A menos de meio caminho do cumprimento da Agenda 2030 e dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), Portugal está numa “situação razoável”, mas os municípios ainda avançam a um ritmo insuficiente, defende João Ferrão. O coordenador da Plataforma ODSlocal alerta que “vários ODS não alcançarão os valores definidos para 2030” e que falhar metas é inevitável. Sinergias precisam-se, sublinha o geógrafo, desde logo ao nível dos sistemas alimentares.
Faltam cinco anos para a implementação da Agenda 2030 e dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Em que ponto se encontra Portugal e como acelerar a concretização das metas no país?
A resposta depende da escala que considerarmos – nacional ou local – e dos indicadores de desempenho que usarmos para medir os avanços verificados em direção às metas definidas para 2030. Em todo o caso, e de uma forma geral, Portugal está hoje numa situação razoável. Ao nível dos municípios, todos os ODS estão a metade ou mais de metade do caminho a percorrer até 2030, à exceção de três: ODS 13 – Ação climática, ODS 2 – Erradicar a fome e promover a agricultura sustentável e ODS 5 – Igualdade de género. Ainda assim, e a manterem-se as tendências de evolução recentes, vários ODS não alcançarão os valores definidos para 2030 e dois correm mesmo o risco de regredir: o ODS 11 – Cidades e comunidades sustentáveis e o ODS 12 – Produção e consumo sustentáveis. Ou seja, a situação atual é globalmente positiva, mas estamos a avançar a ritmos diferenciados e, em vários casos, a uma velocidade insuficiente.
No ano passado, disse à Smart Cities que “o país acordou tardiamente para a questão da Agenda 2030”. Continua a faltar um impulso decisivo?
A Agenda 2030 em Portugal ficou demasiado tempo sob a responsabilidade do Instituto Camões, o que levou a que se mantivesse a perspetiva de cooperação com países em vias de desenvolvimento associada aos Objetivos de Desenvolvimento do Milénio (2000-2015). O processo participado de elaboração do Relatório Voluntário Nacional de 2023, conduzido a partir da Presidência de Conselho de Ministro, representou uma importante inflexão em relação a essa tendência. Nos anos mais recentes o contributo para os ODS passou a integrar vários instrumentos estratégicos e programáticos de âmbito nacional, incluindo o Orçamento de Estado. O impulso existe, mas tem de contaminar de forma mais intensa e colaborativa os vários setores e níveis da administração, assim como os diferentes tipos de agentes económicos e da sociedade civil.
Também tem alertado que as boas práticas tendem a concentrar-se num número restrito de ODS. Em quais estamos mais e menos avançados?
A nível local, e como referi antes, os ODS em situação mais crítica relacionam-se com a ação climática, a agricultura sustentável e a igualdade de género. Se considerarmos ainda os dois ODS cujas tendências recentes sugerem a possibilidade de regressão nos próximos anos (cidades e comunidades sustentáveis; produção e consumo sustentáveis), é fácil perceber a urgência de desenvolver iniciativas que estimulem sinergias positivas entre esses ODS. Um exemplo claro é o planeamento de sistemas alimentares urbano-rurais sustentáveis, um tema que tem ganho relevo em algumas regiões do país, como a área metropolitana de Lisboa ou o Algarve. Os ODS com desempenhos mais positivos a nível local estão relacionados com a educação, o saneamento básico e a proteção da vida marinha. Mas mesmo estes necessitam de atenção permanente.
Qual o contributo do nível local para o sucesso desta iniciativa das Nações Unidas?
Desde o início que as Nações Unidas, mas também entidades como a OCDE, chamam a atenção para o facto de a mobilização dos atores locais ser essencial para atingir muitas das metas da Agenda 2030. A “localização” dos ODS, ou, de forma mais correta, a territorialização dos ODS, passou a ser uma aposta clara em vários países, nomeadamente na Europa e na América Latina. Em Portugal, o facto de a Associação Nacional dos Municípios Portugueses ter criado uma secção temática sobre os ODS em 2022 revela a consciência, por parte do poder local, da importância do seu papel para o êxito da Agenda 2030.
Mas a escala local não inclui só os municípios…
Sim, também todo o tipo de entidades, das escolas às associações, empresas e outros tipos de organizações, para quem os laços de proximidade com as comunidades e com os espaços envolventes são, em boa medida, a sua razão de ser. E, claro, é ao nível local que a cidadania ativa mais se faz sentir, pelo que a participação das populações locais é o melhor indicador de que os objetivos da Agenda 2030 não são apenas retóricos, mas antes um referencial estratégico que permite mobilizar para a ação pessoas e entidades distintas em torno de uma linguagem partilhada e de finalidades convergentes ou mesmo comuns.
A Plataforma ODSlocal acompanha com muita proximidade o trabalho dos municípios. Como garantir que ninguém fica para trás?
Essa preocupação levou a equipa da Plataforma ODSlocal a organizar o segundo triénio de atividade (2023-2025) a partir de dois pilares: Inclusão e Inovação. “Não deixar ninguém para trás”, ou, como dizem de forma mais assertiva os nossos colegas brasileiros, “não deixar ninguém de fora”, exige um amplo leque de ações de mobilização, informação, capacitação, persuasão e mentoria. A preparação de uma exposição itinerante, que percorre o país com base em rotas predefinidas em parceria com bibliotecas municipais, o apoio técnico dado a autarquias via online ou presencial e a realização de laboratórios locais de sustentabilidade ou de sessões prospetivas em áreas fronteiriças, que promovem a reflexão estratégica e a colaboração ao colocar em diálogo diferentes atores locais e regionais, são exemplos de envolvimento inclusivo.
Ainda assim, nem todos os municípios integram a Plataforma…
Vale a pena, a este propósito, sintetizar os principais motivos que levam as autarquias a não aderir à Plataforma ODSlocal: escassez de técnicos, ausência de capacidade financeira e desconhecimento, falta de tempo ou desinteresse por parte dos membros do executivo. Estes motivos ocorrem sobretudo em pequenos municípios. Daí a importância que temos vindo a dar, com o apoio da Fundação “la Caixa”, aos municípios do interior e, em particular, das áreas fronteiriças.
Pode dar-nos alguns exemplos de municípios com melhor desempenho até ao momento?
A experiência de cinco anos mostra-nos que há municípios com bom desempenho muito diferentes em termos de dimensão populacional, localização, nível médio de riqueza e orientação partidária. Aliás, os galardões que temos vindo a atribuir nas nossas Conferências anuais confirmam isso mesmo. Podemos dizer que, em termos genéricos, os casos de melhor desempenho refletem uma combinação de vários fatores: boa liderança política, estreita articulação entre decisores e técnicos, existência de uma cultura colaborativa interna e com parceiros externos e, muitas vezes, adoção da Agenda 2030 como enquadramento programático transversal aos vários departamentos. Mas os municípios, como os países, não têm de investir por igual em todos os ODS. Podem selecionar um número limitado de ODS, visando retirar partido de situações mais positivas como fator de distinção e/ou dando prioridade a ODS ou conjuntos de ODS que concentram um maior número de situações críticas.
E como estão os municípios portugueses, comparativamente com os outros países?
É impossível responder com rigor a esta questão, por falta de informação oficial ou de estudos comparativos abrangentes. Na generalidade dos países a monitorização do grau de cumprimento dos vários ODS e respetivas metas é feita a nível nacional e, mais raramente, regional ou de algumas cidades. Mas, sobretudo no contexto da União Europeia, os municípios participam em múltiplas redes de intercâmbio e cooperação sobre os mais diversos temas, da economia circular à cultura ou à ação climática, o que lhes permite ter uma ideia de como se posicionam em relação aos seus pares de outros países. Também a participação em conferências internacionais sobre questões de sustentabilidade, onde são apresentados estudos de caso inovadores, lhes permite ter uma visão comparativa permanentemente atualizada. Como em muitos outros domínios, os municípios portugueses com lideranças, estratégias e práticas mais avançadas no que se refere aos ODS integram o grupo dos pioneiros de qualquer parte do mundo, mesmo quando o ponto de partida socioeconómico e institucional não é muito favorável.
Perante um contexto de grande incerteza geopolítica, económica e social é possível estar otimista?
A maior parte das metas definidas para 2030 dificilmente será atingida. A sucessão de crises a que temos vindo a assistir – pandémica, climática, migratória, geopolítica, geoeconómica, etc. – e a definição de valores a alcançar em 2030 manifestamente ambiciosos mesmo num contexto de relativa estabilidade, revelam isso mesmo. Aliás, em alguns domínios houve mesmo retrocessos significativos em extensas áreas do globo. A verdade é que a Agenda 2030 criou uma linguagem comum, partilhável, facilitando e estimulando a convergência de objetivos, a mobilização para causas idênticas e a cooperação na ação por parte de entidades e cidadãos/cidadãs diversificados e dispersos um pouco por todo o planeta. Num mundo crescentemente fragmentado como o atual, essa lógica de aproximação colaborativa vale ouro.
Dela depende o êxito da Agenda 2030?
Esse êxito terá de ser avaliado tanto por aquilo que permitiu alcançar como pelo preço que iríamos pagar pela inação em domínios em que contribuiu para avanços efetivos. A Agenda 2030 é um referencial estratégico agregador, que estimula processos de aproximação colaborativa no pensamento e na ação. Falhar metas quantitativas é indesejável, mas inevitável. Deixar de contar com o papel de referencial estratégico partilhado que a Agenda 2030 desempenha seria uma enorme perda para um mundo globalizado, mas excessivamente polarizado e fragmentado. O grande desafio é, pois, interiorizar o espírito e a letra da Agenda 2030, com ela ou sem ela, num número crescente de organizações e cidadãos, para que se pense, decida e atue, individual e coletivamente, em conformidade com objetivos de desenvolvimento sustentável.
UM PAÍS DE VÁRIAS FACES
O ordenamento do território e as políticas de desenvolvimento regional e local têm sido um denominador comum no seu trabalho. Como explica os desequilíbrios que o país enfrenta e o despovoamento no interior do país?
Podemos compreender o território que temos hoje, na sua diversidade e nas suas assimetrias, como sendo o resultado da combinação de três espacialidades. A primeira, mais antiga, é a que contrasta o Norte e o Sul do país. Esta diferenciação secular, que traduz fatores geográficos (por exemplo, o clima) e histórico-culturais (ocupação por povos provenientes da Europa central, no primeiro caso, e do Norte de África, no segundo), prevaleceu enquanto fomos um país essencialmente rural, como descreveu o geógrafo Orlando Ribeiro no seu magnífico livro Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico. A segunda espacialidade, bem identificada pelo sociólogo Adérito Sedas Nunes, emergiu com a modernização que ocorreu a partir do final dos anos 1950, e opõe um litoral urbano-industrial, demograficamente dinâmico e com melhores infraestruturas e equipamentos, a um interior rural, fustigado pela emigração, em declínio demográfico e económico. A partir dos anos 1980 começa a tornar-se mais clara uma terceira espacialidade, através do destaque positivo das áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, das principais cidades médias e de áreas turísticas como o Algarve, em detrimento do resto do país, incluindo alguns municípios do litoral.
O território nacional reflete a imbricação destas três espacialidades?
Exato, por isso, e do ponto de vista dos desequilíbrios espaciais, é importante apostar em simultâneo na valorização da diversidade geográfica existente, no reforço do sistema urbano como fator de coesão territorial e na reconversão das áreas demograficamente em perda, para que o despovoamento não se transforme em abandono. Entretanto, quem sabe, talvez esteja em embrião a emergência de uma quarta espacialidade, com uma geografia ainda desconhecida, estimulada pelo impacto conjugado de uma constelação de fatores distintos: novos fluxos imigratórios, transição digital, turismo de experiência, gentrificação rural, agricultura regenerativa, remuneração de serviços ecossistémicos, etc.
Quase parece contraditório, mas o despovoamento também afeta as maiores cidades do país…
De facto, as áreas centrais de Lisboa e do Porto perderam nos últimos 30 anos mais habitantes do que todo o interior do país. E, paradoxalmente, é nessas áreas que coexistem, lado a lado, valores mais elevados tanto de fogos devolutos (expectantes) como de alojamentos sobrelotados (imigrantes). O esvaziamento demográfico dos centros das cidades deve-se ao efeito cumulativo de vários fatores: crescente degradação do edificado por ausência de políticas de reabilitação urbana; deslocação, nomeadamente de casais mais jovens, para áreas menos centrais ou mesmo suburbanas aquando da aquisição de casa própria; e, mais recentemente, “expulsão” de uma parte dos moradores que restavam por refuncionalização do edificado para atividades turísticas (hotéis, alojamento local) ou por processos de gentrificação, sobretudo em imóveis reabilitados, muitas vezes ocupados por estrangeiros com uma presença irregular ao longo do ano. Esta mesma tendência de esvaziamento demográfico dos centros históricos verificou-se em muitas cidades de outros países.
Quais as melhores estratégias para a inverter?
Não é tarefa fácil recuperar as áreas centrais das cidades para a função residencial destinada a segmentos não ricos da população. Mas existem estratégias, políticas e medidas aplicadas, por exemplo, em cidades europeias que têm tido algum sucesso, sobretudo se concretizadas de forma coerente e com continuidade no tempo: aposta na reabilitação urbana, penalização do uso de edifícios residenciais para fins não habitacionais, definição de quotas mínimas de fogos para arrendamento acessível em novas operações urbanísticas, estímulo a formas de habitação partilhada, etc.
Geografia dos lugares e dos afetos
Durante a infância, João Ferrão passava horas a rabiscar mapas de territórios e lugares imaginados e, já na adolescência, ficou fascinado com um livro, A Viagem Maravilhosa de Nils Holgersson, da escritora sueca Selma Lagerlof, em que uma criança, montada num ganço, vai admirando e descrevendo o que vê a partir do céu. “Uma antecipação ingénua dos atuais poderosos sistemas de observação da terra a partir de satélites”, diz-nos o geógrafo, para quem “mapas e viagens, descrição e imaginação, semelhante e diferente, presente e futuro” são “fundações emocionais” de um percurso profissional com várias décadas.
Neste caminho de horizontes largos, sempre à procura de saber mais, a Universidade de Lisboa deixa, igualmente, uma marca indelével. Foi lá que começou por se licenciar em Geografia e fazer o Doutoramento em Geografia Humana, a que se seguiram o ensino, a investigação e a coordenação do Instituto de Ciências Sociais. Entre 2005 e 2009 foi secretário de Estado do Ordenamento do Território e também nessas funções deixou marca, ao lançar as bases para a primeira Política Nacional de Ordenamento do Território.
Há cinco anos que é coordenador da plataforma ODSlocal, iniciativa que visa mobilizar os municípios e outras entidades para a concretização, ao nível local, dos ODS. Diz que este desafio foi “a cereja em cima do bolo” e “uma prenda inesperada”, por “poder contribuir para que a Agenda 2030 seja parte integrante de quem pensa, atua e age enquanto decisor”. Afinal, “para quem olha para a relação ecologia-comunidades-economia a partir dos territórios, dificilmente poderia ter uma tarefa mais recompensadora”, concretiza.
Este artigo foi originalmente publicado na edição nº 46 da Smart Cities – Janeiro/Fevereiro/Março 2025.