É interessante observar como as reflexões e preocupações de cidadãos, organizações e autoridades se acumulam em noções básicas como “humanidade” ou “pessoas”. Ouço com frequência políticos de todos os quadrantes dizer que “é para as pessoas” que estão a trabalhar, ou especialistas da indústria, nomeadamente da nova superestrela do firmamento da semântica popular, a Inteligência Artificial, afirmarem que tem de haver sempre ética e tudo em prol do bem da humanidade. E, contudo, a prática tem vindo a demonstrar outra realidade. 

A utilização de um discurso ou narrativa “amigável” e “pacífica” para, a pouco e pouco, ir introduzindo mudanças profundas no funcionamento das nossas organizações e, em geral, da sociedade, é uma prática ancestral. No que toca às novas tecnologias, aplica-se pelos estímulos mediáticos e pela influência de líderes, empresas ou outros especialistas que contribuem para tornar conceitos, métodos e ferramentas caras e complexas aceites e priorizados na gestão e no funcionamento das nossas instituições e, consequentemente, da nossa sociedade. E, como é óbvio, não é um processo exclusivo das democracias do ocidente. No geral, pelo globo, os saltos civilizacionais impulsionados pela tecnologia têm criado entropias em várias cidades e, consequentemente, afetado muitos cidadãos que não conseguem acompanhar o ritmo dos avanços sociais e tecnológicos. 

Por exemplo, em eventos dedicados à Inteligência Artificial, o principal assunto em debate é a “humanidade vs artificial” e, no final, a conclusão é sempre a mesma: a IA é uma ferramenta que vai ajudar a desenvolver a sociedade e as pessoas. Já em eventos dedicados ao metaverso, por exemplo, o tópico dominante é mais ou menos semelhante, “humanos sempre!”. E, contudo, avança-se em segundo plano com Digital Twins, gamificação das cidades, Blockchain e outras novas realidades paralelas. 

Recentemente, dei o exemplo, num evento em que participei, de como era possível demonstrar que não existe alma nem sentimento em nada do que se discute hoje nas cidades. No caso das Smart Cities, quando a prioridade é a tecnologia, ou a mudança de hábitos, ou a sustentabilidade, quase sempre existe uma política ou estratégia que tenta impor uma direção aos cidadãos, organizações e lideranças. E esse tem sido, porventura, o maior inimigo da humanidade nas cidades e na sociedade em geral: a abolição da criatividade, do pensamento crítico, da experiência e da memória, do imprevisto e inusitado. As cidades são, na verdade, a maior invenção humana e a sua complexidade e dinâmicas próprias sempre foram fatores de atração e sentimentos intensos de pertença. 

Embora a digitalização das cidades ofereça enormes benefícios em termos de eficiência e sustentabilidade, também é essencial preservar o espaço para a criatividade humana e o livre-arbítrio. Isso exigirá um equilíbrio cuidadoso entre o uso de tecnologia para otimização e a proteção da capacidade dos indivíduos de inovar, experimentar e exercer a sua autonomia dentro do ambiente urbano. O futuro das cidades não deve ser apenas determinado por algoritmos, mas por uma coabitação entre a máquina e a imaginação humana. Estamos numa encruzilhada, numa corrida que já começou, rápida e intensa, sem previsão de fim. O importante não é quem vence, mas que alguém, em algum lugar, consiga alcançar a meta. 

A corrida em questão é a incessante procura no desenvolvimento de uma “nova ciência das cidades”, tão quantitativa e preditiva quanto possível. Essa ciência será capaz de nos explicar como as cidades se expandem e os motivos pelos quais falham. Vai permitir identificar os fatores que fazem com que algumas zonas prosperem, enquanto outras mantêm os seus residentes na pobreza. 

Vai mostrar como a energia e a informação circulam pela cidade, tal como o sangue flui num organismo complexo. Há quem afirme que essa corrida começou nos anos 90 e início dos anos 2000, quando investigadores começaram a aplicar a chamada teoria da complexidade ao estudo das cidades. Uma teoria que emergiu do estudo do caos, dos fractais e de outros novos conceitos matemáticos há cerca de três décadas e que abriu novos horizontes. 

Contudo, recentemente, a chegada do Big Data, da computação e da teoria das redes trouxe ferramentas inéditas para avançar na compreensão das cidades. Hoje, enormes quantidades de dados estão a alimentar essa revolução científica, com registos de alta precisão, desde o tráfego até à saúde pública, disponíveis para serem explorados. Se adicionarmos agora a Inteligência Artificial a estes processos, começamos a despir a cidade da sua alma vibrante e a desviá-las nefastamente do livre-arbítrio e da responsabilidade ética e democrática do decisor político ou administrativo, enquanto agente de interação com os seus concidadãos, que apenas terão um caminho, o da “verdade científica” ordenada pelos algoritmos como a nova Bíblia. 

Contudo, neste movimento de quantificar e caracterizar há riscos. As cidades são muito mais do que simples problemas físicos. São criações da imaginação humana e, por isso, a sua vitalidade depende da qualidade da imaginação que investimos nelas. E todos sabemos que os principais valores humanos surgem do caos, da imprevisibilidade e do acaso. Se deixarmos valores como o amor, a compaixão, a amizade, a honestidade, a resiliência, a alegria, a tristeza, a moral, etc., surgirem por uma decisão computacional, seremos porventura os novos autómatos e marionetas de um complexo universo gerido por racionalidade e lógica impessoal. E, contudo, gerado e programado, em algum momento da história, por um imperfeito humano condicionado pela complexidade passada. 

Assim, ao entregarmos às máquinas o poder sobre a nossa essência, arriscamo-nos a perder o brilho único que nasce das imperfeições humanas, trocando a profundidade dos sentimentos pela frieza de uma lógica que jamais compreenderá a alma. 


Este artigo foi originalmente publicado na edição n.º 45 da Smart Cities – outubro/novembro/dezembro 2024