Há dois ou três pontos, mas centro-me num que abraçámos desde o início e que tem que ver com o nosso conceito de serviço: fomos dos primeiros nesta indústria a defender o estacionamento mandatório das trotinetas eléctricas partilhadas. No início muito recente [do sector], em 2018, o que era advogado era o conceito de free-floating, isto é, o estacionamento livre, no qual a pessoa que quer ir do ponto A ao ponto B não tinha, num cenário ideal para o operador e para o usuário, uma linha limite de estacionamento. [Mas] As cidades não estão preparadas para as trotinetas e, aos poucos, começaram a dizer que era preciso criar alguma ordem. Nós [também] queremos criar essa ordem e criar condições para o crescimento da micromobilidade, que é uma nova alternativa de serviço. Por esse motivo, é importante criar estacionamentos específicos e caminhar para que seja possível aos operadores obrigar os utilizadores a estacionarem nestes espaços. De facto, achamos que, para legitimar a presença das trotinetas eléctricas na cidade como um parceiro de futuro na descarbonização e como modo de transporte alternativo viável, o estacionamento obrigatório deve fazer parte do serviço.
Com essa imposição, não se retira liberdade ao utilizador, que é uma das vantagens da micromobilidade?
Há 100 anos, as cidades também não estavam preparadas para os carros e não havia estacionamento automóvel. As cidades caminharam para criar essas condições de acordo com aquilo que foi a demanda. Nos próximos 100 anos, vai ser feito um caminho semelhante: perceber que há demanda [pela micromobilidade], retirar o monopólio das ruas aos carros e começar a equilibrar [o uso do espaço] com outras soluções de transporte. Isto acarreta, obviamente, um desafio, porque retira alguma liberdade a quem usa, mas dá a possibilidade às cidades de criarem opções ao utilizador para que a sua experiência não seja também negativa.
As cidades – e, em última instância, os utilizadores – ficam a ganhar com essa alteração?
O estacionamento obrigatório exige que haja um ponto de estacionamento, no máximo, de 200 em 200 metros. A grande vantagem das trotinetas é que, num único espaço de estacionamento automóvel, cabem 20 trotinetas, ou seja, 20 utilizadores. E, visto que são partilhadas, se houver rotação, de duas a três viagens, estamos a falar de 60 utilizadores num único lugar de estacionamento automóvel, que, na generalidade, é usado por apenas uma pessoa! Por isso, a questão do estacionamento é legítima. Há uma retirada de experiência do utilizador que pode ser mais desafiante, mas também o é para as cidades, que têm de assumir que, se querem promover este tipo de utilização, têm, de facto, de criar condições para retirar o monopólio [do espaço] ao automóvel.
A Whoosh foi uma das operadoras que assinou o acordo com a câmara municipal de Lisboa com vista à criação desses locais de estacionamento obrigatório. Como foi a receptividade para esse processo?
Foi total. Apesar da mudança de executivo, não sentimos diferença no empenho em criar as condições para a promoção da micromobilidade em Lisboa. Claro que há desafios. Há um trabalho na implementação de lugares de estacionamento adequados, na adopção de uma velocidade limite, bem como no total de trotinetas que cada operador pode colocar nas ruas. Já quanto aos lisboetas, há sempre moradores e comerciantes que vão torcer o nariz porque têm menos um lugar para os carros, mas também temos uma maior procura pelos serviços de micromobilidade – o que acaba por justificar [as alterações]. Até agora, a cidade tem compreendido e tem estado, não ao nosso lado, mas ao lado daquilo que é o seu futuro, e tenta acompanhar ao máximo a tendência de devolver alguma qualidade de vida às pessoas promovendo alternativas ao automóvel particular. Acho que esse é o caminho.
Além do estacionamento, há também questões relacionadas com a má utilização ou com uma utilização pouco preocupada com o espaço público e com os outros utilizadores. É possível resolver?
Trata-se também de um triângulo progressivo entre operador, utilizador e cidade. Os operadores, por um lado, podem ter a obrigação – diria até interesse – de ensinar os utilizadores a circularem de acordo com as regras do Código da Estrada. Por outro, estamos a falar de um modo de transporte que foi lançado em 2018 e [sobre o qual] há um desconhecimento natural, porque se trata de uma novidade. Há um caminho que é feito pelos utilizadores, e que pode ser promovido directamente pelos operadores, e há um outro, que é também natural, que envolve as autoridades que fiscalizam o trânsito. Em todas as cidades, a fiscalização ainda é feita muito junto dos operadores, mas o que vai acontecer é que essa fiscalização vai passar a acontecer também junto dos utilizadores. Por enquanto, é uma responsabilidade ainda muito passada aos operadores, que devem ser quem identifica o utilizador, recompensa o bom comportamento e penaliza o mau. O caminho de maturidade vai ser uma triangulação das responsabilidades.
A falta de infraestruturas adequadas promove também essa utilização indevida?
Muitas vezes, os utilizadores de trotinetas ou de bicicletas não se sentem seguros na convivência na estrada com o automóvel, o que se prende com várias razões. Há casos em que o automobilista simplesmente não percebe ou não aceita que aquela via pode, de acordo com o Código da Estrada, ser circulada por trotinetas e bicicletas e os utilizadores acabam por não se sentir seguros. [Noutros casos] É legítimo que os automobilistas digam que os novos utilizadores de trotinetas não têm conhecimento do Código da Estrada e, às vezes, prevaricam. Mas aceito que o utilizador de trotineta queira essencialmente circular numa ciclovia e, se esta existir, é isso que vai acontecer.
Como avalia a situação das cidades portuguesas nessa matéria?
Sabemos que existe um plano de expansão de ciclovias no país, que, neste momento, está muito atrasado. Penso que, nesse aspecto, tem de haver uma decisão aos níveis nacional e local para implementar esse plano. Isso é importantíssimo para que Portugal não perca o comboio – ou, neste caso, a trotineta – destas tendências. Se olharmos para outros países, inclusivamente na América Latina, temos muito mais ciclovias.
A Whoosh tem usado a tecnologia para contornar muitos destes problemas. Por exemplo, desenvolveu um algoritmo para identificar se está mais do que uma pessoa a usar a mesma trotineta.
Além do estacionamento obrigatório e de podermos calibrar a velocidade de acordo com a experiência de utilizador, essa é também uma situação em que defendemos a segurança e que está já em implementação. [Note-se que] Os fabricantes de automóveis não têm nenhuma tecnologia que impeça a sobrelotação nos carros. Isto é relevante porque a indústria da micromobilidade tem feito muito mais pela inovação nos transportes do que todas as outras indústrias juntas. Do ponto de vista da indústria e da História da civilização, é um modo de transporte muito novo, mas que, apesar de tudo, é o que mais tem inovado em termos tecnológicos – tecnologias para evitar a circulação nos passeios, para evitar o estacionamento indevido, etc. Ninguém pede, neste momento, a um fabricante de carros para impedir que, através de tecnologia, o carro estacione ou circule em cima de um passeio. As nossas trotinetas estão a caminhar para isso e estas são tecnologias que vão estar visíveis muito em breve em Lisboa.
Há uma pressão muito grande no sentido da inovação?
E não só. É também uma resposta natural ao facto de estes modos estarem a conquistar a sua legitimidade no ecossistema urbano. Houve um caminho nesse sentido: nós estamos a entregar esta tecnologia para ir ao encontro das preocupações não só dos utilizadores como também dos decisores das cidades e de quem convive com estes modos. Muitas vezes, vemos, nas redes sociais, fotografias de trotinetas em cima de passeios e comentários negativos, mas, depois, temos ruas com carros estacionados em cima dos passeios sobre as quais ninguém diz nada. Dá-se por garantido que, neste momento, o carro tem legitimidade para tudo, porque domina a utilização, e não se dá legitimidade aos outros modos. Nessa medida, a tecnologia acabou por ser uma forma de legitimar o nosso lugar neste ecossistema urbano.
É uma forma de reclamar o lugar da micromobilidade?
Não gosto da palavra “reclamar” porque se refere a algo que é injusto. O que nós dizemos é que aceitamos que isto é o futuro. E não é um futuro imposto, pois acreditamos profundamente que somos parceiros das cidades do futuro, nas quais há metas de descarbonização e metas para reduzir o uso do automóvel. Nós não queremos ser vistos só como mais um negócio; queremos ser vistos como um parceiro que pode trabalhar para o cumprimento dessas metas.
Fazendo uma comparação com as bicicletas, não há, no caso das trotinetas, uma força ou uma massa crítica de utilizadores. Isso é algo que poderá acontecer ou o utilizador da trotineta é menos comprometido?
É uma pergunta interessante, na medida em que pode haver um tempo de reflexão, embora tudo dependa da maturidade do mercado português. Noutros países, onde a micromobilidade está mais amadurecida em termos de implementação e de adesão e onde as empresas são também muito focadas em fazer valer os seus interesses junto dos decisores políticos, temos assistido à criação de associações nacionais e, a nível europeu, empresariais com vista a defender os interesses do sector junto de Bruxelas. Diria que há um tempo de amadurecimento. Numa primeira fase, acredito que as empresas se associem dentro de entidades já existentes no mercado nacional, seja as de defesa ou promoção da mobilidade eléctrica, seja as de defesa da mobilidade em duas rodas. As associações de bicicletas são hoje fortíssimas, tanto a nível europeu como nacional, porque houve um trabalho que começou há 20 anos e existe já uma estrutura bastante forte e amadurecida que fez valer com muito mérito a implementação das bicicletas. No caso das trotinetas, penso que fará sentido e será até natural que surjam essas associações a promoverem o seu uso.
Estão desde Julho em Lisboa com 2 000 trotinetas. Como está a correr essa experiência?
Em relação à concorrência, somos uma empresa recente e estamos num mercado onde estão empresas que dominam a mobilidade a nível mundial. De qualquer modo, podemos dizer que os nossos resultados têm sido muito positivos em Portugal. Desde Julho, os utilizadores das nossas trotinetas já circularam quase 700 mil quilómetros, o equivalente a 127 viagens entre Lisboa e Nova Iorque. E estes resultados referem-se só ao nosso operador! É importante também enfatizar que 75% destas viagens foram feitas para ir ao encontro de necessidades de transporte efectivo e não de lazer, sendo que as rotas mais populares são a Av. da República, a Av. Fontes Pereira de Melo, a Av. da Liberdade, a Av. Almirante Reis [entre outras] – todas zonas que têm ciclovias.
“Muitas vezes, vemos, nas redes sociais, fotografias de trotinetas em cima de passeios e comentários negativos, mas, depois, temos ruas com carros estacionados em cima dos passeios sobre as quais ninguém diz nada. Dá-se por garantido que, neste momento, o carro tem legitimidade para tudo, porque domina a utilização, e não se dá legitimidade aos outros modos.”
Exactamente. Onde há ciclovias, há mais utilização! No inquérito que fizemos aos nossos utilizadores, cuja média de idades está nos 30 anos, há dois feedbacks a destacar: um deles é que a condição da nossa frota é bastante boa, o que é também mais um aspecto que nos diferencia, uma vez que apostamos muito na operação e manutenção; outro é que os passes diários e semanais são extremamente populares entre os nossos utilizadores, o que é um ponto bastante importante porque estamos a fomentar a utilização corrente e não a pontual.
Há a possibilidade de se associarem a operadores de transportes públicos para disponibilizar uma oferta integrada?
Antes de mais, o nosso foco está na aplicação prática do memorando assinado pelos operadores de trotinetas com o município de Lisboa. Com isso, pretendemos potenciar e fazer crescer o conceito de micromobilidade na capital enquanto alternativa limpa e sustentável aos transportes tradicionais. Depois, e estou muito optimista quanto à evolução que se verificará no sector em 2023, poderemos considerar uma estratégia mais abrangente. Mas, neste momento, é algo ainda muito prematuro.
Há planos para avançarem para outras cidades em Portugal?
Portugal é um país que tem apostado muito na micromobilidade, com várias cidades a apostarem nesta área. Teremos de olhar caso o caso e para as agendas de cada cidade no sentido de estarmos alinhados em termos de objectivos de descarbonização. Existem casos muito interessantes em Portugal nos quais podemos trabalhar juntos e possivelmente haverá novidades em breve sobre a nossa expansão. Somos ainda recentes, estamos a olhar para o mercado e a ver como ele funciona em termos de adesão. Para já, temos estes resultados e estamos a transitar da fase de início de operação para a consolidação, [mas] penso que em breve teremos condições para a expansão. Esta indústria é muito desafiante e temos de dar passos com calma para, em termos de consolidação e expansão, termos a certeza.
Tendo em conta as recentes mudanças que se têm feito sentir na mobilidade, também com o efeito da pandemia, como espera que seja o ano de 2023?
As trotinetas fazem parte da mobilidade e, com certeza, iremos verificar crescimento [neste mercado]. Do ponto de vista macroeconómico, sabemos que há uma incógnita e um pessimismo que pairam no ar. Na Whoosh, podemos dizer que estamos bem e preparados para a consolidação em 2023, mas, do ponto de vista macroeconómico, ainda é uma incógnita. Não sabemos se haverá variáveis que podem condicionar a procura, como já acontece, por exemplo, com outros bens de consumo. É algo que não podemos dizer com muita certeza, mas a nossa perspectiva é optimista, com margem para conquistar mercado uma vez que as trotinetas são um modo [de transporte] em crescimento.
Este artigo foi originalmente publicado na edição nº 38 da Smart Cities – Janeiro/Fevereiro/Março 2023.