Em plena era tecnológica e digital, a minha tese é simples no seu enunciado, “o formalismo digital da smart city (SC) colide, por vezes, com a informalidade quotidiana da vida na cidade”. Se quisermos formular esta tese de outra maneira, talvez possamos dizer “a reinvenção do quotidiano é ainda mais necessária na cidade dos comportamentos preditivos e prescritivos”.

Agora que há mais tempo para a leitura e para abordar este tema tão atual da reinvenção do quotidiano na SC, recomendo alguns autores fundamentais na linha de uma certa antropologia sociocultural dos lugares do quotidiano, em tempo de transição para a pós-modernidade. Por ordem cronológica, Michel de Certeau e a invenção do quotidiano (1986), Marc Augé e os “non-lieux” (1992), Christian Schultz e a arte do lugar (1997), Ray Oldenburg e os “the great good places”,(1999), Zygmunt Bauman e a modernidade líquida (2000), Manuel Castells e a sociedade em rede (2002), Louis Lussault e os “hyper-lieux” (2017).

Neste alinhamento, a modernidade e a globalização fizeram dissipar o espírito dos lugares através de uma crescente funcionalidade, homogeneidade e uniformidade dos modelos de cidade. Assim, desapareceu a singularidade de muitos lugares e perdeu-se o seu encantamento. Não desejamos, porém, que a SC seja um não-lugar e o cidadão um simples individuo digitalizado. A reinvenção do quotidiano é, pois, um verdadeiro imperativo categórico.

Os “Non-lieux e hyper-lieux”

O livro de Marc Augé (1992) é sobre uma antropologia do quotidiano. Os não-lugares são espaços de muita gente e de ninguém, espaços de muita circulação, mas de muito anonimato também. Estamos a falar de aeroportos, estações, grandes avenidas, praças públicas, centros comerciais, parques de estacionamento, mas também de grandes cadeias de hotéis ou, mesmo, como hoje é visível, de grandes campos de refugiados. No fundo, trata-se de espaços de circulação e trânsito onde domina o avião, o automóvel, o comboio, o navio ou o autocarro. O não-lugar é o oposto de uma habitação, residência ou ponto de encontro da vizinhança. Marc Augé fala-nos de uma antropologia da “sobremodernidade” a caminho de uma antropologia da solidão. No final, os não-lugares são lugares de circulação, consumo e comunicação, mas uniformes, generalistas e monótonos. No não-lugar, somos todos iguais, cópias uns dos outros, indivíduos solitários.

Com Louis Lussault, superamos esta visão mais negativa e adotamos uma perspetiva mais positiva. Para Lussault, estamos a observar os lugares do mundo desenvolvido na sua pluralidade. Os lugares, na sua grande variedade, são outras tantas possibilidades de um indivíduo estar no mundo. Onde Augé via, em 1992, um não-lugar de solidão, Lussault vê agora um lugar intenso, hiperconectado, multiescalar e emocionalmente muito rico. Além do mais, os “hyper-lieux” também podem ser “alter-lieux” e “contre-lieux”, isto é, lugares de manifestação e protesto, lugares aleatórios como praças, parques e vias públicas.

Nessa imensa pluralidade de lugares, cabe, também, o neolocalismo e movimentos como o “slow food”, a desaceleração e o decrescimento económicos. A noção de “glocal” dá conta dessa permanente contradição e complexidade. Finalmente, Lussault destaca a importância das comunidades online para iniciar e enraizar novos movimentos e comunidades offline. Em resumo, depois do copo meio-vazio de Augé, temos, agora, o copo meio-cheio de Lussault, um quarto de século depois.

“Third places” e espaços de coworking

O livro de Ray Oldenburg, “The great good places”, de 1989, aborda a sociologia urbana do quotidiano, de uma química própria dos “hangouts” da nossa rotina quotidiana, do barbeiro à livraria, do café à loja de bairro, do bar ao restaurante da vizinhança. Entre os lugares do trabalho e da residência, os “third places ou tiers-lieux” são os lugares da descontração, da hospitalidade, da informalidade e da cultura de uma sociabilidade saudável, os lugares perfeitos para o exercício das micro-liberdades do nosso quotidiano.

Com os espaços de coworking, a cidade transporta-nos dos “hangouts” familiares para os espaços colaborativos da sociedade tecnológica e digital do século XXI. O termo foi criado por Bernie de Koven em 1999. Falamos de uma grande variedade de espaços colaborativos com diversas designações – estúdios, ateliers, hubs, factories, parques, escritórios partilhados – utilizados por microempresas, empreendedores individuais, profissionais liberais, trabalhadores independentes e nómadas digitais. A utilização de espaços comuns e colaborativos faz baixar os custos fixos do imobiliário, aumenta a conexão entre todos e faz germinar um espírito criativo que dá azo a novas oportunidades empresariais. No final, ao longo desta viagem entre os “third places” e os espaços de coworking a cidade ficou mais rica, plural e inteligente, desde que, ao mesmo tempo, tenha assegurado um lugar privilegiado à memória e ao espírito do lugar.

Espaço de fluxos e cidade líquida

Para o sociólogo Manuel Castells, o capitalismo financeiro e o capitalismo digital impulsionaram-nos em direção à sociedade da informação. As pessoas ainda vivem em espaços de lugares, mas, como o poder e as suas funções estão organizados em fluxos de informação, a dinâmica dos lugares fica profundamente alterada. O espaço de fluxos torna-se predominante e essa “virtualidade real” vai consubstanciar a cidade informacional. Em consequência desta virtualização, os espaços urbanos são cada vez mais diferenciados em termos sociais e o desenvolvimento correlativo desta tendência é a formação de megacidades metropolitanas. Não obstante, o espaço de lugares não desaparece e, devido à crescente mobilidade e flexibilidade das modalidades de trabalho, os lugares tornam-se mais singulares e também mais próximos. Estamos, assim, em pleno nomadismo digital e em topoligamia.

O filósofo Zygmunt Bauman dirá, por sua vez, que este nomadismo crescente nos conduz até à cidade líquida onde tudo é passageiro, transitório e efémero. É o tempo que domina, estamos em plena cidade da velocidade. A aura dos lugares já não se obtém da sua substância, mas da sua itinerância, agora caminhamos dos altos lugares para os baixos lugares através de uma mercantilização geral do mundo convertida e traduzida por meio de uma sequência de grandes e pequenos eventos. Em vez da essência de um lugar, o indivíduo/consumidor é convocado para participar numa série de eventos realizados num não-lugar ou num hiper-lugar.

Espírito do lugar e reinvenção do quotidiano

Aqui chegados, a SC já estará, porventura, cheia de não-lugares, hiper-lugares e terceiros-lugares construídos a partir de uma dialética intensa entre espaços de fluxos e espaços de lugares. O mais provável é que tenhamos, mesmo, uma situação caótica e uma verdadeira cacofonia ao quotidiano e, em vez do mistério e do espírito do lugar, teremos, muito provavelmente, a rotina e a melancolia do quotidiano.

Na sua genealogia, o espírito do lugar remonta à antiguidade sob a forma de manifestação do espírito sobrenatural e sagrado. Com o tempo, o espírito do lugar foi tomando forma e matéria e passou a designar a identidade, o carácter e a atmosfera de um lugar onde a arquitetura e a monumentalidade passaram a ter um papel central. À medida que se foi secularizando e laicizando o espírito do lugar perdeu o seu carácter essencial para se referir às relações entre o espírito e o lugar, ou seja, a tudo o que dá sentido e significado à comunidade humana que habita esse lugar e que o tempo vai moldando e atualizando continuadamente. Nas palavras do arquiteto Christian Schultz, o espírito do lugar passará a ser “a arte do lugar” (Schultz,1997), uma arte que o marketing cultural e turístico aproveitará para segmentar, diferenciar e explorar comercialmente. De facto, as metrópoles e as grandes cidades procuram afanosamente na arquitetura, nas grandes obras de arte e na ecologia urbana uma fonte para o mistério e o espírito dos lugares, contra o tédio e a melancolia das grandes urbes verticais.

”Há muito trabalho a fazer para que a smart city seja uma genuína cidade inteligente e criativa e não uma simples máquina digital ao serviço de uma certa ideia ‘sobremoderna’ de cidade.”

Esta é a razão pela qual o espírito do lugar nos remete para a reinvenção do quotidiano como uma necessidade urgente da saúde pública das grandes cidades. E é aqui que uma certa conceção de SC, entendida como uma máquina digital absorvente, uma cidade essencialmente codificada, pode colidir com a liberdade, a irreverência e a criatividade da comunidade humana que a habita. A escola francesa de antropologia e sociologia do quotidiano sublinhou a dialética e o paradoxo que preside à vida ao quotidiano, da banalidade e alienação (Henri Lefebvre, 1980) até à liberdade e invenção do quotidiano (Michel de Certeau, 1980). E para lá do tédio e da monotonia do quotidiano, há, também, os gestos de nobreza e as micro liberdades do dia a dia que nos surpreendem amiúde, já para não falar dos eventos frequentes que nos aliviam a dor da melancolia e solidão.

Notas Finais

Aqui chegados, há muito trabalho a fazer para que a SC seja uma genuína cidade inteligente e criativa e não uma simples máquina digital ao serviço de uma certa ideia “sobremoderna” de cidade. Tudo leva a crer que devido à irreverência e criatividade da comunidade humana que a habita, a SC terá não-lugares, hiper-lugares e terceiro-lugares, mas, também, lugares singulares onde se cruzam o génio do lugar e a reinvenção do mundo. Em jeito de síntese:

A SC será, simultaneamente, uma cidade da circulação, do consumo e da comunicação, a cidade da velocidade, mas, também, a cidade da literatura e da cultura, da poesia e da liberdade.

A SC será a cidade das elites cosmopolitas, mas, também, a cidade dos medos difusos e dos medos objetivos, por isso, construímos muros, redes de vigilância, condomínios, forças de segurança; é bom que a SC não se esqueça de que quantos mais muros e postos de vigilância nós fazemos, mais estranhos e insegurança nós criamos.

A SC será não apenas uma cidade da velocidade onde o tempo é dominante, mas terá de ser, também, a cidade dos espaços públicos e dos pontos de encontro onde a alegria dos vizinhos e dos visitantes se manifesta, em claro contraponto com a dissolução dos lugares nos espaços mediático e virtual.

A SC terá de promover permanentemente a reinvenção do quotidiano, dar à imaginação um lugar central na vida da cidade, mobilizar os vários patrimónios como proteção e projeção das nossas memórias, desenhar os percursos da cidade através dos seus sinais mais distintivos e, finalmente, promover os eventos que a cidade merece.

A SC, se quiser funcionar plenamente, terá de promover a literacia digital em todas as suas áreas, mas com conta, peso e medida para evitar a adição e alienação digitais; como ícone dominante da SC, o smartphone, o símbolo maior do não-lugar e do hiper-lugar, o símbolo da nossa ubiquidade e virtualidade real, sinaliza-nos, a todo o momento, que “a nossa ausência” é, por vezes, muito preocupante, pois nunca estamos onde estamos fisicamente.

E, já agora, que a SC aprenda as lições da Covid-19 e use a sua inteligência em direção a outras formas de sociabilidade e convivialidade. Voltaremos ao assunto.

Este artigo foi originalmente publicado na edição nº 28 da Smart Cities – Julho/Agosto/Setembro 2020, aqui com as devidas adaptações.