Na criação da cidade inteligente, é preciso um “Novo Acordo Digital”. O especialista Bas Boorsma explica quais os elementos de base necessários para uma estratégia smart city exequível.

1. Liderança
A liderança que está preparada para a digitalização inclui a capacidade para enfrentar resultados repentinos e inovações disruptivas. A boa liderança no espaço da cidade inteligente não está restrita a um “controlo” eficaz, mas implica uma influência abrangente num ecossistema muito maior de partes interessadas. Muitas histórias de sucesso de cidades inteligentes começaram com uma liderança visionária que conseguiu reunir a comunidade e as suas partes interessadas e induzir uma ação positiva. Uma grande parte desta abordagem à liderança não pode ser descendente: a gestão eficaz de uma cidade inteligente geralmente envolve uma “liderança de serviço” excelente. Isto aplica-se, obviamente, aos líderes do sector público. Os líderes do sector privado envolvidos nos esforços realizados pelas comunidades inteligentes também devem reavaliar os seus papéis e aceitar as responsabilidades que estão associados à liderança social.

2. Governança
A digitalização é um empreendimento horizontal. A conectividade, soluções, arquiteturas, cibersegurança e dados devem ser rigorosamente geridos para que a comunidade não acabe por ficar retida em silos e para estar suficientemente preparada para o futuro. A digitalização não pertence (apenas) ao gestor de TI ou a uma única equipa, mas afeta toda a organização, toda a comunidade, todo o município e todo o ecossistema. A governança vertical cruzada dentro da organização em foco é, por conseguinte, imperativa. Muitas iniciativas de sucesso de cidades inteligentes começaram com pessoas e equipas bem ordenadas na operação através de silos e de departamentos.

3. Visão
Esta parece a parte mais fácil, mas, infelizmente, a verdadeira visão não é equivalente a um PowerPoint excecional. Uma visão real está baseada nos desafios e ambições reais de uma comunidade. Alcançar uma visão genuína exige um processo iterativo de criação e troca entre as partes interessadas da comunidade.

4. Necessidades, desafios e vantagens comparativas
A compreensão do que é que a comunidade realmente deseja e precisa, mas também quais são os seus ativos e pontos de venda mais fortes, constitui o ponto inicial correto para qualquer estratégia de comunidade inteligente. O “solucionismo” e as extravagâncias tecnológicas podem assim ser evitados graças a uma abordagem de comunidade inteligente bem sucedida que acabe por atender às necessidades reais, enquanto fortalece o dinamismo social e reforça as suas vantagens comparativas.

5. Ativos
Demasiadas iniciativas inteligentes começam com um inventário insuficiente dos ativos existentes e que podem ser relevantes para o empreendimento da cidade inteligente, incluindo condutas, fibra, redes municipais, postes de luz, armários de rua e outras coisas mais. O exercício de um inventário sólido e detalhado pode reduzir os custos e melhorar a facilidade da implementação do projeto da cidade inteligente.

6. A arte de ligar tudo
Os esforços da cidade inteligente só podem ser bem sucedidos se forem realizados em arquiteturas simples e seguras. Em segundo lugar, os mesmos precisam de ser suficientemente abertos no sentido em que os vários componentes de hardware e software têm de ser interoperáveis e conformes com os padrões abertos da indústria, para não serem comprometidos pelos problemas das soluções fechadas e privadas. Em terceiro lugar, “aberto” não é equivalente a “código aberto”. A arte de ligar tudo é alcançada ao ocasionalmente derivar valor do que pode ser considerado código aberto, sem chegar a uma manta de retalhos de construções de software bem-intencionadas, mas que, em conjunto, podem provar ser tudo menos simples ou seguras. Em quarto lugar, as arquiteturas de cidades inteligentes vão precisar de se preparar para um futuro onde a maior parte dos dados serão tratados de uma forma hiper-localizada (por motivos de segurança e de latência). Como resultado de tal, as capacidades computacionais Fog and Edge (inteligência na periferia da rede) irão revelar-se obrigatórias. Em quinto lugar, as tecnologias de acesso múltiplo terão de ser impulsionadas. Os casos de utilização apuram que tecnologia de acesso se adequará melhor e variam substancialmente. Alguns casos de utilização poderão ser bem executados numa ligação de rede móvel, outros funcionarão melhor em tecnologias de rede de longo alcance e de baixa energia, como, por exemplo, a LoRa. Em sexto lugar, as arquiteturas otimizadas da cidade inteligente preparam-se para a conectividade, segurança, soluções e para os dados serem tratados horizontalmente através de silos. Não faz qualquer sentido adquirir um software isoladamente para uma solução vertical caso uma plataforma horizontal possa facilitar verticais múltiplas e soluções verticais múltiplas. Adicionalmente, o valor atual e futuro dos dados irá derivar da capacidade da cidade para abrir os dados e vê-los em referência cruzada em vez de fechados em silos. Por fim, tudo o que foi referido acima é de pouco valor se não existir uma infraestrutura de banda larga que esteja apta a perdurar no futuro. A infraestrutura de banda larga era e continua a ser fundamental.

7. Padrões
As soluções, arquiteturas e iniciativas da Comunidade Inteligente devem aderir, tanto quanto possível, aos padrões abertos da indústria, definir requisitos relativamente à interoperabilidade (especialmente se os padrões estiverem em falta) e podem, de facto, ajudar a produzir padrões da forma como os parceiros da cidade inteligente os adquirem, fornecem e escalam.

8. Cibersegurança e resistência digital
Com mais de 2,5 milhões de ciberameaças a ser monitorizadas nas redes do mundo inteiro a cada segundo, a cibersegurança nunca pode ficar em segundo plano. A cibersegurança é fundamental e deveria ser integrada na rede em vez de por cima dela. A cibersegurança deve ser uma preocupação nas implementações iniciais, nas provas de conceito e pilotos (e não deve ser algo que só entra no nosso pensamento em etapas mais tardias das implementações escaladas), uma vez que os primeiros conceitos têm um péssimo hábito de persistir depois de terem sido apresentados. Aliás, a Internet na sua totalidade serve de exemplo para o ponto posterior: se fôssemos conceber a internet hoje, correspondendo às necessidades e requisitos dos dias de hoje, nunca a conceberíamos da forma como ela é atualmente. Derradeiramente, nós – como uma sociedade e como uma comunidade inteligente de partes interessadas – vamos precisar de adotar uma cultura de resiliência. Ninguém pode garantir totalmente a cibersegurança. Os ataques informáticos vão acontecer, os seus ativos digitais vão ser comprometidos – há que assumir isso. Comparável com a forma como lidamos com um comportamento de condução imprevisível dos outros na autoestrada, comparável com as formas como os nossos sistemas imunológicos reagem a uma infeção, temos de assumir uma atitude de resiliência. Podemos não saber quando irá ocorrer a falha, mas podemos garantir que estamos preparados para quando a mesma acontecer.

9. Macro dados
Se as iniciativas iniciais da cidade inteligente se focavam na infraestrutura, o capítulo seguinte focou-se em soluções de cidade inteligente. Posteriormente, as iniciativas da comunidade inteligente focaram-se mais nos dados, com as plataformas e os algoritmos a tornarem-se fundamentais. As iniciativas da cidade inteligente bem sucedidas são, normalmente, as que articulam que valor é proveniente dos dados, quer sejam públicos quer privados, que dados devem ser abertos ou não e quais os dados que devem ser armazenados e quais os que devem ser eliminados. A gestão e governança dos dados são desafios fundamentais do nosso tempo. Quem é que protege os dados, quem ou o que é que determina as regras sobre a governança de dados e Quis custodiet ipsos custodies? Por outras palavras, quem vigia os protetores? Por fim, os dados são, sem sombra de dúvidas, o lubrificante e o combustível da cidade inteligente. Contudo, esta ideia frequente de que os dados constituem o novo petróleo pode representar um tanto ou quanto de exagero. Para começar, não existe escassez de dados, sendo o desafio a forma de vincular um valor económico aos mesmos. O que representa o valor económico – e considero estes os verdadeiros ativos numa estratégia de digitalização – são as ferramentas para captar, normalizar, controlar, analisar e assegurar dados e as aplicações que derivam do mesmo.

10. Regulamentos Inteligentes
As mudanças induzidas pela digitalização são rápidas e exponenciais, ainda assim, os nossos regulamentos são estáticos e normalmente incorporados em paradigmas antigos. Retificar as nossas estruturas reguladoras para reger a digitalização da comunidade é imperativo. Por um lado, tal traduz-se nas retificações atempadas e incrementais às normas e regulamentos existentes. Por outro, normas e regulamentos completamente novos têm de ser construídos de uma forma que reflita o surgimento de paradigmas, arquiteturas de negócio e modelos de entrega totalmente novos que, claramente, não existiam há alguns anos. O negócio dos táxis, por exemplo: o “quadro regulamentar 1.0” funciona bem na regulamentação do negócio dos táxis antigo, mas falha redondamente na regulamentação da Uber. Os regulamentos modernos que poderiam ajudar a gerir o mundo digitalizado nas exigências da mobilidade, incluindo os serviços da Uber, também podem ser inapropriados para fazer face ao antigo mundo dos táxis. São dois mundos diferentes que não se combinam. Precisamos de ambientes regulatórios que consigam gerir tais ambientes diversos e híbridos. Enfrentar eficazmente esta componente essencial da digitalização da comunidade também exige um Novo Acordo Digital (New Digital Deal).

A Parte III deste artigo pode ser lida na edição de Abril/Maio/Junho 2018 da Smart Cities.

Este artigo foi baseado no livro A New Digital Deal – Beyond Smart Cities. How to Best Leverage Digitalization for the Benefit of our Communities, disponível na Amazon.