Até 2030, quase 60% das crianças mundiais estará a viver em meio urbano, o que obriga as cidades a repensar o uso do espaço público, mas também a forma de encarar o direito dos mais novos a brincar na rua. Como criar cidades mais amigas das crianças? Especialistas, autarcas, pais e miúdos lançam pistas.
De um momento para o outro, a rua enche-se de crianças. O Xavier e os amigos remexem o jardim à procura de formigas e bichos-de-conta, o Pedro ensina os mais novos a andar de bicicleta e a Clara voa num baloiço de árvore enquanto jura que está “quase a tocar no céu”. Como eles, há mais umas três dezenas de meninos e meninas de todas as idades que costumam animar as traseiras da rua António Nobre, em Almada. Por lá chamam-lhe “Estuário”, o nome de um coletivo informal de pais e vizinhos que sonhou transformar aquele recanto de Cacilhas, outrora esquecido e degradado, num refúgio onde os mais novos pudessem brincar ao ar livre, em total liberdade e segurança. Tal como eles também tinham feito quando eram crianças.
Juntos, foram criando um espaço de todos e para todos. Primeiro, surgiu o ringue e o parque infantil, depois pintaram um mural de cores alegres e plantaram um jardim comunitário onde não falta uma pequena biblioteca, jogos musicais infantis e o tal baloiço que a Clara tanto gosta. E assim nasceu uma espécie de cidade das crianças, que convida as famílias a sair à rua para se encontrarem com os vizinhos e reencontrarem com um passado cheio de boas memórias.

“Todos estes pais brincaram na rua quando eram crianças e lembravam-se bem do que era ficar por lá até que alguém os chamasse. Por sentirmos saudades disso procurámos criar um espaço à imagem desses tempos, com crianças autónomas e sem pais helicóptero sempre em cima dos filhos. Aqui, acabam por ser os miúdos a balizar comportamentos entre eles”, diz Diogo Salvador, um dos membros do Estuário Coletivo. “O nosso bairro é mais fixe que os outros! Fazemos muitas atividades na rua e isso é bem melhor do que ficar em casa a ver televisão”, acrescenta o filho, Xavier, de sete anos.

Ringue é ponto de encontro das crianças em Cacilhas
Naquele sítio de prédios altos e moradores inconformados, as ideias estão sempre a fervilhar, tanto nas cabeças dos adultos, como dos mais novos, que também colaboram nos eventos organizados pelo Estuário. Mas há um que todos preferem, chamado precisamente a “Cidade das Crianças”, em que recebem visitantes de todo o lado, incluindo bairros próximos que já começam a seguir-lhes o exemplo. “Nesse dia, os miúdos gostam de mostrar aos outros meninos que é uma sorte brincar na rua com dezenas de amigos. E nós também ficamos orgulhosos por demonstrar que o espaço público pode ser mesmo de todos, crianças incluídas”, comenta Diogo.
Os números revelam uma realidade em conflito. Embora haja cada vez mais crianças nas cidades – a ONU e a UNICEF estimam que, até 2030, quase 60% das crianças mundiais viva em áreas urbanas – a verdade é que também se brinca cada vez menos na rua. De acordo com um inquérito da agência internacional de estudos de mercado One Poll, apenas 27% das crianças brinca regularmente na rua, enquanto no tempo dos seus pais e avós eram 71%. O mesmo estudo, realizado na Grã-Bretanha, revela que uma em cada quatro afirmou que os pais ou os vizinhos já as mandaram parar de brincar na rua, enquanto 30% lhes disse para não fazerem barulho no exterior. Em Portugal, a realidade não será muito diferente.
De facto, o espaço público deixou de ser recreio comum e local privilegiado de encontros e aventuras, afirma José Carlos Mota, professor do Departamento de Ciências Sociais, Políticas e do Território da Universidade de Aveiro. Para o especialista, o relacionamento entre a cidade e as crianças mudou nos últimos 40 anos e entre as principais razões está a “perceção de que a rua, hoje, é menos amigável, sobretudo porque tem mais trânsito e mais velocidade, além de haver uma ideia de insegurança relacionada com a criminalidade que, aliás, os dados não provam”.
O investigador defende que o carro é “um dos principais responsáveis pelo fim desta bela relação e um dos efeitos colaterais foi o estilo de vida cada vez mais sedentário”, a que não está alheio o facto de “a percentagem de deslocação em automóvel para o trabalho e escola ter passado de cerca de 20% para os atuais 66%”. Planear e ordenar melhor o território, oferecendo mais espaços para brincar, reduzindo a velocidade dos automóveis e criando mobiliário urbano que apele à criatividade são algumas das soluções sugeridas por José Carlos Mota.
Também Francesco Tonucci, psicopedagogo italiano que escreveu o livro “A Cidade das Crianças” tem vindo a alertar para a necessidade de recuperar a rua enquanto ponto de encontro e espaço de brincadeira dos mais novos. Mas com uma condição: a autonomia das crianças em relação aos adultos. Numa conversa com a Smart Cities (ver entrevista nas páginas 28 a 31), lembra que “nos tempos que correm, as crianças não podem sair de casa” e critica os pais que “foram autónomos, mas agora não permitem que os filhos sejam”. Também por isso, tem corrido mundo e lançado várias iniciativas, como a recente campanha internacional “Eu vou sair para brincar”, que diz ser “um desafio para que as cidades garantam o direito à autonomia e à escuta das crianças através do brincar”.
Quando as crianças têm voto na matéria
Se o artigo 31 sobre a Convenção dos Direitos das Crianças reconhece o direito ao brincar, também o artigo 12 contempla “o direito de exprimir livremente a sua opinião sobre as questões que lhe dizem respeito, sendo devidamente tomadas em consideração as opiniões da criança, de acordo com a sua idade e maturidade”. No entanto, do papel à prática vai uma grande distância, como mostra um inquérito nacional realizado pela UNICEF junto de 12 mil crianças e jovens. Os resultados revelam que 70% das crianças sentem que os adultos nunca ou raramente lhes perguntam a sua opinião e 28% diz que nunca teve a oportunidade de o fazer.
Também os especialistas defendem que é preciso dar voz aos mais novos, apontando o dedo a governos nacionais e locais. “Se as crianças votassem, algo que, de resto, eu sempre defendi, as coisas talvez fossem diferentes”, comenta Francesco Tonucci, enquanto José Carlos Mota lembra a necessidade de “os municípios envolverem mais as crianças e os jovens em processos de participação cívica”.
Ainda assim, há quem já o faça, garantem ambos e, curiosamente, até dão o mesmo exemplo em Portugal: Valongo. A cidade do distrito do Porto criou o primeiro Conselho das Crianças do país, uma iniciativa em parceria com o psicopedagogo italiano no âmbito da rede “A Cidade das Crianças”. O objetivo é receber e discutir as sugestões dos mais novos, sem interferência de pais ou professores, valorizando a sua opinião e tornando-os agentes da mudança. E eles não se fazem rogados.
No primeiro mandato desta iniciativa, os pequenos conselheiros apresentaram quase três dezenas de propostas para a cidade e algumas já viram a luz do dia, como disse à Smart Cities o presidente da Câmara Municipal de Valongo, José Manuel Ribeiro. “Identificaram, por exemplo, a necessidade de os condutores terem mais atenção às pessoas que circulam a pé e propuseram mais sinalização luminosa junto das passadeiras, sinais verticais e reguladores de velocidade e mais ações de sensibilização. Ouvimo-las e pusemos mãos à obra”, garantiu o autarca. Já no segundo mandato, surgiram mais seis propostas, como a criação de “ruas do brincar”, de um percurso de bicicletas no caminho para a escola ou de um piquenique noturno (ver reportagem na página 20).

Festa do Brinquedo é uma das muitas iniciativas que Valongo dedica às criança
Henrique Vilar, agora com 12 anos, entrou em ambos e considera que se trata de “uma ideia muito importante, porque faz com que as crianças também participem e ajudem no processo de criação das cidades, que costumam ser muito focadas nas necessidades dos adultos”. Já para José Manuel Ribeiro, iniciativas como o Conselho das Crianças fazem sobressair “o dever que os políticos têm de incluir a perspetiva das crianças no governo da cidade. Os jovens dão, para os mesmos projetos, contributos diferentes das outras gerações. A sua participação nas decisões melhora a aplicação dos dinheiros públicos e acrescenta-lhe dimensões essenciais que, de outra forma, não existiriam”. Este foi, de resto, o compromisso que o autarca deixou a Tonucci quando o italiano esteve em Valongo. “Os olhos e o entendimento das crianças e dos jovens podem produzir efeitos disruptivos de enorme alcance nas políticas públicas. Esta é, para mim, a maior lição de Francesco Tonucci”, revelou.
José Manuel Ribeiro lembra ainda que a adesão à rede Cidade das Crianças é apenas uma de muitas iniciativas que Valongo tem desenvolvido em prol dos mais novos. Outros exemplos são a Festa do Brinquedo, o “BUS Pedestre”, um projeto que pretende retomar o hábito de caminhar até à escola; as “Eleições dos Pequenos Grandes”, dedicadas à sensibilização para os processos eleitorais; e “À procura do meu lugar”, um processo participativo que envolve as crianças e os jovens na revisão do PDM.
Ação local para um compromisso global
Valongo integra também o Programa “Cidades Amigas das Crianças”, uma iniciativa da UNICEF que tem como missão contribuir para a realização dos direitos da criança através da adoção de políticas de âmbito local. Atualmente, esta rede mundial é composta por três mil cidades e comunidades de 40 países, entre eles Portugal, que conta já com 33 municípios aderentes, 20 deles ainda em processo de avaliação.
Trata-se de um sinal claro do compromisso dos nossos municípios com as temáticas da infância e da juventude, considera a coordenadora do programa em Portugal, Teresa Capitão, para quem não faltam bons exemplos no nosso país. É o caso de Cascais, onde “tem havido um grande investimento na formação e capacitação de técnicos em matéria de direitos da criança, na integração das crianças em processos de decisão local, nomeadamente, através da criação do Conselho Local de Crianças, e no desenvolvimento de um sistema de monitorização e avaliação”. O município faz parte, igualmente, da Associação Internacional das Cidades Educadoras (AICE), um movimento criado em 1990 com o propósito de estreitar as relações entre os governos locais para a promoção do valor educativo do espaço urbano. Das cerca de 500 cidades de todo o mundo que a compõem, 88 são portuguesas.
Outro bom exemplo é Vila Nova de Famalicão, que no âmbito das Cidades Amigas das Crianças “realizou três processos de participação no primeiro ano de implementação do programa, enquanto o Conselho da Criança e do Adolescente está a impulsionar os esforços municipais para a melhoria da qualidade de vida das crianças a nível local”, destaca a UNICEF. Mas há mais casos de sucesso, diz à Smart Cities a responsável do programa nacional, como Ovar, “considerado uma boa prática no que concerne ao reforço da ação concertada” ou Guimarães, que ao criar um Conselho Municipal da Juventude tornou-se “um exemplo no que refere ao estabelecimento de interações regulares entre os cidadãos e cidadãs mais jovens e os agentes locais”. A cidade minhota, uma das primeiras em Portugal a aderir à rede também organiza várias atividades de participação cívica dos mais novos, como o projeto educativo My Polis, em que um grupo de estudantes partilha problemas e soluções do concelho.
Para Teresa Capitão, os municípios assumem “um papel cada vez mais relevante no desenvolvimento das comunidades”, em particular no que diz respeito à infância e juventude. Como faz questão de concluir, “uma Cidade Amiga das Crianças está a contribuir para a coesão e sustentabilidade do seu território, no presente e no futuro”.
Brincar, pedalar, proteger: um mundo de ideias
Como criar cidades mais amigas das crianças? A pergunta ecoa por todo o mundo e as estratégias têm sido diversas, mas, curiosamente, muitas das ideias mais conhecidas nasceram em pequenas cidades e pela mão dos cidadãos. Assim aconteceu em Fano, Itália, a terra natal de Francesco Tonucci onde surgiu o conceito “A Cidade das Crianças”. E também em Eugene, cidade dos Estados Unidos que deu origem ao Kidical Mass, um movimento global que procura incentivar miúdos e graúdos a usarem modos ativos, como bicicletas, nas deslocações diárias. De lá, passou para Colónia, na Alemanha, e agora está presente em centenas de cidades mundiais, incluindo portuguesas.
Mas também há vários casos de políticas municipais de sucesso. Roterdão, que em 2006 tinha sido eleita a cidade dos Países Baixos menos atrativa para crescer, conseguiu inverter esta realidade. Para isso, gastou várias dezenas de milhões de euros em melhorias do espaço público, transformou alguns parques infantis de escolas em praças comunitárias e aproveitou uma zona de floresta na cidade para criar um parque natural onde as crianças podem brincar em liberdade, sem barreiras.
Já na América do Sul, Bogotá, na Colômbia, tornou-se um caso de estudo depois de lançar um ambicioso programa com zonas de proteção para crianças, parques pop-up e melhores passadeiras e passeios, muitas vezes através de intervenções de urbanismo tático que tornaram a cidade mais segura, inclusiva e colorida.
Este artigo foi originalmente publicado na edição nº 44 da Smart Cities – julho/agosto/setembro 2024, aqui com as devidas adaptações.