Perante a Covid-19, qual a importância do espaço público nas cidades? Será este o momento para pensar uma cidade inteligente cada vez mais humanizada? Vejamos como desenhar a vida entre edifícios nas cidades contemporâneas.
Não é fácil responder a estas questões, porque não dispomos de informação suficiente sobre quando terminará a pandemia e, de momento, não podemos senão especular a respeito do seu impacto na cidade a longo prazo. Contudo, uma lição que podemos tirar dos últimos seis meses [entre o começo da pandemia e finais de 2020], é que o espaço público assume um protagonismo maior nos bairros onde vivemos, porque se expressa como extensão da casa.
Se, inicialmente, assistimos a ruas e praças vazias devido às recomendações dos governos para não sair de casa, entretanto, com o retomar das atividades do dia-a-dia, o espaço público torna-se, novamente, chave na discussão do futuro das cidades saudáveis. Na segunda fase da pandemia, ao ter de ficar em casa em regime de teletrabalho ou ao ir para o trabalho de forma segura, alteram-se as rotinas dos cidadãos na utilização das ruas, praças, jardins e parques. Muitas pessoas descobriram, de forma mais lúcida, a cidade e os seus vizinhos, e começaram a rever, ponderar e hierarquizar as suas necessidades (Figura 1).

Figura 1. Public Space & Public Life during COVID-19 . (https://gehlpeople.com/announcement/public-space-public-life-during-covid-19/). Tradução e adaptação: Smart Cities
Nesta reflexão, dois pontos se destacam. O primeiro prende-se com uso ativo dos jardins dos bairros, uma vez que as pessoas têm mais tempo para estar com a família, e com a criação de esplanadas em via pública para que os restaurantes e cafés possam estar abertos. O uso partilhado de ruas e espaços aumentou, permitindo a venda de rua, organizada em determinados dias ou horas do dia, ou para atividades de lazer, assistir a espetáculos ou aulas de ginástica. Estes usos têm sido fundamentais para reduzir os níveis de stress, na melhoria da saúde mental, no bem-estar da comunidade e o desenvolvimento saudável das crianças.
O segundo prende-se com a mobilidade suave e o andar a pé. Estes não são temas novos, porém, assumem um novo protagonismo, também, no centro da discussão perante a Covid-19. Um exemplo é a decisão de Anne Hidalgo (2020), presidente da câmara de Paris, ao lançar o objetivo de transformar a capital de França numa “cidade de 15 minutos”, ou seja, uma cidade em que o cidadão levaria apenas 15 minutos de bicicleta, trotinete ou a pé para chegar ao trabalho, aos serviços, ao comércio e aos equipamentos de lazer. Sublinha-se, neste sentido, cada vez mais o olhar crítico e abrangente de todos sobre a significativa relação destes fluxos com o desenho do espaço público na cidade existente. Chama-se a atenção para a peso do espaço comum e para o restabelecimento de uma relação saudável com o ambiente urbano. Revêem-se princípios como os definidos por Gehl e Svarre1 (2013), ou seja, os ritmos, já que os modos suaves não são apenas meios de mobilidade são, igualmente, modos de estar e de encontro. A deslocação entre dois pontos corresponde à fruição do intervalo que favorece relações na vida entre edifícios.
Na mensagem da UN-HABITAT sobre a Covid-19 e o espaço público (2020), a entidade internacional alerta para várias lacunas no desenho do espaço público, como a acessibilidade, a gestão e manutenção, o desenho, a flexibilidade, a conectividade e a distribuição equitativa na cidade, e recorda como estes elementos são também parte da resposta à pandemia. Isto é ainda mais verdadeiro, sobretudo, porque temos os instrumentos e os processos necessários. As análises espaciais, mapeamentos de ativos, avaliações de risco e vulnerabilidade baseados em evidência informam estratégias de curto, médio e longo prazo. Ao associarmos à investigação transdisciplinar project-based research obtemos respostas cada vez mais rigorosas às transformações complexas orientadas para o futuro.

Figura 2– iLOUNGE, ZER01 Bienal, São José. Marcella Del Signote + Mona El Khafif (http://2012.zero1biennial.org/Marcella-del-Signore-and-Mona-El-Khafif)
Perante estes fatores, arquitectos e urbanistas são chamados a ter um papel ativo no desenho de soluções para a requalificação dos espaços públicos. Agora, fazem-no também através da transformação digital associada à cidade inteligente, porque é chave fundamental para atingir os princípios desejáveis de sustentabilidade, inclusão, resiliência e segurança. E tal não acontece pela pura digitalização, visualização de grandes dados ou desmaterialização de processos, mas tirando partido da capacidade da inteligência coletiva assente numa abordagem de co-criação aberta no espaço físico, garantindo que os bairros antecipam e atendem às necessidades de todos. É obrigatório que o espaço público seja desenhado e vivido nas suas diferentes dimensões (social, política, cultural, ambiental, económica, etc.).
A hibridização dos espaços das cidades reforça os argumentos de Burry (2019) ou Concilio e Rizzo (2016) de que cidadãos inteligentes devem participar no desenvolvimento de cidades inteligentes. As cidades devem ser desenhadas com as pessoas e não para pessoas. Del Signore e Riether (2018) defendem a interação, integração, expansão, hacking e conexão como modo de operar. Para Mulder (2015), os cidadãos devem ser estimulados a construir a transformação da cidade.
A comunicação bidirecional – construído e virtual – implica o envolvimento das pessoas em todos os estágios do projeto num relacionamento contínuo. Os processos alteram-se tornando-se um ciclo de feedback. É possível testar e desenvolver de forma criativa e cívica (desenhada), com tecnologia para aprender, prever e prescrever assente em necessidades individuais, preferências e ideias para cidades futuras por meio de investigação social inovadora, explorando na plenitude a ubiquidade de dispositivos inteligentes e da IoT (Internet of Things). A informação gerada pela comunidade, no desenho e ocupação dos espaços, ajuda na flexibilização do uso para que estes sejam seguros.

Figura 3 – TUR’20 – Technopolitics in Urban Regeneration (https://turcocreating.weebly.com/muleta-783160.html) ©Ana Carolina Cardoso
Recoded City: Co-Creating Urban Futures (2016) e Urban Machines: Public Space in a Digital Culture (2018) apresentam um conjunto de experiências, pré-Covid-19, que apontam já para a necessidade de processos cada vez mais colaborativos desenvolvidos entre arquitetos, urbanistas, artistas, media designers, economistas e cientistas da computação. Esta paisagem particular de projetos envolve a tecnologia como ferramenta catalítica para expandir, aumentar e alterar as interações sociais no espaço urbano físico (Figura 2). Exemplos da relevância de modelos integrados que levam em consideração não apenas os sistemas tecnológicos, mas também o espaço físico e as pessoas que o habitam. O acompanhamento do impacto destas propostas pode, igualmente, ajudar a compreender as mudanças que devem ser adotadas, fornecendo uma oportunidade de aprendizagem crítica para o desenvolvimento de teorias de urbanismo open-souce: Urbanismo Tático, Urbanismo DIY, Acupuntura Urbana e Prototipagem Urbana (Figura 3).
É o tempo certo para pensar o espaço público urbano contemporâneo, por meio da transformação digital que informe o desenho, os governos locais, o exercício dos cidadãos no direito à cidade digital e a definição de novas normas, regras, métricas e princípios que prioritizem a saúde urbana. Em suma, a cidade inteligente tem de ser desenhada com todos, com o objetivo primordial da vida entre edifícios cada vez mais acessível, aberta e inclusiva.
Fotografia: © Ana Carolina Cardoso
Notas:
1- Jan Gehl and Birgitte Svarre, (2013).How to Study Public Life (Washington, DC: Island Press)
Este artigo foi originalmente publicado na edição nº 29 da Smart Cities – Outubro/Novembro/Dezembro 2020, aqui com as devidas adaptações.