Os 17 Objectivos para o Desenvolvimento Sustentável (ODS), definidos na Agenda 2030, representam um mapa para os 193 países signatários responderem a desafios globais actuais e futuros. Mas trilhar este caminho é uma tarefa complexa e exige uma actuação multinível. Num desígnio nacional e de trabalho à escala local, a Plataforma ODSlocal é uma iniciativa pioneira que, ao longo de um ano, tem ajudado vários municípios nesta jornada. Coruche, Funchal e Torres Vedras já se distinguem pelas boas práticas.
Em 2012, Ban Ki-moon, antigo secretário-geral das Nações Unidas, afirmava que a “luta pela sustentabilidade global será ganha ou perdida nas cidades”. Anos mais tarde, em 2018, Aziza Akhmouch, responsável pela divisão Cidades, Políticas Urbanas e Desenvolvimento Sustentável da OCDE, reforçava, a propósito do programa Uma abordagem territorial para os ODS, que “dois terços dos ODS não podem ser atingidos sem os governos locais e regionais”, salientando a “responsabilidade partilhada de todos” naquela que é uma agenda “universal”.
É nesta abordagem estratégica de localizar os ODS que a ODSlocal – Plataforma Municipal dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável opera. Lançada oficialmente em Novembro de 2020, a iniciativa é o resultado de uma parceria entre o Conselho Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável, o OBSERVA – Observatório de Ambiente, Território e Sociedade, do ICS-Lisboa, o MARE – Centro de Ciências do Mar e do Ambiente, da U. Nova Lisboa, e a empresa de serviços de adaptação às alterações climáticas 2adapt, e com o apoio da Fundação “la Caixa”.
A ODSlocal visa a sensibilização e a promoção de literacia para a Agenda 2030, junto de actores locais, desde decisores e técnicos municipais, até empresas e cidadãos. Fá-lo dinamizando actividades de divulgação, capacitação e colaboração, bem como disponibilizando o Portal ODSlocal, um instrumento on-line que permite visualizar e acompanhar o progresso dos municípios no que concerne os múltiplos ODS e ainda mapear práticas e projectos locais inovadores e sustentáveis.
A estas actividades, acresce a divulgação, valorização e reconhecimento quer de boas práticas municipais, quer de projectos inspiradores de outros agentes locais, desde que presentes no Portal, através dos Prémios ODSlocal. Os desempenhos e as dinâmicas dos municípios signatários da versão avançada do Portal, numa série de indicadores validados relacionados com os ODS, são também sujeitos a análise para a certificação com os Selos ODSlocal.
Apesar de não ser a única iniciativa a defender a intervenção dos diversos agentes locais na concretização da Agenda 2030, é pioneira a nível internacional. De acordo com Karin Wall, directora do ICS-Lisboa, esta Plataforma apresenta um “carácter inovador e colaborativo” distinguindo-se de outras “pelas raízes locais, pela dinâmica e também pela abrangência, incluindo todos os ODS”.
Neste plano local, onde as mudanças podem criar “grandes transformações em escalas superiores”, a linha da frente tem de ser assegurada, numa primeira fase, pelos municípios. É por isso, revela Lia Vasconcelos, investigadora do MARE, que um dos objectivos da ODSlocal, no seu desígnio de desencadear um movimento de âmbito nacional, é abranger todos os municípios portugueses.
Alavancar o papel dos municípios para os ODS
Os municípios são as “entidades mais bem posicionadas para identificar os desafios mais urgentes e as lacunas de desenvolvimento no seu território”, afirma Lia Vasconcelos. São ainda “intervenientes-chave” na mobilização de agentes locais por disporem de uma transversalidade de funções, incluindo regulamentares, um nível de governança mais próximo das populações, políticas menos abstractas do que as macro, uma “legitimidade democrática e institucional e um alcance para promover o diálogo e o empenho em diferentes escalas”.
Conscientes deste papel, alguns municípios viram nesta Plataforma uma oportunidade estratégica para evidenciarem o seu compromisso com a Agenda 2030 e partilharem o trabalho decorrente das suas políticas e acções locais. Um ano após o lançamento, a ODSlocal conta com 62 municípios aderentes, dos quais 15 são signatários da versão avançada. É o caso dos municípios de Torres Vedras, Funchal e Coruche, os três vencedores dos Prémios ODSlocal na vertente Melhor Conjunto de Boas Práticas.
Desta adesão, que decorreu “sem reservas”, os três municípios fazem um balanço positivo. Colocar a Agenda 2030 na ordem do dia, medir o impacto do trabalho autárquico para os ODS, partilhá-lo com a população, avaliar o posicionamento e a evolução do município através de um gráfico radar para informar a tomada de decisão sobre as políticas locais futuras, melhorando os aspectos menos bem conseguidos, são alguns dos aspectos referidos.
Ademais, esta “ferramenta com muitas potencialidades” faz este trabalho de “forma transparente e acessível a todos os utilizadores da plataforma”, descreve a presidente da câmara municipal (CM) de Torres Vedras, Laura Rodrigues. Disto decorrem duas consequências positivas, apontadas por Rosa Lopes, directora do departamento de Ambiente e Energia da CM Coruche: uma partilha de informação mais efectiva entre “todos os serviços do município” e uma fonte de aprendizagem com os municípios congéneres.
“A Plataforma ODSlocal é, pois, um banco de boas práticas que inspira e estimula a gestão eficiente de recursos”, sublinha, por sua vez, Raquel Brazão, directora do departamento de Economia e Cultura da CM Funchal. Assim, a responsável realça a expectativa de adensar a rede de municípios aderentes para haver “cada vez mais projectos que aportem valor” e que, incluindo os vários actores num trabalho “contínuo, de proximidade e em parceria”, contribuam para uma “verdadeira comunidade sustentável”.
Exemplos de boas práticas de municípios vencedores
Em Torres Vedras, a CM promove o Programa de Sustentabilidade na Alimentação Escolar, através do qual se asseguram refeições saudáveis e sustentáveis (procurando a sazonalidade, circularidade, produtos a granel, produção local) e são feitas visitas de estudo a quintas de produção biológica da região. Neste âmbito, é também feita a sensibilização para a redução do desperdício alimentar e são fomentados o desenvolvimento territorial e a criação de emprego local, avança a presidente da CM de Torres Vedras, Laura Rodrigues.
Já no Funchal, a iniciativa Limpeza das Linhas de Água melhora a segurança na cidade garantindo “o normal fluxo dos caudais líquidos e sólidos em situações hidrológicas extremas”. Segundo Raquel Brazão, entre 2020 e 2021, foram limpas cerca de 50 linhas de água, numa extensão de 8750 metros e cerca de 15 mil sarjetas em todo o concelho.
“Em termos sociais e de modo a reduzir assimetrias e desigualdades na comunidade local”, a CM Coruche, diz Rosa Lopes, tem em vigor programas para a melhoria do conforto habitacional da população.
Um primeiro ano “muito positivo”
Para assinalar o primeiro aniversário da iniciativa, o consórcio organizou a Conferência ODSlocal’21, com o mote A Caminho de 20-30. Neste evento, com o Alto Patrocínio do Presidente da República, reuniram-se especialistas, entre os quais o reputado Jeffrey Sachs, e decisores políticos em torno dos desafios e oportunidades para a próxima década, mas também do trabalho feito pela ODSlocal.
Foi um primeiro ano de proximidade com técnicos das autarquias: foram realizadas 11 sessões de capacitação, debate e co-construção estratégica da Agenda 2030 local, que envolveram cerca de 300 técnicos de 116 municípios de todo o território nacional. Apesar dos constrangimentos trazidos pela Covid-19, relegando algumas sessões para o meio digital e pressionando os municípios, e pelas eleições autárquicas, os esforços da iniciativa resultaram no registo de 219 utilizadores no Portal, visitado por mais de 20 mil pessoas, e no mapeamento de 287 boas práticas municipais e 245 projectos de outros actores locais com impacto positivo nos ODS.
Para Lia Vasconcelos, ecoando as opiniões reveladas na conferência, o balanço “muito positivo” é reflexo de um “trabalho contínuo e profícuo da equipa”, que arrancou em Novembro de 2018, ainda numa fase piloto que se prolongou até Junho de 2019 com sete municípios. “A ideia era que o projecto fosse concebido e ajustado às necessidades autárquicas”, gerando “um verdadeiro espírito de equipa, em que as partes são complementares”.
Outra razão, diz a investigadora, prende-se com o facto de os “perfis distintos” dos quatro parceiros do consórcio e dos próprios membros trazerem, com entusiasmo e convicção, “todos os ingredientes para vingar”. Foi aliando “ciência e tecnologia à política” que a equipa desenvolveu e validou já 100 indicadores comuns aos 308 municípios, que actuam como referencial para o progresso em cada um dos ODS.
Da recolha, análise e agregação destes indicadores, o consórcio atribuiu o Selo ODSlocal aos municípios de versão avançada que obtiveram bons resultados em duas vertentes – Dinâmicas Municipais, incidindo na evolução, desde 2015, de indicadores de progresso; e Desempenhos Municipais, nas pontuações globais dos indicadores. Na edição de estreia, os municípios de Arcos de Valdevez, Cascais, Castelo de Vide, Ferreira do Zêzere, Funchal, Seia e Viana do Castelo receberam as duas distinções. Já os de Aljezur, Coruche e Loulé receberam os selos na primeira categoria, e os de Torres Vedras e Vila Nova de Foz Côa na segunda.
Como explica Lia Vasconcelos, a ideia “não é comparar municípios”, mas, sim, “discriminar pela positiva” para incentivar cada um deles a “ir o mais longe” possível. Tratando-se de um projecto “holístico”, o consórcio distinguiu as boas práticas municipais de Coruche, Funchal e Torres Vedras pela execução do melhor conjunto, e ainda duas boas práticas individuais levadas a cabo pela CM Loulé (a incubadora Loulé Design Lab) e pela CM Guimarães (o modelo participativo Guimarães 2030: Ecossistema de Governança).
Alargar, aprofundar e sonhar: o plano para 2022
Na visão do geógrafo João Ferrão, coordenador da iniciativa, o novo ano será um período de “alargamento” das acções a outros municípios e de “aprofundamento” do trabalho já em curso. A ideia é, com “compromisso, responsabilidade e ambição”, trabalhar de forma cada vez mais personalizada com os municípios para que o Portal possa representá-los em matéria de ODS com maior rigor e precisão.
Para isso, o responsável enumera alguns passos essenciais: desenvolver indicadores específicos a cada município, colmatando lacunas e aproveitando dados por explorar e organizar; analisar e cruzar os indicadores para uma “visão e gestão sistémica”, evitando tradeoffs e estimulando sinergias; auxiliar os municípios, se assim desejarem, na elaboração de Relatórios Locais Voluntários, que podem ser úteis, por exemplo, em candidaturas a financiamentos; e dar “um grande salto” para accionar laboratórios dinâmicos de sustentabilidade.
Estes laboratórios irão estabelecer o contacto directo, se possível, presencial, com organizações, associações e cidadãos, além dos municípios. Segundo Lia Vasconcelos, que investiga métodos para novas formas de governação em políticas públicas colaborativas, o objectivo é melhorar a literacia para os ODS, demonstrar como os agentes se podem envolver e incentivá-los a exporem as suas próprias acções. Este trabalho permitirá “sistematizar os projectos locais”, fomentar a criação de “redes e parcerias” e potenciar a divulgação do projecto num efeito multiplicador.
Na “agenda dos sonhos”, João Ferrão espera que, no próximo aniversário do projecto, se esteja já a avançar nalgumas iniciativas. A título de exemplo, refere o recurso a sistemas de observação da terra para gerar indicadores que “escapam aos de natureza administrativa”, bem como a dados prospectivos, olhando para o futuro como algo que se constrói e percebendo a consequência da inacção e de diferentes acções. Desta agenda, constam também os “sonhos” de alargar a iniciativa aos países da CPLP e de obter o reconhecimento a nível da Comissão Europeia e das agências da ONU “como projecto de fronteira”.
Seis desafios ao desenvolvimento sustentável, por Jeffrey Sachs
Durante a conferência da ODSlocal, Jeffrey Sachs, director do Center for Sustainable Development, da Universidade de Columbia, em Nova Iorque, identificou, a par das questões de financiamento, seis desafios principais ao desenvolvimento sustentável: educar as crianças para contribuir para uma sociedade de conhecimento; garantir o funcionamento adequado do sistema de saúde; fazer a transição energética, também a nível industrial, e promover a descarbonização e a economia circular; assegurar o uso sustentável do solo para proteger os ecossistemas e acabar com períodos longos de desflorestação; construir cidades saudáveis, com boas condições de habitabilidade, produtivas e sustentáveis; e completar a transformação digital para melhorar os serviços, salvaguardando a mitigação de efeitos indesejáveis, como maior desigualdade.
Este artigo foi originalmente publicado na edição nº 34 da Smart Cities – Janeiro/Fevereiro/Março 2022, aqui com as devidas adaptações.