Obrigatória desde 1 de janeiro de 2024, a recolha seletiva de biorresíduos ainda não é realidade para 96 municípios portugueses. Nos primeiros seis meses do ano, 14 cidades juntaram-se ao leque de 168 municípios que anteciparam a entrada em vigor da norma europeia. A Associação Nacional de Municípios Portugueses diz haver necessidade “emergente de financiamento e de recursos humanos” para acelerar a implementação.
Os alarmes soaram meio ano depois da entrada em vigor da norma europeia, que obriga os estados-membros a implementar a recolha seletiva de biorresíduos. Em Portugal continental,110 municípios não cumpriam com a recolha a 1 de janeiro de 2024 e, nos primeiros seis meses do ano, apenas 14 cidades juntaram-se ao leque de cumpridoras. Os dados são da Agência Portuguesa do Ambiente (APA) que se revelaram mais otimistas do que o inquérito realizado em agosto pela Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos (ERSAR).
Os dados da ERSAR, que realizou um inquérito junto das entidades gestoras de resíduos a nível nacional, revelaram “uma fraca implementação” no país. Das 185 entidades que responderam ao inquérito, apenas 79 (cerca de 43%) avançaram para a implementação da medida, sendo que a maioria indicou que a recolha seletiva “não abrange toda a sua área de intervenção”. A cobertura total da recolha seletiva de biorresíduos abrange apenas 15% do território nacional, indica o estudo.
Face às conclusões do relatório, a Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP) reforça a necessidade de mais apoio financeiro e de recursos humanos, carências que “são apontadas pelos municípios como um dos principais impedimentos para a implementação da recolha seletiva de biorresíduos”.
A ANMP tem sublinhado junto do Governo a necessidade emergente de financiamento, mas aponta que também é “fundamental sensibilizar as pessoas para a recolha seletiva de resíduos e monitorizar e avaliar continuamente esta matéria, dada a sua relevância para o cumprimento das metas ambientais”.
Sobre as possíveis consequências para os municípios da não implementação da medida, a ANMP afirma, em resposta às questões colocadas pela Smart Cities, que é “fundamental ganhar escala e investir mais nesses projetos”, pois só assim se conseguirá ter o impacto desejado na valorização do resíduo como um recurso e no cumprimento das metas do Plano Estratégico de Gestão de Resíduos para 2030.
Zero alerta para a falta de resultados
Se por um lado a Associação Nacional de Municípios Portugueses diz ser necessário mais investimento, a Associação Ambientalista Zero, alerta que os municípios estão a utilizar verbas disponíveis pelo Fundo Ambiental sem mostrar resultados. “51 entidades gestoras não responderam ao inquérito. Isto demonstra que existe falta de interesse e que as autarquias não estão a cumprir o que deviam. Para além disto, estão a investir verbas disponíveis sem mostrar resultados, o que é bastante crítico”, alerta Ismael Casotti, ambientalista da Zero.
Quanto à falta de apoio financeiro e de recursos humanos, apontados como os principais impedimentos para a implementação da medida, a associação ambientalista diz que “muitas vezes as autarquias justificam-se com a falta de recursos humanos, mas é uma questão de organização de recursos, de alocar viaturas e operacionais para a recolha de lixo orgânico, por exemplo, duas vezes por semana”, refere Ismael Casotti.
Ainda assim, como exemplos positivos o ambientalista refere os concelhos de Guimarães e da Maia, “que apostam na recolha muito frequente, no formato porta a porta”. No caso da Cidade Berço, a recolha é feita em viaturas elétricas, já no caso da Maia, o especialista em ambiente refere o sistema de incentivos fiscais que atrai os cidadãos a cumprir a recolha seletiva de biorresíduos.
Taxa agravada para incumpridores
Os municípios incumpridores, que não implementarem a recolha seletiva de biorresíduos, irão pagar mais de Taxa de Gestão de Resíduos (TGR), que incide sobre as quantidades de resíduos indiferenciados, ou seja, resíduos como embalagens ou biorresíduos que são encaminhados para incineração ou aterro.
Sendo o TGR um instrumento económico modelador de comportamentos, que potencia a melhoria de gestão de resíduos, terá uma clara influência no cumprimento das metas às quais Portugal está vinculado, nomeadamente na preparação para reutilização e reciclagem (55% em 2025; 60% em 2030; e 65% em 2035) e deposição de resíduos em aterro (10% em 2035), explica o Ministério do Ambiente à Smart Cities.
Assim, o Estado prevê aumentar gradualmente a Taxa de Gestão de Resíduos até ao valor de 35 euros por tonelada em 2025, tal como é descrito na tabela abaixo.
No âmbito do Plano Estratégico de Gestão de Resíduos para 2030 e do Regime Geral de Gestão de Resíduos (RGGR) está prevista a devolução da TGR ao setor, “alto que tem sido pedido desde há muito”, revela o Ministério do Ambiente em comunicado. Assim, a TGR será um instrumento financeiro que, acompanhado pelas verbas previstas no Portugal 2030, financiará investimentos para dotar os municípios de uma rede para recolha seletiva e tratamento na origem de biorresíduos, e assim impulsionar de forma significativa o cumprimento da meta.
Para acelerar o arranque destes esquemas, o Ministério do Ambiente e Energia revela ainda que o RGGR prevê um conjunto de incentivos via TGR que “deverão ser aplicados, de forma a motivar os municípios que apresentem os melhores resultados” e assim, criar uma “uma pressão positiva para que esta transição se opere rapidamente”.
Paralelamente a estes mecanismos de apoio, o Governo irá lançar avisos para a atribuição de verbas, através do Fundo Ambiental, aos quais os municípios poderão aceder, para aplicarem em projetos que promovam o aumento da recolha seletiva e tratamento na origem de biorresíduos.
O Governo anunciou, no final de outubro, o investimento de 27 milhões de euros do Fundo Ambiental, para apoiar 23 comunidades intermunicipais e áreas metropolitanas na implementação de projetos de recolha de biorresíduos.
O valor atribuído, mais do dobro em relação ao ano passado, irá apoiar várias ações, desde a aquisição de equipamentos para a recolha seletiva até à criação de compostagens comunitárias ou à implementação de sistemas de monitorização.
O investimento, inserido no Programa RecolhaBio, tem como objetivo financiar projetos e iniciativas que aumentem a capacidade dos municípios, no sentido de promover a recolha seletiva e a reciclagem de biorresíduos na origem, incluindo a sensibilização da comunidade para práticas mais conscientes.
Sem pegada e com sensores
O município de Vila Nova de Gaia foi um dos que implementou a recolha de biorresíduos este ano, mais de meio ano depois da entrada em vigor da lei que obriga à recolha deste tipo de resíduos. Depois de um período de sensibilização e formação, a Águas de Gaia arrancou com a iniciativa, a 19 de agosto, com a recolha em duas zonas da cidade, o Centro Histórico e a Afurada. “Queremos que Vila Nova de Gaia possa ser um contribuinte líquido para as metas nacionais que estamos obrigados a atingir, até perante a União Europeia. Com a implementação do nosso projeto de biorresíduos, queremos atingir uma redução de 40% de volume do lixo produzido. Estamos a falar, a médio, longo prazo, de uma produção de 40 mil toneladas de biorresíduos”, começa por dizer Miguel Lemos, presidente do conselho de administração das Águas de Gaia.
Sobre o atraso na implementação da medida, Miguel Lemos explica que foi necessário cumprir com um período de estudo e análise do concelho, o terceiro maior município do país. “Sabíamos bem do que a legislação nos obriga, mas tivemos que fazer uma radiografia ao concelho e perceber a capacidade de recolha, prever as quantidades e o custo do investimento que é necessário realizar para o concelho. Vila Nova de Gaia é de facto um grande concelho e quando se faz este tipo de projetos a componente financeira é muito grande”, explica.
Através de um programa de financiamento da Área Metropolitana do Porto, a Águas de Gaia adquiriu duas carrinhas totalmente elétricas que permitem efetuar a recolha dos biorresíduos durante a noite, sem qualquer tipo de ruído. Os veículos e os contentores utilizados estão equipados com sensores que ajudam a monitorizar a eficácia da recolha. “A tecnologia é um auxiliar fundamental para a otimização da recolha de biorresíduos, nesta operação, que envolve milhares de clientes. Nesta fase inicial, estamos a atingir um universo de cerca de 1500, mas no futuro poderemos ir até aos 140 mil clientes. A tecnologia auxilia-nos a otimizar as rotas e a saber o nível de enchimento dos contentores. Assim, não desperdiçamos recursos na recolha que fazemos diariamente”, afirma Fernando Ferreira, diretor da Águas de Gaia.
Paralelamente à tecnologia, o município aposta na sensibilização e monitorização da recolha de biorresíduos, com o apoio de uma equipa de técnicos da Biorumo. Através da sensibilização, a empresa municipal Águas de Gaia pretende cumprir a meta de 43 mil toneladas de recolha de biorresíduos anuais, com a cobertura de todo o território em 2030. “A sensibilização das pessoas é uma questão que entendemos que é fundamental, porque este projeto só faz sentido se as pessoas também o adotarem e o acarinharem. Oferecemos um contentor a todas as pessoas e explicamos-lhes qual é o benefício da separação de resíduos”, acrescenta o diretor do departamento de Águas Pluviais e Ambiente.
Para a implementação da medida, o município de Vila Nova de Gaia conta com o apoio do Fundo Ambiental e de fundos comunitários para a cobertura total do concelho e para o cumprimento das metas anuais que estão estabelecidas para a recolha de biorresíduos.
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Este artigo foi originalmente publicado na edição n.º 45 da Smart Cities – outubro/novembro/dezembro 2024