A bicicleta está a entrar no jogo da logística urbana e em Portugal estão a ser dados os primeiros passos. Para a entrega de pizzas, encomendas, ou quando é preciso chamar o electricista. Quais as vantagens? Chega onde os veículos motorizados não entram e contribui para a sustentabilidade dentro dos centros urbanos.
“Era uma bicicleta pequenina, era uma bicicleta dobrável, a gente adaptou um caixote desses de frutaria em cima e botava as flores ali e saía com a venda”. É assim que, num português com sotaque brasileiro, Raphael descreve o início da Saudade Flores, a florista que abriu em 2015 com Ana Carolina. São várias as particularidades da loja com morada na Rua de São Bento, ali bem junto à Assembleia da República, mas o facto de entregarem as flores de bicicleta salta à vista. E não o fazem por teimosia ou por quererem um mundo melhor, sem ruído, poluição e congestionamentos. Quer dizer, claro que também o fazem por isso, são pessoas de convicções claras, mas fazem-no sobretudo porque, dentro de uma cidade, faz todo o sentido. É mais rápido, barato, previsível e é um factor distintivo. Raphael sabe que “a bicicleta é um chamariz, sem dúvida nenhuma”. “As pessoas param e falam e tiram fotos”, mas, para os dois, “nunca foi usada com essa intenção”, esta foi uma escolha reflectida.
A Saudades Flores marca pela originalidade, mas não é única. Há muito que a bicicleta é uma ferramenta indissociável da logística urbana. No século XIX, os serviços postais britânicos davam início à utilização de triciclos de carga para a entrega do correio e, ainda que alguns possam ter-se esquecido dela durante o boom automóvel, torna-se hoje claro que veio para ficar. Está, aliás, a renascer das cinzas.
Afinal, faz todo o sentido usar a bicicleta de um ponto de vista economicamente racional, já que se trata de “um meio de locomoção fácil, económico e ecológico”. “Antes de ser a vitrine das flores”, sendo que também o é, e isto é algo que Ana Carolina e Raphael não escondem, “é um meio de transporte para as distribuir”. “Qualquer logística que envolvesse a entrega de flores de carro ou carrinhas ou qualquer outro tipo de veículo seria muito mais cara”.
As coisas estão a mudar
Ainda aquém do que acontece noutras capitais europeias, em Lisboa, observam-se os primeiros sinais do regresso da bicicleta à paisagem urbana, nomeadamente com utilizações directamente ligadas à logística e ao transporte de bens. Esta não é uma tendência apenas lisboeta, embora acompanhe o recente investimento em infra-estrutura ciclável, a vontade política e a mudança de mentalidades, observável a olho nu pelas ruas da cidade.
Mas há negócios que não são de hoje. Em 2009, surge em Lisboa a Camisola Amarela, a primeira empresa de entregas em bicicleta de Portugal. Pedro Ventura é o fundador e o CEO do serviço de entregas expresso e ciclo-logística e nota que “cada vez mais a mentalidade das empresas e das pessoas está a alterar-se e [que] a sustentabilidade é um factor de compra de um produto, ou de um serviço, neste caso”. Hoje, o negócio cresce e, apesar de ainda causar estranheza, porque “as pessoas pensavam que um serviço iria demorar um dia inteiro”, garante que conseguem ser “igualmente eficazes em termos de entregas”. “Muitos dos serviços que eram feitos no centro da cidade por motas, ou, às vezes, até carrinhas, foram substituídos por bicicletas”. O tempo de resposta é “o mesmo”, garante, sublinhando, ao mesmo tempo, que é “muito mais eficaz” em termos de eficiência energética.
Susanne é da mesma opinião e sabe que, em vários casos, a bicicleta pode mesmo ser o veículo mais competitivo, sendo que é, na sua opinião, sempre o mais acessível. “Falámos com muitas das grandes transportadoras, como a DHL, que está a usar muito bicicletas de carga na Holanda e lá poupam, acho eu, 13 mil euros por bicicleta, por ano”. E justifica a escolha que as grandes transportadoras começam a fazer com os baixos custos associados à manutenção, mas também sabe que é uma tendência “porque as bicicletas são mais rápidas e podem fazer percursos diferentes” daqueles que os veículos motorizados estão habilitados a fazer. De resto, o condicionamento do trânsito automóvel em determinadas zonas, assim como a criação de ruas exclusivamente ciclo-pedonais, é uma realidade cada vez mais vista nas cidades europeias. Aquilo que é sinónimo de dificuldades acrescidas para os veículos de entrega convencionais – carros, carrinhas, motas –, que deixam de conseguir circular por todo o lado sem grandes impedimentos, significa, igualmente, oportunidades para outro tipo de veículos. É aqui que entram as bicicletas. Susanne faz a ligação entre o aumento da utilização da bicicleta na logística urbana com as transformações que as cidades têm vindo a operar e verifica que “as grandes transportadoras, como a DHL, UPS, GLS e TNT, estão todas a começar a usar cargo bikes nas cidades, porque,” parece-lhe, “estão à espera de que as cidades comecem a restringir cada vez mais o acesso ao centro, porque, obviamente, estão cientes de que devem garantir o aumento da qualidade de vida”.
Um vasto potencial
Mesmo que, à primeira vista, possa parecer absurdo a alguns, a bicicleta pode mesmo desempenhar um papel preponderante na logística urbana. Numa altura em que os esforços das cidades se concentram em tirar automóveis dos centros urbanos, para aliviar a congestão da rede viária, mas também para melhorar a qualidade do ar, diminuir o ruído e tornar a cidade mais humana, com uma distribuição do espaço público mais democrática, a resposta para a logística dentro da cidade pode mesmo passar pelo velocípede. Susanne Wrighton, 53 anos, vive e trabalha na cidade austríaca de Graz. Foi precisamente a partir daí que coordenou, entre outros, o recém-terminado projecto Cyclelogistics, co-financiado pela União Europeia e criado com o propósito de “mostrar que muitas das deslocações, particularmente dentro cidade, podem ser transferidas do carro para a bicicleta”. Foi com a intenção de promover esta transferência modal nas cidades europeias que a equipa que tomou conta dos vários projectos, em desenvolvimento desde 2011, foi à procura dos números que acabariam por servir de base à tese final – a de que a bicicleta tem um papel importante a desempenhar ao nível da logística nas cidades. E era necessário chegar a estes números, já que, apesar de existir uma considerável quantidade de dados relativos ao transporte urbano de passageiros, pouca era a informação disponível relativamente ao transporte de bens em meio urbano. As conclusões não deixaram margem para dúvidas: “Percebemos que há aproximadamente um quarto das viagens que estão relacionadas com o transporte no negócio das entregas que podem ser transferidas para bicicletas de carga”, contou Susanne, numa entrevista feita por Skype. E acrescenta que, para algumas pessoas com profissões que prestam serviços com uma constante necessidade de mobilidade, como “canalizadores, o potencial [de transferência] chega a 50%”.
No relatório final do primeiro projecto Cyclelogistics, calculou-se que, numa típica cidade europeia, com 240 mil habitantes, é realizada um milhão de viagens por dia. Desse milhão, 600 mil são feitas com recurso a veículos motorizados de transporte privado, sendo que 490 mil estão directamente relacionadas com o transporte de bens. Alcançado este número, e atendendo a vários factores, como a distância percorrida (menos de 7 quilómetros), a carga transportada (mais do que uma bolsa e menos de 200 quilogramas) e, ainda, a possibilidade de parte da viagem (seja esta de negócios, seja casa-trabalho, seja lazer) poder ser feita recorrendo à intermodalidade (comboio + bicicleta, por exemplo), estima-se que 250 mil viagens, ou seja, 51% do total de viagens com transporte de bens em veículos motorizados privados, possam potencialmente ser feitas de bicicleta convencional ou bicicleta de carga.
Na Saudade Flores, “98%” das entregas são feitas na bicicleta eléctrica, que costuma estar à porta da florista, sempre que não está a percorrer a cidade, incumbida da tarefa de entregar arranjos. “O nosso produto já sai arranjadinho e nós temos de ter um certo cuidado, porque, afinal, são flores. Se eu as pusesse na bagageira de um carro ou numa carrinha, eu não teria a atenção, a preocupação [de ver] ‘como está aquele ramo’. Acontece uma travagem brusca, aquele ramo vira e vai água para todo o lado, o ramo estraga-se. Na bicicleta, qualquer buraco que eu passe ou solavanco, eu olho, posso parar, encosto, arrumo e sigo”. Os problemas de trânsito deixaram também de integrar o léxico de Raphael e Ana Carolina, o que “só é possível por causa da bicicleta”, dizem. “Se programar, por exemplo, uma entrega no Campo Pequeno, sei exactamente que daqui ao Campo Pequeno vou levar 25 minutos. Se alguém me fizer um pedido para uma entrega com hora certa – ‘preciso de um ramo para o dia tal às nove horas’ – eu sei exactamente a hora a que preciso de sair para estar lá às nove horas”. De carro, só entregam “produtos mais delicados”, como ramos de noivas. Essas encomendas seguem de Uber. “Nós não temos carro, é uma opção nossa”, conta.
Uma bicicleta não pode levar assim tanta coisa… ou pode?
Na equação da logística urbana, nem todas as bicicletas são iguais. Em Portugal, onde a bicicleta ainda não conquistou uma fatia grande da logística urbana, alguns dos velocípedes utilizados na distribuição de bens pode causar alguma estranheza a algumas pessoas. Pedro Ventura (na imagem, à direita), fundador da Camisola Amarela, explica: “temos a bicicleta convencional, em que o estafeta anda equipado com mochila específica. Depois, temos também as bicicletas de carga, as cargo bikes, que permitem transportar volume, com assistência eléctrica”. Claro que nem sempre pode ser viável, mas uma bicicleta de carga, como a que se encontra no centro de distribuição da Camisola Amarela, “pode levar até cerca de 150 quilos”.
A última milha
Na distribuição de bens em bicicleta, há um conceito que importa reter e que tem vindo a conquistar espaço nas cidades pelo tempo de resposta sem paralelo que apresenta: é o last mile delivery. Trata-se da última deslocação de um qualquer bem, entre o centro de logística – ou, como Susanne lhe chama, “centro de consolidação” – e o seu destino. Pedro define esta última milha como “aquela zona, aquela distância em que as próprias transportadoras já viram que não são tão eficazes a fazer as entregas”. É aqui, nesta zona, que a bicicleta é rainha. “Nos últimos 500 metros, um quilómetro, [que] é onde há maior densidade populacional, em que é mais complicado ao furgão estacionar, ou complicado de entregar ou passar, aí é que nós queremos entregar com a distribuição mais fina, assente, como é óbvio, em bicicletas”, esclarece o fundador da empresa de distribuição em bicicleta, que não receia assumir-se como “pioneira” em Portugal. Mas a sua empresa não depende, só, dos velocípedes, não são “fundamentalistas” da bicicleta, procuram sempre “dar a resposta mais eficaz ao cliente”, até porque, nas palavras do próprio, “uma empresa só com bicicletas não sobrevive. Uma entrega de Lisboa para Oeiras não pode ser feita em bicicleta”. Mas a realidade mostra números animadores. Hoje, “cerca de 40 %” da operação é realizada em cima de bicicletas e o objectivo passa por “aumentar ainda mais” este número, porque sabe que “é possível ser feito”, sobretudo pelo investimento “na parte do last mile”.
Dentro de um centro urbano, boa parte das deslocações com transporte de bens percorre distâncias curtas. Assim, está aberta uma oportunidade única para a bicicleta, que pode servir como a última peça no puzzle da logística urbana, efectuando a ligação entre os centros de consolidação e o destino final de uma encomenda. As grandes transportadoras já começaram a pôr esta fórmula em funcionamento em várias cidades por essa Europa fora e, também por cá, conta Pedro, “já está a acontecer”, com transportadoras a entregarem à Camisola Amarela a última milha dos serviços no centro da cidade. Depois, sempre que “é viável ir de bicicleta, vai de bicicleta”.
Na típica cidade europeia, 51 % do total de viagens com transporte de bens podem, potencialmente, ser transferidas de veículos motorizados para bicicletas, ou cargo bikes, e, ainda que as grandes transportadoras pareçam estar já convencidas disso, Susanne sabe que, nas pequenas empresas, há um potencial enorme à espera de ser desbloqueado. “Para as pequenas empresas, às vezes, é difícil convencê-las, porque não têm consciência daquilo que uma bicicleta de carga consegue transportar”. Todavia, dar-lhes conta do potencial não tem de ser complicado, “a melhor forma é dar às pessoas a opção de experimentar diferentes tipos de cargo bikes, porque são todas diferentes” e porque há, provavelmente, sempre uma capaz de corresponder “muito especificamente às necessidades de uma empresa”. “Por norma, quando experimentam, ficam convencidas das vantagens”. A disponibilização de bicicletas de carga para experimentação é uma iniciativa que os próprios municípios podem pôr em prática, mas é preciso mais para desbloquear todo este potencial. A coordenadora do Cyclelogistics entende que o “apoio das cidades” é imprescindível e dá mais exemplos dos incentivos que uma cidade pode implementar. “Podem financiar bicicletas de carga, como foi feito em várias cidades austríacas, onde a compra de cargo bikes para propósitos comerciais ou privados é subsidiada”. Esse seria um passo “enorme”.
E transportar outras pessoas de bicicleta?
As bicicletas de carga, ou cargo bikes, podem ser extraordinárias ferramentas de trabalho, uma excelente forma de levar um sofá novo para casa, ou podem, simplesmente, servir de transporte às compras do mês. Mas não servem só o propósito de levar bens de A a B. Em países como a Holanda ou a Dinamarca, não é estranho ver passar bicicletas de carga com crianças a caminho da escola. Por cá, não podemos, por enquanto, dizer o mesmo, mas já há quem o faça.
Tânia Alexandre tem 35 anos, é advogada e é excepção num país em que a norma é levar as crianças à escola de carro, numa rotina comum a milhares de famílias, que enfrentam diariamente engarrafamentos que semeiam cabelos brancos. Conhecedora desta realidade e com vontade de mudar, Tânia decidiu, no final de 2016, investir numa bicicleta de carga que fosse capaz de transportar as três filhas. “Na altura, foi uma decisão que me fez algumas borboletas na barriga, porque era um investimento considerável e porque nunca tinha experimentado nenhuma assim”. Mas fê-lo. Hoje, leva diariamente as filhas à escola na sua cargo bike, a “geringonça” – apelido dado pela sogra –, num percurso com início na zona do Campo Pequeno e destino junto à Avenida da Liberdade (Lisboa). A reacção das pessoas foi, conta, inesperada: “estava com receio que as pessoas reagissem mal”, mas “o que se passa é precisamente o contrário. As pessoas interessam-se, querem saber e depois há uma reacção de que eu gosto muito – e tento dizer isso à minha filha do meio. É que a nossa bicicleta deixa as pessoas felizes. As pessoas olham para nós e riem-se. E acho que as pessoas ficam muito contentes por verem uma bicicleta assim. Acho que as pessoas percebem que – e não é trocista – esta bicicleta dá realmente uma certa poesia para quem está dentro dela e para quem está fora”.
Tirando partido das novas ciclovias de Lisboa, sobretudo as mais recentes, no Eixo Central, Tânia revela que se sente “muito segura” e que “estava completamente fora de questão” fazer o seu percurso diário de carro. “Nunca conseguiria estacionar aqui a minha carrinha todos os dias. Seria super caro, super stressante com o trânsito”. Hoje, para além de ir às compras, também as viagens ao centro de saúde são feitas de bicicleta. A escolha que fez não lhe causa arrependimento nenhum, muito pelo contrário. Recomenda que lhe sigam o exemplo, até porque a cidade “é mais humana” de bicicleta. “E o ritmo é outro, não é preciso ir a correr”.
*O artigo foi publicado, originalmente, na edição #15 da revista Smart Cities. Aqui, com as devidas adaptações.
Foto: ©DHL