Uma comitiva de autarcas e representantes municipais portugueses visitou, este ano, o Smart City Expo World Congress (SCEWC), um dos principais eventos mundiais em matéria de cidades inteligentes, que teve lugar de 13 a 15 de Novembro, em Barcelona. A exposição foi o palco para uma conversa com o presidente da Secção de Cidades Inteligentes da Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP), António Almeida Henriques, e com o subdirector da NOVA IMS, Miguel de Castro Neto, sobre o desenvolvimento deste sector em Portugal. Entre as novidades reveladas, estão o arranque de mais um Smart Cities Tour já em Dezembro e a possibilidade de uma feira para as cidades inteligentes dos países de língua oficial portuguesa.
Olhando para o SCEWC, em que ponto estamos em Portugal?
António Almeida Henriques (AAH): É importante realçar o caminho que estamos a percorrer. Há quatro ou cinco anos, era quase impensável estarmos na feira de Barcelona com uma delegação tão alargada de municípios, que estão cada vez mais interessados no tema, porque é preciso prestar serviços cada vez melhores ao cidadão e é preciso também olhar para os nossos orçamentos e adequar ao serviço que estamos a prestar. Neste momento, Portugal está a três velocidades: temos o pelotão da frente de municípios que já está a olhar para a lógica da integração, da governação do território com os vários aplicativos que foram sendo desenvolvidos; temos um segundo pelotão de municípios que ainda só está num ou outro aplicativo; e temos um terceiro pelotão que não despertou sequer para esta realidade. Penso que não estamos mal comparativamente com o que se vê aqui.
E há também várias empresas nacionais a expor as suas soluções.
AAH: Temos competências. Temos um cluster em Portugal que, embora não esteja ainda muito organizado – até porque foi aprovada a sua criação, mas não saiu do papel –, já existe. Existe informalmente um conjunto de empresas que está a marcar pontos e a apresentar boas soluções nestes diferentes sectores. Num caso, são empresas portuguesas, noutro, são empresas de capital estrangeiro que estão a actuar em Portugal. Depois, temos os territórios que já estão a aplicá-los – há diferentes municípios que, desde há uns anos, têm vindo a desenvolver a sua estratégia. Agora, falta o próximo passo que é começarmos a integrar isso tudo, pôr os sistemas a falarem entre si e passar do domínio da cidade e da sua área de influência. Essa vai ser a fase mais complexa, mas também mais estimulante. Em Portugal, temos de perceber que, mais do que nunca, é preciso casar territórios, sistemas tecnológicos e empresas. Se este triângulo funcionar, a economia funciona. E muitos dos projectos deste sector, que traz qualidade de vida às pessoas, não têm de ser desenvolvidos só em Lisboa ou no Porto. Podem ser desenvolvidos de uma forma democrática pelo país.
O que falta para haver essa conversação?
AAH: Penso que temos feito muito trabalho nessa área. A Secção de Cidades Inteligentes, que criámos na ANMP, é uma plataforma que tem tido como grande preocupação casar estes três vértices do triângulo. O Smart Cities Tour, que vamos fazer novamente em 2019, por sete regiões do país, começando já, em Faro, a 12 de Dezembro, vai ter muito esta vertente.

Estamos já na terceira edição do Tour. A iniciativa reflecte a evolução do sector nacional?
AAH: No primeiro ano, a focalização foi na indústria, e, no segundo, nas autarquias. Agora, embora continuemos com o enfoque nas autarquias, que são o pivô da organização do trabalho, vamos olhar mais para os politécnicos, universidades, sistema cientifico-tecnológico. Mantemos a filosofia de ter o debate sobre as várias soluções e tendências e visitas in loco para ver o que está a ser feito pelo país. Agora, temos de puxar os politécnicos e também as universidades para este desígnio. A única que vai verdadeiramente à frente é a Nova IMS, com a liderança de Miguel de Castro Neto. Mas temos de trazer as outras para que percebam que o objectivo desta dinâmica que está a ser criada em torno da ANMP é uma dinâmica para o país e não para o sector A ou B. Estamos aqui a prestar um serviço e a percorrer um serviço que é útil para o território, mas também para a nossa indústria, já que o sistema que é testado na cidade de Viseu, Guimarães ou de Cascais é exportável para outras cidades.
É a tal democratização de que falava?
AAH: Estamos a quebrar aquilo que era o estigma desta área das smart cities, que parecia ser algo só para as grandes cidades. Hoje, percebemos que a inteligência urbana pode ser aplicada às cidades médias, pequenas ou grandes e que pode ter uma lógica de interactividade e caminhar para os territórios felizes. E isto já não só no contexto da cidade, mas também no contexto da baixa densidade, do bairro, que são diferentes realidade, onde a tecnologia ajuda muito a chegar ao encontro das pessoas.
Miguel de Castro Neto (MCN): Assistimos a um fenómeno muito interessante que é como este movimento das cidades e vilas portuguesas em direcção à inteligência urbana não é feito, de facto, a partir do litoral, nem das grandes cidades. Se olharmos para realidade, vemos que, dependendo das características, há exemplos de sucesso e processos em desenvolvimento muito interessantes no interior do país e em cidades pequenas e médias. Muitas das iniciativas foram, num primeiro momento, alavancadas pela tecnologia e pelas empresas. Agora, estamos num panorama bastante distinto que é este desafio da integração e da cidade como plataforma. Isso torna quase indispensável a ligação ao sistema cientifico-tecnológico. Temos tecnologia, dados e, agora, precisamos de capital humano, criatividade e engenho para criar as soluções que respondem àqueles problemas. As empresas portuguesas que vemos na feira de Barcelona revelam um movimento orgânico que está a acontecer no território, mas que, infelizmente, não tem um apoio institucional de políticas públicas, que deveria alavancar este processo…

É esse o principal obstáculo ao crescimento do sector?
MCN: Não digo que seja um obstáculo, porque considero que o caminho vai ser feito. Estou convicto da capacidade dos municípios e dos autarcas, que têm a visão e conseguem materializá-la e construí-la. Mas se tivéssemos instrumentos de políticas públicas como em Espanha, em que há mecanismos de financiamento à construção da inteligência urbana ou ao desenvolvimento de territórios inteligentes como motor de promoção da coesão territorial, obviamente que era relevante. O que verificamos é que não há uma linha para estes projectos, não há estratégia.
AAH: O que temos é um somatório de medidas avulsas. Há um problema do qual é preciso começarmos a falar: a coesão digital. Este é um handicap enorme à própria lógica da cidade inteligente. Mais de um terço do país não tem cobertura GSM e, se falarmos de fibra óptica, o número é ainda pior. Como se quer fixar alguém, seja em que área for, se as pessoas não tiverem acesso à internet, que hoje é algo tão importante como o acesso à água, à recolha do lixo?? Não temos uma rede pública – acabámos por ter quatro redes privadas, que, obviamente, não vão investir nos territórios de baixa densidade porque não é rentável, não há lá negócio. Só há uma forma de o fazer, é fazer da coesão digital uma política pública. Tal como a electricidade chega às casas, também o sinal de GSM ou a fibra óptica tem de começar a chegar. Isto permitiria estimular mais pessoas a irem viver para o interior, atrair mais investimento e fazia com que mais economia se pudesse fixar. Consegue imaginar um negócio sem estas vertentes? Depois, não concebo um futuro Governo que não tenha um ministério das Cidades, na perspectiva do desenvolvimento em círculo. Hoje, é impossível desenvolver um território se este não tiver uma cidade ou vila forte. É preciso criar as tais políticas integradas, em vez dos verticais.
Estamos aqui a prestar um serviço e a percorrer um serviço que é útil para o território, mas também para a nossa indústria, já que o sistema que é testado na cidade de Viseu, Guimarães ou de Cascais é exportável para outras cidades.
É compatível com a lógica de descentralização?
MCN: A ideia é tirar partido da descentralização para fazer acontecer esta mudança. Confundimos muitas vezes a descentralização com a propriedade de alguma coisa. Do que precisamos é de modelos articulados e coordenados em que seja possível trabalhar em conjunto para alcançar uma finalidade comum. Por exemplo, temos estes benefícios todos e o enfoque no cidadão, temos o acordo de Paris com as metas para a descarbonização e nós estamos a usar uma abordagem para o alcançar totalmente top-down…. Imagine-se que tínhamos efectivamente uma política pública que suportava o investimento em inteligência urbana alinhada com o objectivo da descarbonização. Desenvolviam-se estratégicas de smart cities como a meta da descarbonização em mente e tinha-se iniciativas em mente alavancadas pelos municípios para alterar o hábito do cidadão e da população. Se a maior parte da população vive nas cidades e vilas, se é aí que se produz a maior parte do lixo e se consome a energia, com uma política pública que financiasse a inteligência urbana numa lógica de descarbonização, certamente que iriamos alcançar as metas.
Isso não acontece hoje?
MCN: Não faço ideia qual é a prática do nosso Governo para alcançar as metas de descarbonização. Falta uma política pública, com uma parte estratégica, mas com os instrumentos financeiros de alavancagem. Estamos a falar de investimentos que têm retorno positivo. É uma questão de fazer as contas, mas tem de haver um momento inicial de investimento…
AAH: Vejamos o exemplo da mobilidade, para a qual, cada vez mais, é preciso uma visão integrada. Hoje, invariavelmente só se está a pensar nas duas Áreas Metropolitanas, como é exemplo a política dos passes sociais, que é altamente discriminatória para os territórios de baixa densidade. Financia-se o fluxo massivo de pessoas, todos os dias, para Lisboa e Porto… e as pessoas que moram nos territórios de baixa densidade? Por que não se financia um passe para a coesão?! Estamos a implementar um sistema on demand no nosso território, temos seis freguesias, e é o município que tem de suportar a diferença no custo. Então, que se crie um passe social para que o on demand seja disseminado pelo país para permitir que a pessoa que vive na aldeia de Cota possa ir ao cinema ou ao teatro à noite. Ao vencermos estes desafios – água, esgotos, estradas, acesso digital e mobilidade –, que representam o essencial, o resto vem por acréscimo, porque mais pessoas se vão fixando. Enquanto se achar que estes problemas se resolvem só com discursos, não vamos lá.
A inteligência urbana pode ser uma porta para a coesão territorial?
MCN: Há que aplicar esta visão de cidade inteligente ao território inteligente. Os desafios são os mesmos. Acrescentava a dimensão de como este vai mudar depois de ter esta capacidade de recolha de dados e como isso altera o serviço e também o seu planeamento. De como a inteligência artificial ou o deep learning começam a ter um papel a partir do momento em que começamos a ter os verticais integrados numa plataforma. Ainda estamos muito focados no “eu recolho o dado, detecto o problema e resolvo-o”. Chegámos à fase em que, com aqueles dados, consigo prever que amanhã vai acontecer um problema ou definir qual vai ser a carreira do autocarro, ou, se houver um jogo de futebol, reforçar a recolha do lixo, por exemplo. E fazer isto de forma pró-activa, usando a analítica preditiva ou até a prescritiva.
A inteligência urbana não é o topping de um bolo. Não é algo que se coloca em cima do município. Tem de haver uma transformação digital da organização, uma reengenharia de processos, uma nova forma de encarar a gestão da autarquia, para, de seguida, conseguir fazer o percurso da construção da inteligência urbana.
Os municípios têm já essa orientação?
AAH: Para quem vai no pelotão da frente, o chip já mudou. Já não estamos à espera de que a indústria nos venha apresentar os aplicativos. Somos nós que estamos a interagir com a indústria e dizer quais são as áreas importantes a desenvolver em certos territórios, e é um fato feito à medida. A área de integração é cada vez mais uma constante, até por uma questão de operacionalidade da própria autarquia e optimização dos recursos. Com os dados que temos, deixamos de actuar de uma forma empírica para actuar de forma devidamente informada. Não só para a acção no momento, mas também para o planeamento.
Mas há muitos outros municípios que não estão ainda nessa fase.
MCN: A inteligência urbana não é o topping de um bolo. Não é algo que se coloca em cima do município. Tem de haver uma transformação digital da organização, uma reengenharia de processos, uma nova forma de encarar a gestão da autarquia, para, de seguida, conseguir fazer o percurso da construção da inteligência urbana. Isso, muitas vezes, não é devidamente acautelado, até porque o típico modelo das autarquias, que é vertical, não favorece a construção dessa solução, que é transversal.
Isto vai ter de mexer nas orgânicas das câmaras municipais?
MCN: Sim e tem outro desafio muito grande: ou o autarca tem essa visão e mindset e dá o empowerment interno para esta verdadeira revolução acontecer, ou, se não, a autarquia, pela sua natureza e modelo tradicional de funcionamento, não consegue avançar, pois os projectos ficam acantonados nas suas áreas de residência…
AAH: Esta digitalização vai permitir a construção de uma cidade cada vez mais inteligente e, assim, também vai combater os casulos existentes na administração, porque o próprio presidente tem de assumir outra atitude e dar mais autonomia a quem está no terreno. O operador automaticamente tem de dar orientações para quem está a resolver uma determinada avaria, sem estar a perguntar ao presidente da câmara. E vai também mudar a lógica de relação da autarquia com o cidadão. Tudo isto é crítico numa altura em que se fala tanto de descentralização e delegação de competências para as autarquias. Se nós não nos prepararmos com estas ferramentas, como vamos dar conta do recado?!
Como estão a preparar esses cenários?
MCN: O trabalho que está a ser feito na ANMP, ao ir ao território, mostrar exemplos, fazer a ligação das empresas com academia, é muito importante nesse sentido. Este ano, com o Portugal Smart Cities Summit foi já, de facto, um salto, e estou convencido de que, na próxima edição, em Maio de 2019 e que terá lugar no Parque das Nações, vai haver um boost muito grande no panorama nacional e a mobilização de esforços e de ambição nesta temática.
Levam alguma inspiração da feira de Barcelona?
AAH: É um espaço de referência, que nos dá uma visão global, embora ainda muito verticalizado. Claro que nos inspira, mas queremos massificar estes conceitos. As pessoas têm de perceber que isto é a vida delas.
MCN: Quer queiramos, quer não, a feira de Barcelona é muito technology driven. Portanto, não tem uma grande presença da inteligência urbana na forma do impacto social que tem. Está muito focada na parte da operação da cidade. A nossa intenção, e esperamos concretizá-la no próximo ano, é ter uma cidade fictícia no centro da feira, em que se possam mostrar soluções concretas. Não é o que temos para vender, mas o que estamos a fazer nos territórios, e, depois, organizar city sightseeing tours para as escolas e outros públicos, para que percebam do que estamos a falar e fazer a ligação sobre como isto impacta na sustentabilidade e na felicidade última do cidadão. A nossa ambição não é ter uma feira como esta, mas, sim, ter a feira da língua oficial portuguesa. O caminho está a fazer-se com a CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa). Há uma oportunidade única para criar uma dinâmica em torno da inteligência urbana para esta comunidade alargada.
Vão trabalhar nessa ligação no próximo ano?
AAH: Sim. Há dois caminhos muito claros: a abordagem dos países de expressão oficial portuguesa e a abordagem do mercado espanhol. Está a ser estabelecida uma conexão entre a ANMP e a associação de municípios espanhola e estamos a interagir no sentido de promover o nosso âmbito junto dos autarcas espanhóis. Isto porque estamos bastante à frente em áreas como a participação dos cidadãos. A maior parte dos municípios espanhóis não tem orçamento participativo. Viseu já vai para a quinta edição.