A Internet of Things está na moda e Portugal não lhe fica indiferente. Afirma-se como a grande inovação tecnológica dos últimos tempos e promete, até ao final da década, mudar a nossa vida. Mas, antes disso, é preciso assegurar que, no processo de ligar tudo e todos, as expectativas não saem goradas.
Está nas bocas do mundo, faz parte das agendas dos principais eventos tecnológicos e foi apontada pela Comissão Europeia como “o próximo grande acontecimento” para o sector das TIC (tecnologias de informação e comunicação). A Internet of Things (IoT) seduz-nos com a ideia de um mundo hiperconectado, no qual milhares de dispositivos nos ajudam a tomar decisões e a melhorar a qualidade de vida num ambiente inteligente.
O futuro parece promissor para esta inovação com potencial para mudar drasticamente o modo como vivemos. Previsões da tecnológica Cisco apontam para que, em 2020, 50 mil milhões de dispositivos estejam ligados à rede, num potencial de negócio que ascende a 1,7 triliões de dólares estimados pela consultora IDC. Porém, a estrada para o sucesso pode não ser assim tão regular. Em Agosto de 2014, o Gartner HypeCycle para tecnologias emergentes colocava a IoT no pico das expectativas inflacionadas. “É a fase na qual se pensa que a IoT vai resolver todos os problemas do mundo e na qual qualquer um pensa poder fazer algo de IoT”, explica à Smart Cities Pedro Maló, docente da Faculdade de Ciência e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa e investigador do Uninova. “De seguida, vamos cair no realismo, em que perceberemos que, efectivamente, a IoT não vai resolver tudo e, aí, iremos entrar na zona onde, de facto, veremos a real valia da IoT”. Este processo vai servir de filtro para aquilo que realmente funciona e faz sentido e para aqueles que são capazes de retirar o efectivo valor da IoT, acredita o especialista. Só nessa altura o verdadeiro potencial da IoT será alcançado.
IoT ‘made in Portugal’
Cidades, casas, carros, frigoríficos, televisões, cintos e relógios, tudo ligado, a recolher dados, a transmitir informação. Este pode parecer um cenário futurista, mas os especialistas confirmam: a IoT está mesmo a acontecer e Portugal não está a ficar para trás. “A IoT já está materializada na nossa sociedade, no ambiente urbano em que vivemos e que se está a tornar hiperconectado”, observa Nuno Pereira Leite, director de negócios da Esri Portugal.
“O crescimento da IoT em Portugal não é indissociável do panorama internacional, até porque um dos principais efeitos da crescente capacidade de intercomunicação que a caracteriza é, sem dúvida, a redução das distâncias e a capacidade de desenvolver soluções que tanto podem ser locais como globais, o que pode contribuir para a internacionalização de projectos desenvolvidos cá”, defende Frederico Muñoz, Smarter Cities Solution Architect da IBM Portugal.
A confirmá-lo está também o facto de Lisboa ter sido escolhida para receber, em Junho de 2015, a IoTWeek. Com a coordenação de Pedro Maló, o encontro de três dias juntou na capital 500 especialistas e outros interessados em compreender o fenómeno e sua aplicação na vida real. O evento trouxe ainda de Bruxelas o anúncio de 100 milhões de euros para o financiamento de seis projectos piloto de larga escala, a arrancar em 2017. Envolvido em vários projectos com aplicação nacional, o investigador vê três direcções possíveis para a IoT em Portugal: a primeira diz respeito à investigação, que, impulsionada por fundos europeus como o Horizonte 2020, vai resultar em várias iniciativas piloto no país; daí surgirá o desenvolvimento de tecnologia nacional “muito boa e com um potencial de exportação muito grande”; e, por último, há a oportunidade associada aos projectos de larga escala europeus – “se fizermos algo que vá em linha com estes projectos ou que seja complementar, podemos multiplicar o efeito de inovação e escala e obter uma boa visibilidade ao mesmo tempo que se pode criar algo de substancial, duradouro e notável em Portugal”, afirma.
O financiamento europeu tem dado um impulso importante na concretização de projectos, juntando a indústria às universidades, o que, para a Indra, coloca o país numa boa posição. “Portugal está bem posicionado. No entanto, é preciso saber orquestrar as integrações de tecnologia de maneira a ter aplicabilidade, sentido e valor acrescentado na vida dos cidadãos e organizações e aplicar a inteligência para ser capaz de processar a informação para extrair e tomar decisões em tempo real”, alerta o director de Soluções Tecnológicas da empresa em Portugal, Vasco Mendes de Almeida. A concretizar-se o potencial, o especialista acredita que sectores como a saúde, transportes, utilities, safety and security, etc., podem “efectivamente entrar em novos paradigmas”, resultado da facilidade de integração da informação. “As smart cities são um exemplo dessa integração e que está hoje na agenda dos decisores”, remata.
Das ruas para a rede
Mesmo sem uma definição universal sobre o que são as cidades inteligentes, pensá-las sem IoT parece não fazer sentido. Veja-se a plataforma SOFIA2 da Indra na Corunha, o centro de operações da IBM no Rio de Janeiro, o distrito de Born em Barcelona com a marca da Cisco, a plataforma da Esri em Matosinhos que permite uma monitorização holística do concelho, os sensores que estão a ser desenvolvidos para o SMAS Almada no âmbito do projecto europeu PROTEUS e as dezenas de pilotos da cidade de Santander. São apenas alguns exemplos que querem provar os benefícios da IoT em ambiente urbano.
Para o responsável da Indra, há “dois denominadores comuns”: sensores e análise de dados. “Na passagem do conceito à materialização, pode dizer-se que a IoT é a infra-estrutura para as cidades inteligentes, tendo por base a interligação de objectos reais com o mundo virtual, possibilitando a partilha de informação (como localização, status, problemas, …) e, em simultâneo, o processamento dessa mesma informação – Big Data.
É esta mesma base de interligação que vai permitir que os vários sensores utilizados nas plataformas das cidades, adicionados aos sensores utilizados pelos restantes participantes, saírem de uma posição de rede isolada e estarem no patamar de partilha e uso de informação”, esclarece Vasco Mendes de Almeida.
Também nas cidades, as aplicações IoT têm também de fazer sentido, até pelo avultado investimento que envolvem, alerta Pedro Maló. “Se fizermos essa triagem, não são assim tantas”, considera, dando como exemplo os sensores de recolha de lixo que permitem optimizar as rotas nas grandes cidades. “Por um lado, as pessoas que fazem a recolha conhecem os padrões e já fizeram a sua adaptação e, por outro, no caso do lixo orgânico, mesmo sem o contentor cheio, não se pode deixar de o recolher por questões de saúde pública, cheiros, etc. Perde-se toda a vantagem de colocar lá a tecnologia”, argumenta. No entanto, admite, esta pode ser uma solução vantajosa para os resíduos recicláveis e mesmo os contentores de lixo orgânico em ambientes rurais, onde estes não estão tão próximos da população. O importante, sublinha, é perceber e estudar os reais benefícios da introdução de tecnologia IoT em cada contexto de aplicavel particular.
A localização, nomeadamente através dos sistemas de informação geográfica (SIG), desempenha um papel fundamental na concretização destes projectos. Segundo a Esri Portugal, a expansão do uso e combinação de SIG e sensores IoT, face aos benefícios comprovados, é hoje uma realidade. No caso das utilities, em particular no sector da água, “a combinação dos SIG com sensores inteligentes tem sido utilizada para reduzir as perdas e os custos de manutenção e planeamento”, adianta Nuno Pereira Leite. “A activação destes sensores permite incorporar a localização de leituras acústicas, electromagnéticas e termais – localizando rapidamente perdas e infra-estruturas danificadas. Os dados dos sensores são capturados e integrados com aplicações SIG que alertam e mostram, aos técnicos de serviço, a secção de rede danificada sobre um mapa digital (muitas vezes num tablet, laptop robusto ou outros dispositivos móveis). As aplicações SIG permitem aos técnicos de serviço ver, localizado, o troço de rede danificado e quaisquer outras infra-estruturas na sua imediação, o que economiza muito tempo e dinheiro gasto à procura do problema, permitindo adicionalmente reparos oportunos que limitam danos e o impacto futuro nas áreas e sistemas circundantes”, exemplifica.
Pedras no caminho
“Hoje em dia as ‘coisas’ já estão todas ligadas entre si: carros, estradas, pontes, túneis, estações, redes de água, energia, comunicações e edifícios”, constata Nuno Pereira Leite. A razão é simples: “optimizar tempo, custos, recursos, planear acções preventivas, monitorizar aspectos de segurança e, em simultâneo, maximizar os serviços para o cidadão”. Mas, a par de todo este potencial, a IoT é assombrada por alguns fantasmas, que vão desde a energia à capacidade de comunicação, interoperabilidade, armazenamento, etc. Na opinião dos especialistas, a segurança e a privacidade são temas incontornáveis.
“O aumento do número de dispositivos conectados e o potencial desconhecimento das necessidades de segurança pelos seus correspondentes utilizadores provocará um aumento de ‘mercado’ de hackers e estes mesmos dispositivos poderão funcionar como porta de entrada”, elucida Vasco Almeida, apontando a utilização de standards e a modelação como possíveis soluções. Para Pedro Maló, este é um risco que vai existir sempre, não obstante todas as soluções de segurança que vão sendo criadas. A resposta parece passar impreterivelmente por pesar os prós e os contra, mas também, aponta o responsável da Indra, por ter uma comunidade que envolva todas as partes, incluindo os cidadãos, disposta a ultrapassar os desafios e permitir à comunidade usufruir dos benefícios.
Mas não são só as questões tecnológicas que preocupam os especialistas. A iliteracia digital e consequente exclusão, que são muitas vezes acentuadas por questões como as alterações demográficas ou o envelhecimento da população, também fazem parte dos desafios desta nova fase tecnológica. A estes Pedro Maló acrescenta uma visão mais crítica: Estamos a ser geridos por tecnocratas que só vêem números e a IoT vai no sentido de lhes dar ainda mais informação para justificarem as suas decisões; acontece que nem sempre as decisões que se tomam [com base em números] são as melhores para as pessoas, para a sociedade”. Perante a rapidez do avanço da tecnologia, o docente acredita que é preciso “quem pense” de forma crítica e responsável, e apela: “Precisamos de construir cidades mais eficientes e ordenadas mas ao mesmo tempo mais justas e solidárias, temos esse dever para com os nossos filhos”.