Boyd Cohen, um dos pioneiros das smart cities e criador da Roda das Cidades Inteligentes, esteve em Portugal para participar na Semana B-Smart Famalicão, onde falou de novos projectos e dos desafios da MaaS (Mobility as a Service), que diz estar a atravessar a fase do “Vale da Desilusão”. À Smart Cities fez também uma retrospectiva da última década e revelou como espera ver as cidades daqui a dez anos. Para o especialista, caminhamos para a afirmação da mobilidade eléctrica e partilhada, combinada com a mobilidade activa e com os transportes públicos.

Desenvolveu a Roda das Cidades Inteligentes (Smart Cities Wheel), que permite fazer uma análise comparativa das cidades. Agora, mais do que se compararem em rankings com as referências mundiais, as cidades devem preocupar-se, acima de tudo, em definir uma estratégia e uma identidade próprias?

Sim, sem dúvida. A Roda também já tem uma década! Penso que serviu um propósito importante para as cidades e outros stakeholders do sector das cidades inteligentes e a prova é o número de vezes que tem sido citada em investigações académicas, bem como em planos de cidades inteligentes em todo o mundo, além da quantidade de vezes que foi traduzida. Hoje em dia, as organizações continuam a utilizá-la, mas menos como análise comparativa e mais como um guia que garanta uma verdadeira abrangência na reflexão de estratégias e prioridades, de modo a concentrarem-se verdadeiramente na comunidade.

Depois da Roda das Cidades Inteligentes, desenvolveu o Hexágono das Cidades Felizes (Happy Cities Hexagon). Em que medida é que estes dois modelos se distinguem e complementam?

A Roda das Cidades Inteligentes foi desenvolvida quando eu tinha o modelo mental daquilo a que chamo Smart Cities 2.0, que está ligado a uma abordagem top-down (de cima para baixo) e a uma abordagem de gestão das cidades inteligentes. Ao longo dos anos, comecei a aperceber-me de que havia uma forma complementar de pensar as cidades inteligentes a partir de uma perspectiva do cidadão, centrada no ser humano (bottom-up). Refiro-me a isto como Smart Cities 3.0. Assim, o Hexágono foi criado em parceria com o Rob Adams, da Six Fingers, como uma forma de pensar na co-criação pelos cidadãos, tendo como objectivo final a felicidade e o bem-estar, mais do que a tecnologia inteligente.

Recentemente, lançou mais uma roda, a WheelCoin, um projecto da Iomob que recompensa as escolhas sustentáveis de quem anda a pé, de bicicleta ou de transportes públicos, por exemplo. Em que consiste esta app e que vantagens traz?

É verdade. Acho que gosto de rodas [risos]. As rodas são uma das melhores invenções que a humanidade criou, por isso… A WheelCoin tem como objectivo gamificar e recompensar escolhas de mobilidade mais ecológicas por parte de cidadãos e funcionários. Actualmente, temos utilizadores em 140 países de todo o mundo. A WheelCoin detecta quando os utilizadores optam por andar a pé, de bicicleta, de comboio ou de autocarro, de ferry, de carro ou de avião e recompensa-os com um token de fidelidade verde quando, graças às suas escolhas, poupam emissões de gases com efeito de estufa. Os utilizadores podem, então, converter os tokens em recompensas, desde transportes gratuitos e com desconto, até à aquisição de coleccionáveis digitais.

A região de Skåne, na Suécia, e a cidade de Santiago, no Chile, foram as primeiras a juntarem-se à WheelCoin. cidades portuguesas, como Lisboa e Porto, já estão preparadas para implementar uma plataforma como esta?

Espero que sim. Esta é uma das razões pelas quais me desloquei a Portugal para participar no evento smart cities [Semana B-Smart Famalicão]. A WheelCoin é uma forma fácil e divertida de envolver os residentes e os visitantes numa solução para as alterações climáticas e, ao mesmo tempo, é uma forma de alcançar a mudança modal dos carros particulares para uma utilização mais sustentável, partilhada e de transportes públicos.

Uma vez comparou esta ferramenta a uma espécie de milhas aéreas para a mobilidade verde. A sustentabilidade é uma condição fundamental em todos os projectos que lança e em que participa?

De facto, é assim que vemos a WheelCoin. É um token de fidelidade concebido para recompensar as escolhas de mobilidade ecológica em qualquer parte do mundo. E, realmente, a Iomob, a empresa que co-fundei em 2018 e que criou a WheelCoin, é a sexta start-up que desenvolvi na minha carreira e todas elas estiveram [enquadradas] na área da sustentabilidade. Tive duas start-up na área dos edifícios ecológicos, alguns projectos em cidades inteligentes, um nos mercados de carbono e alguns centrados no apoio aos residentes e visitantes das cidades para se juntarem à viagem da sustentabilidade.

Está a viver em Barcelona, uma referência mundial em matérias de cidades inteligentes, onde desenvolve a Iomob. As soluções deste projecto estão desenhadas para serem implementadas com sucesso num contexto global?

Sim, adoro viver em Barcelona. Tem uma óptima mistura de cultura e história locais com valores e pessoas cosmopolitas. A cidade, como diz, tem sido pioneira na Europa na adopção de tudo aquilo de que falámos: cidades inteligentes 2.0, co-criação por cidadãos, mobilidade inteligente, etc. Mas a Iomob é uma start-up global nata. Os nossos primeiros projectos foram na Nova Zelândia, na Suécia, nos Estados Unidos e em Espanha. Actualmente, temos projectos em Portugal, no Reino Unido e, em breve, também no Médio Oriente.

Sendo a Iomob uma solução de software global para o mercado da mobilidade on demand, como poderá mudar os hábitos de mobilidade das pessoas e tirar partido de ofertas mais conectadas e sustentáveis, como a MaaS (Mobility as a Service)?

Existem mais de dez mil serviços de mobilidade partilhada em todo o mundo. A indústria está muito fragmentada, o que dificulta as deslocações porta-a-porta das pessoas. Como resultado, as pessoas optam pelo que é mais fácil para elas, por exemplo, usar o automóvel. Ao resolver este cenário de mobilidade fragmentada, a MaaS pode fazer com que as pessoas se desloquem livremente entre as cidades e dentro delas, acedendo a uma gama de mobilidade pública, privada e partilhada para chegarem ao local que desejam e deixarem o carro em casa!

Boyd Cohen esteve em Portugal em Junho para participar na Semana B-Smart Famalicão.

Por que razão o conceito de MaaS ainda não escalou? Quais são as principais resistências e dificuldades que enfrenta a uma escala global?

Essa é uma pergunta importante. Os desafios devem-se a muitos factores: resistência dos vários modelos de negócio já existentes a juntarem-se às redes de mobilidade, receando a perda de algum controlo e relacionamento directo com os utilizadores, mas também modelos empresariais deficientes, desafios tecnológicos como garantir que todos os operadores disponham de plataformas que permitam a partilha de dados necessária para fazer parte da MaaS, e muito mais. Durante a última década, passámos por todo o hype cycle com a MaaS. Durante este período,assistimos a uma série de experiências em torno de abordagens ao MaaS (B2C, B2B, B2B2C, local, regional, nacional, aplicações de marca branca, etc.). No ano passado, a Gartner Research publicou uma análise interessante sobre as diferentes formas de mobilidade e concluiu que a MaaS está na fase do chamado “Vale da Desilusão”, que, como se pode ver, acontece mesmo antes de o mercado atingir a maturidade. Penso que esta é a fase em que nos encontramos actualmente. Muitos modelos de negócio e muitas abordagens de MaaS que falharam estão fora do mercado e o que restará serão modelos de negócio e abordagens mais escaláveis. Acredito que a MaaS vai reemergir (talvez com outro nome?) e ter sucesso, mas tem sido um mercado difícil, é verdade.

Também se tem interessado pela tecnologia blockchain. Como é que esta e outras novas tecnologias, como a Web3 ou o Metaverse, podem trazer valor acrescentado às cidades?

A Iomob, que significa Internet of Mobility (IoM), foi uma das primeiras empresas do mundo a identificar a oportunidade de explorar ferramentas de blockchain para facilitar uma rede global, interoperável e descentralizada da Internet da IoM. Quando começámos em 2018, éramos demasiado precoces, pelo que construímos a rede Iomob como uma solução Web 2.0 com um espírito aberto. Este espírito aberto que tínhamos desde o início foi útil, ajudando-nos a garantir clientes em todo o mundo que procuram uma abordagem mais modular, aberta e interoperável, não apenas para a mobilidade local da cidade, mas também para abordagens regionais e até nacionais ou internacionais para a MaaS. Estamos prontos para descentralizar a rede Iomob, pois acreditamos que as tecnologias de blockchain e o ecossistema de mobilidade estão aptos a adoptarem esse modelo que pode misturar o melhor da Web 2 e da Web 3, descentralizando e democratizando o multifacetado mercado de mobilidade. Entretanto, a WheelCoin é uma solução nativa da Web 3. Os activos digitais conquistados pelos utilizadores (colecções digitais, tokens de recompensa, etc.) estão todos no blockchain.

Olhando para a última década, quando lançou a Roda das Cidades Inteligentes, e perspectivando os próximosdez anos, quais poderão ser as maiores conquistas e os maiores desafios das cidades inteligentes?

Esta é, certamente, uma pergunta à qual é difícil responder. Mas vou dizer-lhe o que espero que aconteça nos próximos dez anos, embora algumas destas ideias possam ser controversas: uma aceleração da transferência modal para a mobilidade electrificada e partilhada, combinada com a mobilidade activa e com os transportes públicos, com uma utilização reduzida ou nula do automóvel particular nos centros das cidades; um novo foco no conceito de Cidade dos 15 minutos, segundo o qual a maioria das pessoas pode viver, trabalhar e divertir-se num raio de 15 minutos (sem carro), a partir do local onde vive; e uma adopção acelerada de energia renovável nas cidades, reduzindo a dependência das redes eléctricas nacionais e dos combustíveis fósseis. Também uma maior adopção de coisas como a Fab City, que envolve a produção local da maior parte daquilo que é consumido (alimentos, energia, vestuário, edifícios), ao mesmo tempo que se vive de forma global. E, por fim, a adopção de uma actividade económica mais regenerativa em cidades mais inclusivas a todos os níveis de rendimento, bem como mais experimentação com moedas locais e blockchain.

O ESTRATEGA E PENSADOR DAS CIDADES

Considerado um dos pioneiros das smart cities, Boyd Cohen é um estratega urbano, autor e empresário, tendo divulgado, em 2012, a Roda das Cidades Inteligentes (Smart Cities Wheel). Amplamente citada e traduzida, esta foi criada como uma estrutura para desenvolver e implementar as estratégias das cidades inteligentes, permitindo fazer uma análise comparativa entre elas.

Hoje, o norte-americano está ligado à área da mobilidade e ao conceito de MaaS (Mobility as a Service), nomeadamente através da empresa Iomob, sediada em Barcelona, de que é co-fundador.

Boyd Cohen foi um dos oradores do Fórum B-Smart, organizado durante a Semana B-Smart Famalicão, realizada na cidade minhota entre 21 e 25 de Junho. Na sua intervenção, deu especial destaque à temática da MaaS, abordando, por exemplo, os processos de gamificação ou blockchain associados, sempre com o intuito de se ver a mobilidade como forma inteligente de ajudar as cidades.


Este artigo foi originalmente publicado na edição nº 40 da Smart Cities – Julho/Agosto/Setembro 2023.