Num país que desperdiça quase um terço da água que entra nas redes de abastecimento, a inteligência artificial pode ser uma aliada de peso no combate às roturas, avarias e desvios, com grande impacto na redução de custos. Conheça as vantagens, as limitações e os projetos que já utilizam esta tecnologia.

Cerca de 184 milhões de metros cúbicos é quanto perde por ano o serviço de abastecimento público de água em Portugal, de acordo com o último relatório da Entidade Reguladora dos Serviços de Água e Resíduos (ERSAR). Se o país conseguisse reduzir este desperdício iria poupar não só milhões de litros, mas também milhões de euros e muitas horas de trabalho, desde logo na localização e reparação de ruturas.

É nesse contexto que a inteligência artificial (IA) e outras tecnologias podem ajudar a criar sistemas mais eficientes, seguros e menos dispendiosos. De acordo com os especialistas, as vantagens dizem respeito não só à eficiência hídrica, graças às perdas de água que se evitam ou localizam mais facilmente, mas também à própria poupança energética, ao permitirem reduzir consumos ou baixar despesas associadas.

Para Joaquim Sousa, professor e coordenador da área de hidráulica do Instituto Superior de Engenharia de Coimbra (ISEC) “a inteligência artificial e outros algoritmos semelhantes trazem um grande potencial ao setor da água”, nomeadamente no apoio às políticas de monitorização dos sistemas de abastecimento e às chamadas Zonas de Monitorização e Controlo (ZMC). “A dada altura recebemos tanta informação que deixa de haver forma de tratá-la, mas é aí que entra a IA porque ela consegue processar milhões de cálculos por segundo e isso ajuda-nos”, diz o investigador. “Se tivermos um algoritmo que identifica padrões ditos normais, em vez de precisarmos de olhar para tudo, esperamos que ele nos indique o que está a acontecer fora do normal num determinado setor e aí já podemos pegar na nossa inteligência natural e focarmo-nos só naquilo que vale a pena”, acrescenta.

Também por isso, faz questão de lembrar que, no fim da linha, deve haver sempre uma decisão do Homem, além de ser preciso “algum cuidado na sua utilização” porque muitas das ferramentas de IA baseiam-se num processo de aprendizagem assente no que aconteceu no passado. “Por exemplo, este último inverno foi relativamente anómalo, com vários dias de calor que se refletiram em consumos mais elevados. Se a ferramenta se baseou num histórico diferente do que aconteceu, é natural que depois nos dê informações que não correspondem a coisas verídicas”, explica Joaquim Sousa.

Ele próprio liderou o desenvolvimento científico de uma plataforma de monitorização de sistemas de abastecimento – a FLOW Water – que utiliza algoritmos de inteligência artificial para cruzar medições de pressão, identificar e localizar fugas de água, e ainda monitorizar níveis em furos e reservatórios de água.

“Na prática, esta ferramenta recolhe a informação da monitorização e transforma todos os números – porque para a IA aquilo são zeros e uns – e coloca-os à frente dos nossos olhos, destacando os maiores problemas. É como um filtro, que atua sobre os dados que chegam a cada instante e alerta quando algo não está bem. E, para isso, a inteligência artificial é fantástica”, defende o especialista.

Mais do que identificar fugas de água, o objetivo desta ferramenta passa também por localizá-las. Isto significa que, se numa primeira fase efetuava análises de padrões, agora procura utilizar ainda simuladores matemáticos, em conjunto com algoritmos de investigação operacional. Resultado? “Em vez de andarmos a pesquisar dezenas de quilómetros de condutas, podemos focar-nos num determinado quilómetro, poupando tempo e dinheiro”.

A FLOW Water já foi testada em algumas redes de municípios, “com resultados promissores”, mas para passar a uma fase de comercialização (através da empresa ENSO) será preciso embeber todo o conceito em linhas de código informático. Caso haja interesse em avançar, esta ferramenta Made In Portugal poderá chegar ao mercado em poucos meses e tornar-se uma aliada das entidades gestoras de água.

Porto dá o exemplo

Há alguns anos que a inteligência artificial é utilizada pela empresa Águas do Porto, contribuindo para a progressiva melhoria dos índices de água não faturada na cidade, cerca de 13,4%, segundo dados da ERSAR. O reconhecimento desta tecnologia chegou também através do prémio “Tubo de Ouro”, na categoria “Melhor projeto de inovação tecnológica e industrial”, atribuído pela Associação Portuguesa de Distribuição e Drenagem de Águas (APDA) ao projeto InnoWave – O Poder do Digital e da IA na Eficiência Hídrica.

A IA pode ser útil na identificação de fugas de água, agilizando a reparação das condutas

Com a missão de combater as perdas de água e melhorar a capacidade do abastecimento de água, este projeto resulta de três apps digitais: o CIL Pressure, que permite estimar as pressões ideais de água na rede; o Repair Leaks ASAP, cuja função é identificar e priorizar as condutas a substituir; e o H2 Leaks, que consegue prever quais as condutas que precisam de mais atenção, ajudando também a decidir as próximas ações de manutenção.

É precisamente nesta última ferramenta que a IA e a machine learning atuam, com resultados há muito comprovados, diz Flávio Oliveira, diretor de Abastecimento de Água da empresa municipal Águas e Energia do Porto. “Com ela temos ganhos superiores a 80% em termos de eficiência”, revela o responsável, que também identifica “benefícios tremendos e uma agilidade muito grande em termos de reparação”. Feitas as contas, essas vantagens têm reflexo na redução do desperdício, mas também no trabalho quotidiano das equipas: “Até há alguns anos, para descobrirmos alguma fuga de água não visível poderíamos demorar dias ou semanas, senão meses, a encontrá-la. Agora é raro ultrapassar as 24 horas, porque a ferramenta é atualizada todas as madrugadas, o que me permite ter informação concreta às sete da manhã e saber para onde enviar os técnicos”.

Flávio Oliveira acredita, por isso, que a utilização da IA no setor da água vai tornar-se uma inevitabilidade no futuro, mesmo em municípios e entidades gestoras de menores dimensões e capacidade financeira, até porque, lembra, a adoção desta tecnologia “é feita por passos e cada vez os degraus são mais fáceis de subir”. “É inegável que a inteligência artificial e a machine learning nos trazem valor acrescentado”, conclui.

Diferentes projetos, múltiplas aplicações

A inteligência artificial também já faz parte de muitos projetos de investigação e inovação da Indaqua, empresa dedicada à gestão de sistemas de abastecimento de água e de saneamento de águas residuais. Entre eles destaca-se, por exemplo, o ETAR Inteligente, que recorre a uma ferramenta de IA para otimizar processos de águas residuais. Com ele fica garantida uma maior eficiência das operações, diz o CEO do grupo, Pedro Perdigão, seja “na redução do consumo de energia e emissões de gases com efeito de estufa, no aumento da produção de energia (solar e valorização energética do biogás), na redução da geração de subprodutos (lamas, gradados, areias e gorduras) ou na maximização da sua valorização, potenciado a economia circular”.

ETAR de Matosinhos integra projeto que recorre a IA para otimizar tratamento de águas residuais

Este projeto é aplicado, por exemplo, na ETAR de Matosinhos, onde também se testou pela primeira vez em Portugal, em grande escala, uma nanotecnologia que ajuda a melhorar o desempenho dos microrganismos usados no processo de tratamento de águas residuais. É lá que a Indaqua estuda ainda um mecanismo que ajude a reduzir a utilização de produtos químicos, apoiado em algoritmos de machine learning e outros parâmetros que interpretam em tempo real os dados recolhidos por sensores.

Com grande expressão no universo das concessões municipais, este operador também está a desenvolver o projeto i2WaterChat, um assistente virtual que recorre a tecnologia de IA generativa capaz de gerar respostas automáticas sobre diferentes entidades gestoras. Já o GeoAI cruza modelos de IA aplicados à informação geográfica para identificar pontos críticos para a operação. “Por exemplo, ao analisar a variação da vegetação nas proximidades da rede, conseguimos identificar possíveis fugas de longa duração com base na correlação da presença de água com o crescimento da vegetação”, explica Pedro Perdigão. Por fim, destaque ainda para o projeto Leak Detection AI, capaz de utilizar algoritmos de inteligência artificial (machine learning) para prever a localização e a dimensão de fugas em sistemas de abastecimento de água.

O CEO da Indaqua defende que a utilização da IA assume um papel muito relevante para esta área e acredita que a sua aplicação no ciclo urbano da água irá assentar cada vez mais em três pilares essenciais: “Modelação dinâmica em real-time ou quasi real-time para suportar a tomada de decisões com base em análise preditiva de eventos futuros, processamento de big data por meio de algoritmos de machine learning e utilização de assistentes com IA, chatbots, na melhoria do serviço ao cliente”. Da academia às empresas, passando por muitos outros agentes, a opinião parece unânime: o setor da água está a começar uma nova revolução tecnológica e a inteligência artificial é parte incontornável deste futuro.

IA chega às águas termais

Dezanove entidades de Portugal, Espanha e França vão trabalhar durante três anos num projeto internacional, o AQUAPRED, com o objetivo de controlar preventivamente e de forma automática os contaminantes e elementos das águas termais, utilizando a inteligência artificial. Para isso, irá efetuar a digitalização de dados em tempo real e a análise contínua de diversos parâmetros, além de desenvolver um modelo deep learning que permita antecipar a presença de microrganismos, como a Legionella e a E.coli.

O consórcio, com um orçamento de 1,9 milhões de euros, integra três parceiros portugueses: as Termas de Chaves, o AQUAVALOR – Centro de Valorização e Transferência de Tecnologia da Água (CoLAB) e o Instituto Politécnico de Bragança.