A mobilidade eléctrica está a ganhar impulso e tem um argumento de força a seu favor: a urgência da descarbonização. Enquanto mudamos de “combustível”, as cidades orientam-se para a produção de energia e preparam-se para ser o palco desta grande transição “verde”.
Prever o futuro da mobilidade é uma incógnita. Nos vários exercícios de futurologia, a história mostra-nos como somos pouco eficazes a antever o que se segue. Durante o século XX, orientámos as nossas cidades em função do automóvel, que, de forma revolucionária, encurtou as distâncias e permitiu o acesso a mais, em menos tempo. A máquina foi melhorando, tornou-se mais eficiente, mais rápida, mais bonita. Andar a pé, de bicicleta ou de transporte público já não fazia sentido. Colocámos todas as nossas esperanças no automóvel e não conseguimos conceber um futuro sem ele. Inclusivamente, na década de 80, acreditámos que, no ano 2000, teríamos já carros voadores. Quatro décadas mais tarde, parece-nos pouco provável que seja esse o caminho. Enquanto isso, ao entregar as ruas ao automóvel, hipotecámos o futuro, asfaltámos o solo, poluímos o ar, pagámos o que foi preciso para encher o depósito, ficando à mercê dos produtores do petróleo. O automóvel não é o mau da fita, mas exagerámos no seu protagonismo.
Hoje, o futuro da mobilidade cose-se com outras linhas. Conectividade, automação, partilha e descarbonização são as grandes tendências que se apontam. Há um apelo à utilização dos modos suaves e do transporte colectivo e à substituição das frotas automóvel convencionais por outras eléctricas. Ao pensar este futuro, tendemos a imaginar o super carro que “fala” com os outros, nos diz como vai estar a meteorologia e nos lê as manchetes e as mensagens de e-mail do dia. Não precisamos de o conduzir e podemos, até, partilhar. Para abastecer, basta ligá-lo à corrente, seja em casa, seja no trabalho ou no espaço público. Ideias como estas alimentam todo o hype à volta dos carros autónomos e eléctricos, mas a realidade não corre ao mesmo ritmo que as expectativas. Um artigo recente da revista norte-americana FastCompany dava conta de como a indústria automóvel tinha, durante anos, exagerado nas suas promessas para os carros autónomos e veículos eléctricos e enfrentava, agora, um “reajustar” de expectativas. O problema, segundo a mesma fonte, pode dever-se ao facto de os fabricantes tentarem encaixar “novas ideias em chassis antigos”.
Todavia, nas possíveis narrativas do futuro da mobilidade, há um argumento de força para o sucesso da mobilidade eléctrica: a necessidade urgente da descarbonização. Cumprir o Acordo de Paris e fazer frente aos impactos das alterações climáticas implica que o sector dos transportes abandone os combustíveis fósseis e passe a utilizar alternativas mais limpas. Neste cenário, a electricidade de origem renovável é, provavelmente, a opção mais válida, até porque é, ela mesmo, reflexo de uma transformação maior que está a acontecer nos sistemas invisíveis das nossas cidades: a transição energética.
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do consumo de energia final em Portugal é feito pelo sector dos transportes.
O maior utilizador de energia
A nível europeu, a descarbonização dos transportes sempre foi um desafio complexo. De acordo com o Eurostat, o sector dos transportes era, em 2016, o maior consumidor de energia final na Europa, representando 33% deste bolo. Em 2009, a Comissão Europeia definiu como meta para 2020 uma quota de 10% de energias renováveis no sector. Face a uma execução lenta desse objectivo (apenas 6% em 2015), a revisão da lei comunitária para as renováveis de 2018 actualizou esse marco para uns pouco ambiciosos 14% até 2030.
O panorama nacional não é muito diferente. Em Portugal, dados oficiais da Direcção Geral de Energia (DGEG), referentes a 2017, mostram que o sector dos transportes continua a ser aquele com o maior uso de energia final, com uma fatia de 37,2%. Nesse mesmo ano, o sector apresentava uma penetração de 7,9% de renováveis. Obrigado a cumprir as metas europeias, as orientações estratégicas nacionais vão no sentido de alterar este cenário. No Roteiro para a Neutralidade Carbónica 2050, recentemente aprovado, estima-se que, por meados do século, a “descarbonização do sector dos transportes será quase total”, prevendo-se uma redução de 98% das emissões de gases com efeitos de estufa (GEE) face a 2005. Para alcançar esse feito, a estratégia nacional indica como soluções o “reforço do papel do sistema de transporte público” e a “substituição dos actuais veículos a combustíveis fósseis por uma frota essencialmente eléctrica”. Enquanto isto não acontece, os transportes são responsáveis por 25% das emissões de GEE.
“Aliar a estimativa de duplicação do consumo de energia em 2040 com a necessidade imperativa de diminuir para metade a emissão de CO2 é um exercício extremamente difícil, mas é uma realidade que tem de ser enfrentada e, mais do que isso, é uma missão de todos – governos centrais, municípios, empresas e um cidadão comum”, destaca João Rodrigues, Country Manager em Portugal da Schneider Electric, empresa especializada em gestão de energia e automação. A isto, soma-se ainda um elemento revolucionário transversal a todos os sectores: a transformação digital. “Estamos perante o maior desafio de todos os tempos”, exclama.
Olhando para as estatísticas do uso de energia, é evidente que os transportes e as cidades são eixos de acção fulcrais. Enquanto director de Gestão, Tecnologia e Inovação da EFACEC, empresa portuguesa que se tem destacado a nível mundial na área da mobilidade eléctrica, Nuno Silva está convicto de que a “electrificação da mobilidade é a forma mais sustentável para a descarbonização [do sector], na medida em que é eficiente, em termos de custos, e racional, na forma como se utiliza a energia, e isto especialmente num país como Portugal, em que grande parte das fontes de produção de energia eléctrica é renovável”. Os números dão-lhe razão: em 2017, 54,2% da electricidade consumida em Portugal teve origem em fontes renováveis, segundo a DGEG. “Quando falamos de cidades, de ambiente urbano, com confluência de bens, pessoas e serviços na mesma localização geográfica, o nível de concentração da pegada carbónica é ainda maior e, portanto, é essencial que seja pelas cidades que se comece este processo de transição”.
Ao aumentar o número de veículos eléctricos, é expectável que haja uma “maior pressão sobre as infra-estruturas energéticas existentes” e é por isso que “temos cada vez mais cidades a apostar em soluções de mobilidade eléctrica e sistemas de gestão de energia mais eficientes”, explica João Rodrigues. Nessa matéria, “é fundamental fazer uma análise sobre as infra-estruturas existentes e dotá-las de tecnologia numa abordagem holística, integrada e por camadas, para que se tornem smart e possam ser eficientes do ponto de vista energético, sustentáveis e permitam responder às expectativas dos seus cidadãos”.
Mobilidade eléctrica em Portugal
“O futuro é eléctrico”, afirmava a Associação de Utilizadores de Veículos Eléctricos – UVE, em comunicado enviado no início deste ano. “Os automóveis eléctricos triunfarão e bem mais depressa do que se julga”, lê-se. Segundo a UVE, em 2018, Portugal foi o sexto país do mundo onde mais veículos eléctricos ligeiros de passageiros foram vendidas (8241 unidades, quase o dobro do que em 2017). Este ano, apesar do ligeiro abrandamento, números da ACAP (Associação do Comércio Automóvel de Portugal) mostram que, no primeiro semestre de 2019, foram vendidos 3974 veículos de passageiros 100% eléctricos no país, sendo a Tesla (1143) e a Nissan (1049) as marcas preferidas. A tendência deve continuar no futuro próximo, esperando-se que, em 2030, metade da actual frota automóvel passe a ser eléctrica. “Além da poupança em termos de custos, conduzir um veículo eléctrico tornou-se um acto socialmente responsável que visa a melhoria das condições ambientais em que vivemos”, sublinha João Rodrigues.
No que se refere à infra-estrutura para a mobilidade eléctrica, Portugal foi um país “de vanguarda na sua criação, mas isso aconteceu em 2010, numa altura em que havia pouquíssimos carros eléctricos nas estradas”, recorda Nuno Silva. “Tal como acontece com qualquer infra-estrutura que não é mudada e é pobremente gerida, não demos continuidade a essa vantagem”. Passados quase dez anos, parece haver uma inversão da situação: “o automóvel eléctrico está em franca expansão, a crescer de forma notável, e vemos que, nesta altura, o investimento [público] em infra-estrutura não está a acompanhar esta evolução, o que provoca uma desadequação da disponibilidade dos pontos de carga públicos”. Do lado privado, há já várias iniciativas, conta o especialista, com empresas ou condomínios a colocarem pontos de carregamento nas suas instalações. Porém, “estes investimentos públicos são uma necessidade do país, uma vez que é preciso se adequar a forma como o sector se adapta à evolução da exigência dos clientes. Se se compram carros eléctricos, temos de ter infra-estrutura adequada para o fazer”.
Neste processo, não basta instalar pontos de carregamento de forma aleatória, havendo uma série de condicionantes a considerar, começando pela escolha da localização, que deve ser integrada com o planeamento urbano e o restante sistema de mobilidade da cidade. Outra das preocupações menos óbvias, mas determinantes, é o design dos carregadores. As soluções são cada vez mais inovadoras, integrando-se nos elementos que estamos já habituados a ver no contexto urbano, e combinando serviços, como iluminação pública inteligente e Wi-Fi. “O design na integração em ambiente urbano é muito importante, uma vez que um carregador de veículos eléctricos passa a ser mobiliário urbano interactivo. Isto é, com o qual os cidadãos contactam, mexem, tocam, interagem, efectuam carregamentos, pagamentos, e, por isso, é algo que tem de fazer parte do fluxo e movimentações de pessoas dentro de uma cidade”. Para além disso, não nos podemos esquecer de que os pontos de carregamento vão ter de estar ligados à infra-estrutura eléctrica e, sempre que possível, devem evitar-se novos investimentos. “Com o controlo inteligente dos carregamentos, é possível evitar investimentos em nova infra-estrutura, o que é benéfico para toda a economia. Evitam-se investimentos e melhora-se a sustentabilidade da solução”, aconselha o director da EFACEC. Sobre este assunto, João Rodrigues acrescenta que é preciso olhar com atenção para a eficiência: “há que analisar as soluções existentes no mercado, sob o binómio rapidez versus consumos de energia e não apenas acelerar de forma fulminante o número de postos de carregamento para veículos eléctricos”.
Descentralização da produção de energia
À medida que a mobilidade eléctrica se torna mais comum, a pressão da descarbonização e a urgência de fazer frente às alterações climáticas têm também outros impactos. Largar os combustíveis fósseis é imperativo e, neste novo sistema energético, a produção descentralizada começa a fazer mais sentido. Isto é, a produção de energia próximo do local do consumo. “A resposta poderá estar nas microrredes que começam a ganhar cada vez mais relevância em Portugal e que conseguem gerir todos os recursos energéticos dentro de um determinado perímetro”, avança o especialista da Schneider Electric. “Isto pode incluir unidades de geração, tais como turbinas de vento, painéis solares, geradores de combustíveis fósseis tradicionais e armazenamento de energia. Desta forma, o fluxo de energia é assegurado, independentemente das condições externas ou da localização”.
Entre as fontes de energia renovável, o solar fotovoltaico é, hoje, a que melhor se encaixa nesta realidade, sendo que a redução dos custos, nos últimos anos, tornou a tecnologia mais acessível. No entanto, o fotovoltaico não deve ser visto como a única opção até porque nem todas as condições são óptimas para a produção eléctrica solar. Quem o diz é Miguel Amado, investigador do Instituto Superior Técnico (IST) cujo trabalho se tem centrado no aproveitamento da energia solar e sustentabilidade energética nas cidades. As barreiras vão desde a orientação e integração arquitectónica a questões mais burocráticas, como os regulamentos para os edifícios. Por isso, é necessário um tipo de planeamento diferente, defende o investigador. “Vamos ter de voltar a pensar as cidades como nos anos 40 [do século passado], quando se falou muito em trabalhar com o clima, com a energia solar e ventos”. Para que isso aconteça, há que mexer nos Planos Directores Municipais (PDM) e orientá-los nesse sentido, “passando a ter vectores de orientação solar, de produção de energia localmente e conforme a morfologia dos bairros existentes e dos que serão transformados”. O momento de revisão dos PDM, que muitos municípios atravessam agora, pode ser uma boa oportunidade para o fazer, diz o especialista, apontando como bom exemplo o caso de Oeiras. “As orientações estratégicas de sustentabilidade [deste plano] já conduzem para o aproveitamento e a transformação da cidade para a produção descentralizada de energia, para que, com base nessa produção e aproveitando a infra-estrutura de redes eléctricas existentes, se possa conduzir a uma smart city no sentido energético”, ilustra.
Comunidades de partilha de energia
Mobilidade eléctrica, produção descentralizada de energia e fontes de energia renováveis são alguns dos elementos que vão contribuir para a transição energética das cidades. É neste cenário que se proporciona o aparecimento das comunidades de partilha de energia. “É algo de que se fala há muito tempo e que se refere à possibilidade de, entre um conjunto de consumidores, haver a partilha da energia produzida, podendo haver quem produz e consome ou quem só consome”, explica Nuno Brito Jorge, da Coopérnico, a primeira e única cooperativa de energias renováveis em Portugal. Em linha com isto, está o aparecimento da figura do Prosumer, uma mistura de consumidor com produtor de energia. “Para além dos diversos agentes, como universidades, empresas, edifícios de escritórios, entre outros, os consumidores também têm a possibilidade de entrar nesta equação ao tornarem-se produtores independentes, os chamados Prosumers, garantindo poupanças significativas na produção e distribuição de energia”, explica João Rodrigues. Nas cidades, isto vai materializar através de redes de distribuição eléctrica digitalizadas, que permitem aumentar a eficiência e contribuem para uma rede descarbonizada, enquanto asseguram a qualidade de abastecimento e a redução de custos, acrescenta o especialista. Graças aos novos sistemas de monitorização, é possível saber qual o melhor momento para produzir energia, quando armazená-la e quando comprá-la à rede.
Por sua vez, a mobilidade eléctrica pode assumir um papel interessante na medida em que os próprios veículos podem também servir enquanto baterias de armazenamento. Nuno Silva explica como: “um veículo eléctrico é uma pilha sobre rodas, que liga a vários pontos da rede em vários momentos do dia. Em alturas de maior constrangimento da infra-estrutura eléctrica, os veículos eléctricos, enquanto buffers de energia, podem contribuir com serviços ao sistema e contribuições de injecção de energia para minimizar estes constrangimentos da rede. Isto tem um desafio em termos de coordenação e gestão, mas tem um enorme potencial”. O chamado vehicle-to-grid é já tecnologicamente possível, mas, segundo o responsável da EFACEC, há ainda “trabalho a fazer no modelo de negócio, na forma como se regula este mercado e na confiança que os fabricantes de automóveis transmitem, ao garantir as condições de todas as baterias com esta capacidade de bidireccionalidade”.
veículos de passageiros 100% eléctricos foram vendidos em Portugal, durante o primeiro semestre de 2019.
Empoderar o cidadão
No que se refere à regulamentação, as coisas parecem estar a caminhar neste sentido. Em matéria de edifícios, desde 2010, que a Comissão Europeia incentiva à eficiência do uso de energia nos edifícios e à utilização de fontes de energia renovável. Mais recentemente, numa revisão da directiva europeia para o desempenho energético dos edifícios, passou prever-se a mobilidade eléctrica na equação energética. No contexto nacional, no que se refere ao autoconsumo de energia eléctrica, o ministro do Ambiente e Transição Energética, João Matos Fernandes, levantou a possibilidade de criar a figura do “autoconsumo colectivo”, que permitirá aos condomínios gerar a sua própria energia. O programa do actual Governo inclui um projecto para as alterações climáticas, do qual constam o fomento da “digitalização da energia desenvolvendo redes inteligentes e flexíveis, bem como contadores de última geração, que suportem a evolução da produção descentralizada, da microprodução, dos dispositivos de armazenamento de energia e da mobilidade eléctrica”, e o desenvolvimento de um Programa Solar em Edifícios, que vise “aproveitar o espaço disponível em coberturas com boa exposição solar para autoconsumo e produção descentralizada de energia”.
Para o investigador do IST Miguel Amado, “o incentivo à produção descentralizada de energia deveria ser um dos apoios em que os países deveriam investir”. E Portugal ainda mais, dado o grande potencial solar que tem. Tomando a eficiência energética como “ponto assente”, a chave está no planeamento estratégico. “Se o planeamento das cidades e a sua construção forem com vista à redução das necessidades energéticas, provavelmente vamos reduzir os riscos e as necessidades de armazenamento”, explica o docente.
Não obstante as orientações políticas ou a existência de incentivos, acelerar a mobilidade eléctrica ou a transição energética das cidades vai depender, acima de tudo, da decisão do cidadão. É aqui que, segundo Miguel Amado, é preciso investir. “Temos de investir na informação, na disponibilização dos conteúdos para que as pessoas possam avaliar. Isso obriga-as a serem co-responsáveis e, assim, sabem para onde vão e o que querem fazer e isso muda o paradigma”, defende. A nosso favor, temos uma sociedade cada vez mais orientada para o tema da sustentabilidade e há uma nova geração que pensa de forma diferente, mas é preciso fazer mais. Plataformas que permitem aos cidadãos conhecer o potencial de produção de energia solar, como é o caso da SOLIS da agência de energia e ambiente Lisboa E-nova, são já passos nesse sentido, mas muito mais pode ser feito com dados e sistemas de informação. “A cidade do futuro terá de ser obrigatoriamente muito mais focada em quatro eixos: conforto, mobilidade, sustentabilidade e eficiência na gestão de energia, estejamos a falar de espaços ao ar livre, edifícios públicos ou privados”, defende João Rodrigues. Para o responsável da Schneider Electric, “integrar tecnologia que permita automatizar as operações, recolher dados dos mais diversos dispositivos sensorizados, analisá-los e transformar isso em informação capaz de contribuir para os quatro eixos acima indicados será o grande motor de transformação das cidades do futuro”.