lado, permitem um maior alcance e até democratizam a cidadania, podem, por outro, excluir quem tem menos acesso a estas ferramentas e trazer uma falsa sensação de participação. As redes sociais querem substituir o espaço público, assumindo-se como palcos de debate e de trocas de ideias. José Carlos Mota distingue os “movimentos de encontro físico e os de encontro virtual”, sendo que estes últimos, por “serem mais cómodos e exigirem menos esforço”, correm o risco de não alcançar a mudança desejada.
Nos movimentos de cidadania, as acções no terreno e os resultados são factores cruciais que servem, acima de tudo, como motivadores para agir, mas também para reflectir. Em Junho, o centro histórico de Aveiro foi palco do Vivó Bairro. A iniciativa está integrada no projecto europeu Communities Participation in Planning e tem como propósito regenerar, com a comunidade local, aquela área. O primeiro passo foi perguntar aos residentes quais eram os seus sonhos para o espaço onde viviam e identificar os recursos de que dispunham. Cruzando essas duas linhas, foram criadas 60 iniciativas de intervenção no espaço público, que incluíram a colocação de redes de pesca nos topos das ruas, com peixes decorados pelos residentes, a requalificação dos bancos e das caixas de electricidade com a ajuda de artistas, e, ainda, um jantar comunitário, “sem igual em 30 anos”, conta José Carlos Mota, um dos dinamizadores da iniciativa. “Muitas vezes, dizemos que as cidades não têm espírito de comunidade, mas, quando se criam os palcos, vemos que isso não é verdade e o Vivó Bairro foi um exemplo disso”, avalia.
Reflectir para a mudança
Não menos importante em tudo isto é a reflexão crítica. A mudança na cidade exige reflexão sobre o espaço e, sem ela, o preço a pagar pode ser elevado. “Se não reflectirmos sobre o que queremos na cidade, à luz de que modelos vamos levar a cabo os projectos?”, questiona o investigador de Aveiro.
Discutir a cidade é uma tarefa hercúlea, pelo que William Kistler, responsável pela Urban Innovation Network, tem uma postura mais céptica relativamente ao processo de co-criação urbana. “Quem não tem formação sobre o ambiente construído dá-lhe muito pouco valor”, afirmou durante o último SCEWC em Barcelona. “Pedir-lhes que participem sem o enquadramento ou a formação necessários, é uma receita para… um desafio”, exclamou.
Significa isto que só as “elites intelectuais” têm legitimidade para levar a cabo a mudança? Não, esse não é um papel exclusivo, mas podem, sim, dar um contributo interessante neste movimento e a academia, por exemplo, está interessada em fazê-lo. O Instituto de História Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa está a trabalhar num projecto de investigação colaborativa, cujo objectivo é recuperar e divulgar as memórias das Avenidas Novas, criando novos caminhos para a investigação. Desde Novembro do ano passado, de quinze em quinze dias, as investigadoras Luísa Seixas e Inês Castaño reúnem-se com os ditos “Maiores das Avenidas” (os residentes seniores desta freguesia) e recolhem histórias, testemunhos, objectos, recordações que fazem parte daquele espaço. O Memória das Avenidas não é único, e nasce de uma iniciativa mais abrangente – o Memória para Todos –, mas é a sua escala e impactos locais que nos interessam. “Há uma legitimação da memória individual destas pessoas e um reconhecimento da parte da comunidade científica do contributo da história individual para uma história colectiva”, explica Inês Castaño. Para além da construção da identidade local, o resgatar destas memórias pode ajudar a desmistificar alguns preconceitos existentes na freguesia, em particular face às comunidades cigana e mais pobres que ali residem, e cuja origem esteve, eventualmente, em factos “manipulados”, contam as investigadoras. “A construção de um conhecimento colaborativo, no qual as pessoas estão directamente envolvidas, talvez possa ajudar a criar mais alicerces numa comunidade que vive no mesmo bairro”, defendem.
Dado que se dirige a uma população sénior, mais benefícios têm surgido daí, como o estímulo ao papel activo na sociedade ou a sensibilização para a prevenção das doenças da memória – aspecto ainda em desenvolvimento. À semelhança desta, outras iniciativas podem dar-se noutras disciplinas, como a biomedicina, ajudando a incluir outros actores na investigação científica e a dar resposta àquilo que são as preocupações da sociedade, colocando o conhecimento mais próximo das pessoas. “Num contexto urbano, estes processos colaborativos dão voz às pessoas e dão-lhes uma cara, um nome. As pessoas deixam de ser uma massa que ocupa a metrópole”, defende Luísa Seixas. “Estas pessoas viveram processos de mudança imensos nas suas vidas e são fontes vivas destas transformações. Hoje, pela inovação tecnológica, temos a possibilidade de construir fontes como não acontecia anteriormente, por isso, estes processos colaborativos chamam também a atenção para o facto de estas pessoas poderem participar nessa construção a vários níveis”.
O princípio da entre-ajuda
No Bairro do Rêgo, Francisca Assis Teixeira aguarda-nos de porta aberta. É a zona mais “deprimida” daquela freguesia (Avenidas Novas, Lisboa), conta, apresentando-nos “O nosso KM2”. A iniciativa, promovida pela Fundação Calouste Gulbenkian e pela câmara municipal de Lisboa, é gerida no terreno pelo Instituto Padre António Vieira (IPAV). Seguindo um modelo de governação integrada, pretende-se desenvolver redes de proximidade e vizinhança para a resolução de problemas sociais complexos. Ou seja, encontrar no território as pontes necessárias para o melhorar.
A simples presença física do projecto teve logo um impacto positivo na dinâmica do bairro, impulsionando a abertura das lojas em função das necessidades da população, conta a responsável. Mas não é o único, com a ajuda do programa municipal BIP ZIP, foi possível melhorar o espaço público desta comunidade, criando zonas de convívio, pátios para as crianças brincarem e intervenções de arte urbana que são o motivo de orgulho de quem ali vive. Entre elas, está o mural com o retrato do Sr. Fausto Monteiro, um lojista local de 80 anos, assinado pelo artista Daniel Eime, e que pretende representar a união entre os bairros novo e antigo. “Trabalhamos completamente em rede para resolver os problemas destas pessoas”, garante Francisca Assis Teixeira, deixando escapar que há ainda um sonho ao qual não foi possível dar resposta: um campo de futebol.
A cidade e o cidadão, hoje e amanhã
A receita para as cidades inteligentes ainda está a escrever-se, mas não restam dúvidas de que as pessoas são o ingrediente base – só não se sabe em que dosagem e como interligá-las da melhor forma com o processo governativo. “As cidades constroem-se e reconstroem-se na esfera pública, dando a todos os cidadãos e comunidades a capacidade de criarem história, cultura e política”, escreve Catarina Selada. Para a directora da unidade de cidades da Inteli, é fulcral que as políticas públicas estimulem e alavanquem estas “práticas e intervenções sociotécnicas descentralizadas e distribuídas, de forma a que estas ganhem abrangência e relevância, numa lógica de governação urbana colaborativa e experimentalista”.
Olhando para o futuro, é difícil prever como estes movimentos de cidadania irão evoluir e qual o seu impacto na organização da cidade. Mas, à medida que o fervilhar destas iniciativas aumenta, José Carlos Mota antevê dois cenários: “ou as lideranças políticas percebem o poder de mobilização e transformação que existe nestas organizações e trazem-nas para a sua própria dinâmica; ou estes diálogos não se estabelecem e criam-se tensões, focos de conflito, que, mais tarde ou mais cedo, dão origem a novas lideranças políticas de natureza independente”.
Ainda que a maioria opte por uma postura passiva, é certo, porém, que o cidadão está a ganhar força e que, perante a falta de actuação do poder político, este já não hesita em agir. Esse é um factor positivo, defende o urbanista, pois “significa que há uma maior maturidade das diferentes formas de organização cívica, há uma certa profissionalização da cidadania”. Mas esta realidade pode também trazer um cenário “preocupante: a ideia de que o Estado, afinal, não é muito importante. Se o Estado, de repente, é substituído pelas organizações cívicas ou, eventualmente, até por privados, para que é que precisamos dele?”. Em cidades como Berlim ou Bolonha, há cerca de 40 a 50 iniciativas cívicas de gestão de cidade, um número que deixa José Carlos Mota desconfortável. “Receio que esta tendência ponha em causa o interesse colectivo, que, em última análise, é defendido pelo Estado e não pelos cidadãos”, alerta.
*O artigo foi publicado, originalmente, na edição #12 da revista Smart Cities. Aqui, com as devidas adaptações.