À frente do Institut Municipal d’Informàtica de Barcelona durante os anos em que a cidade se posicionou na liderança mundial das cidades inteligentes, Manel Sanromà foi uma peça fundamental da estratégia digital catalã. O actual CEO da Fundació puntCAT esteve em Lisboa, e contou à Smart Cities o que levou Barcelona a abrandar o seu projecto smart e que lições as cidades portuguesas podem aprender com isso.

Esteve envolvido no grande projecto smart city de Barcelona. Lisboa e as restantes cidades portuguesas estão no início da sua jornada. O que podemos aprender com a experiência catalã?

Em primeiro lugar, compreender que os projectos smart city são projectos políticos. Com isto quero dizer que têm de ser feitos sob a liderança da câmara municipal, ou seja, por governantes de um partido político ou numa coligação e, por isso, é um projecto que tem de ter uma estratégia e visão, mas, o mais importante, é que tem de ser comunicado à população. As pessoas são, no fim de contas, aquelas que dizem se ficamos ou não. Podemos ter toda a capacidade técnica e até política, mas, se não formos eleitos, não vamos ter o poder para o concretizar. O negócio das smart cities de vender novas tecnologias – claro que há um negócio – cabe às empresas e também à investigação… Já a liderança de um projecto smart city tem de vir do município. De seguida, não se pode fazer isto sozinho. É preciso fazê-lo com empresas, não apenas comprando serviços, mas infra-estruturas e, a propósito, se se juntar o projecto smart city com os serviços da cidade – água, iluminação, resíduos –, não será preciso um orçamento especial. Basta alocar uma pequena percentagem do orçamento dos serviços para fazer coisas de forma inteligente. Dentro do município, é preciso fazê-lo com diferentes departamentos, e, claro, com parceiros especiais de empresas e centros de investigação. É o tripé – governo, empresas e academia.

Barcelona conseguiu fazê-lo?

Sim, fez. O vice-presidente da altura, Antoni Vives, era o líder do projecto e criou um grande departamento dentro do município chamado Urban Habitat, que incluiu todos os serviços municipais e chegou aos 70% do orçamento. Era um grande projecto na altura, e tivemos parceiros empresariais que fizeram uma aposta na cidade sem nenhum retorno particular, apenas para estar com o município e juntar-se à marca da cidade. Eles eram os interessados em juntar-se a nós. Há empresas que “matariam” para se juntar a Lisboa, porque Lisboa é uma cidade, mas também é uma marca.

E o que correu mal?

Em Barcelona, este era um projecto fantástico, que ainda está muito vivo mas que foi cortado porque um novo partido chegou ao poder e disse que este era o negócio dos capitalistas, de dar dinheiro às empresas. A estratégia foi mal-entendida, o executivo seguinte disse que estávamos a vender a cidade à Cisco ou à Microsoft e isso não era verdade, pois não havia nenhuma ligação comercial a estas empresas. Não entendeu do que se tratava, mas, no fim do dia, foi quem venceu as eleições e por isso o projecto teve as suas dificuldades. Por isso, lembrem-se de que têm de ganhar eleições, caso contrário acontece o mesmo que em Barcelona.

Às empresas, interessa-lhes a marca da cidade ou os dados e outros negócios que podem surgir daí?

Estão à procura do negócio, claro, mas o que quero dizer é que não é preciso fazer um acordo comercial específico. Os grandes sabem que trabalhar com cidades como Barcelona, Lisboa ou Nova Iorque é bom para o seu negócio. Não é preciso dar-lhes dinheiro, é uma situação win-win. Mas tudo isto tem de ser muito transparente e muito bem explicado aos eleitores, pois são eles que vão permitir que se continue o projecto.

São as cidades que têm o trunfo nas negociações?

A cidade tem de estar limpa, tem de fornecer água aos seus cidadãos, mobilidade… E isto é muito dinheiro, dia-a-dia. Mas se não houver uma visão estratégica para este dinheiro, ele desaparece sem que se dê conta. Se Lisboa gastar centenas de milhares de euros todos os anos para estes serviços, 1% deste valor é muito para tentar fazer as coisas de forma diferente e mais inteligente. Isto é smart city. Não é preciso um orçamento especial. Mas é preciso explicar às pessoas que se vão usar os impostos para fazer coisas mais bem feitas e para isso é, mais uma vez, preciso parcerias com os grandes. São estas empresas que vos vão dar as suas tecnologias de graça.

As cidades portuguesas foram muito afectadas pela crise e, nesse caso, é preciso liderança para resistir à tentação de aceitar qualquer investimento…

É preciso liderança e também passar a mensagem aos cidadãos, não apenas palavras, mas exemplos concretos de que os seus impostos e votos são válidos para melhorar a vida das cidades. Isto é chave: liderança e comunicação. Uma das coisas que mais bem fizemos em Barcelona foi mostrar às pessoas que isto era bom para a economia da cidade, num sentido muito pragmático. Barcelona tem muito turismo, e associamos turismo a pessoas de calções e óculos escuros, mas 20% do turismo da cidade é profissional, pessoas que vão assistir a conferencias, reuniões, etc. Isso é bom, é um turismo que vai para os hotéis e não para apartamentos e resulta das parcerias com empresas que promovem outras pequenas empresas na cidade, que atraem talentos estrangeiros. Isso foi percebido pelas pessoas e sobre o qual não houve discussão. Mas, depois, surgiu o debate de que é apenas tecnologia para os ricos, e não foi possível quebrar esta conversa de Luddites… É complicado.

Há um problema com o termo “smart city”? Será preciso um rebranding?

Penso que sim! “Cidade” é um termo simpático, tal como “mãe”, que, em qualquer idioma, é uma palavra bonita. Mas se lhe colocarmos o “smart”, podemos estar a falar de um tipo especial de mulher, mais sofisticada e, aí, já não é a mesma coisa. Acontece o mesmo com “cidade”, que é uma palavra simpática. Mas o smart pode soar muito sofisticado, tecnológico, e pode evocar algo que não é bom ao nível da comunicação. É algo que surgiu das empresas. Eu não gosto nada do termo, porque falamos de tecnologia e de cidades. Preferiria mudar para “cidades tecnológicas”, mas… Temos de insistir na palavra “cidade”, porque todos têm a sua. Um caso real: uma colega nossa encontrou uma senhora mais velha que conhecia e que estava a usar um dispositivo que a ligava ao médico, pois tinha diabetes ou assim, e perguntou-lhe como ela estava; a outra respondeu-lhe que estava “muito bem” e contou como a sua vida tinha melhorado com aquele gadget; e a colega disse-lhe: “a tecnologia torna a vida melhor”, ao que a senhora respondeu “qual tecnologia?”. Provavelmente, as pessoas não sabem o que é tecnologia. Aqueles que sabem o que é percebem que praticamente tudo é tecnologia.

A forma como estamos a desenvolver as tecnologias é adequada às necessidades sociais?

Tecnologia é, no fim de contas, o que as pessoas adoptam e é isso que vai ditar o seu sucesso, caso contrário desaparece. O smartphone é um sucesso porque praticamente todos o adoptámos.

Na sua apresentação, falou de várias escalas, desde as pessoas ao planeta, mas não falou do papel Estado-nação.

Talvez eu esteja condicionado por ser catalão [risos]. Nós não acreditamos em Estados e não temos um. Na minha visão pessoal, os Estados são organizações desactualizadas. O local onde as coisas acontecem é nas cidades. Lisboa está mais preocupada com o que acontece em Londres ou em Madrid do que com o que acontece em cidades portuguesas mais pequenas. Na Europa, os Estados-nação estão a colapsar na medida em que não lidam com os verdadeiros problemas das pessoas. Os migrantes não estão a ser aceites pelos Estados – o primeiro-ministro diz “entrem” ou “vão embora”, mas, no fim do dia, é em Valência ou Lisboa que as coisas acontecem. Na minha visão, os autarcas vão ter mais protagonismo no futuro próximo e os Estados vão, de alguma forma, desaparecer. O Estado não é uma escala natural. As escalas naturais são tu, eu, a casa onde vivemos, onde partilhamos coisas com outros, onde construímos coisas juntos, as cidades e as redes de cidades no mundo. Os Estados são históricos, culturais, têm a ver com identidade, claro, mas não há só uma identidade num Estado. Portugal é uma das nações na qual estes elementos estão mais coesos, mas olhe para Espanha: os catalães nunca serão espanhóis e não há problema, nós podemos partilhar um Estado, uma moeda. É algo que tem a ver com identidade, mas que não é natural.

Disse também que cada cidade é diferente, mas que há um terreno comum e, por isso, as soluções não podem ser assim tão diversas. Isso não ameaça a identidade das cidades?

A identidade da cidade é a alma, não tem a ver com tecnologias, mas com cultura, história… Venho a Lisboa e é única, tal como as pessoas. Cada um de nós é único, mas se quisermos resolver os nossos problemas, precisamos de psicologia, medicina, ciência. Não há um comprimido especial para cada um de nós. Há remédios comuns para problemas. Claro que a identidade desempenha um papel aqui, com diferenças óbvias, mas os problemas grandes são comuns. Neste sentido, as cidades devem olhar para os seus problemas comuns que pedem soluções comuns.

E qual o risco que deriva daí?

Não é um risco, é, provavelmente, uma fase na evolução. Se tivermos um mercado comum podemos progredir melhor. Ainda estamos longe de uma ciência ou de um mercado de smart cities nesse sentido. É normal que as empresas queiram vender muitas vezes a cidades diferentes as suas soluções. Mas as cidades devem olhar de forma transversal e é aqui que devem colaborar umas com as outras. Hoje, temos diferentes tipos de táxis e soluções de mobilidade, imagine que as grandes cidades se juntam e dizem que vão comprar táxis voadores. Em três ou quatro anos, vão existir táxis voadores. O que quero dizer que as cidades têm de criar o mercado e não o contrário. Não é o mercado que vai dar as soluções aos seus problemas. Não estou a dizer que as cidades vão criar um laboratório global, mas que elas são em si laboratórios vivos e é aqui que se tem de desenvolver uma ciência e um mercado globais.

 

“Uma das coisas que mais bem fizemos em Barcelona foi mostrar às pessoas que isto era bom para a economia da cidade, num sentido muito pragmático”.

Quais as tecnologias que vão romper com a forma como vivemos as cidades?

Deep learning, sem dúvida…. Ouve-se falar de dados abertos e é claro que os dados devem ser abertos, mas no sentido em que as pessoas podem aceder-lhe, porque têm esse direito. Se os produzimos, temos o direito de decidir para que mãos quem estes vãos. Nesse aspecto, tenho mais confiança nos governos democráticos do que em empresas… Estamos nos anos em que a quantidade de dados está a crescer exponencialmente e, quando se junta isso a deep learning ou inteligência artificial, vai algo ser impressionante na próxima década para cidades. As cidades vão conseguir aprender o que as suas pessoas querem e do que precisam. Agora, temos ainda de lhes perguntar, imaginar, improvisar. A cidade está a falar, as pessoas estão a falar, onde vão, o que compram. Veja-se os cuidados de saúde, são fornecidos em hospitais, centros de saúde, etc., literalmente sabemos os locais onde as pessoas vão. As cidades ainda não estão a usar esses dados. Com apenas uma pequena quantidade do orçamento para a saúde, podemos ter os dados e fornecer serviços de mais qualidade e mais baratos. E os dados estão ali! Isto sem falar em toda a investigação que está a ser feita sobre saúde e que está já nos registos clínicos de milhões de pessoas. É importante que isso seja partilhado por diferentes cidades, porque é algo que é humano e é igual em Lisboa ou noutra cidade qualquer.

As cidades portuguesas estão a ser fortemente pressionadas pelo turismo e isso está a ter efeitos ao nível social, em particular nos preços da habitação. Como podemos lidar com isto?

Mais uma vez, com dados! Só temos estatísticas e isso não são dados. São dados filtrados e desactualizados. Precisamos de fazer crescer dados de hoje, fazer políticas e medi-las não na escala anual, mas diária e experimentar. Experimentar como os preços sobem ou baixam quando se faz isto ou aquilo. Esta experimentação de políticas pode e deve ser feita. Cada pessoa e cada turista é um fornecedor de dados e temos de aproveitar.