Os termos “cidade inteligente” e “comunidade inteligente” têm adquirido diversas definições. Nos dias de hoje, como podemos preparar-nos para a cidade inteligente e garantir que tomámos a escolha certa?

A digitalização possui um potencial sem precedentes para as nossas comunidades. As ferramentas, valores e paradigmas organizacionais que constituem e acompanham a digitalização permitem que o empreendimento humano seja organizado de uma forma melhor e diferente. Esta promessa, no entanto, não se irá tornar realidade sem uma ação direta. Irá exigir uma imensa colaboração, de forma transversal, das partes interessadas da sociedade, produzindo um novo consenso do que a digitalização nos permite fazer e como o estruturar e simplificar, de modo a extrair todo o seu potencial. Isto é o que pode ser definido como um “Novo Acordo Digital” (New Digital Deal) para as nossas comunidades, um Novo Acordo que é digital por natureza.

O outro lado mais negro desta mesma premissa é que, se falharmos na tarefa de atingir um consenso, se não chegarmos a um Novo Acordo Digital, os fossos digitais irão expandir-se, a rutura digital irá apenas perturbar, a inovação será largamente governada pelo incrementalismo e os desafios sociais continuarão a ser discutidos de um ponto de vista superficial. Estas são as premissas centrais do meu livro A New Digital Deal. Beyond Smart Cities. How to Best Leverage Digitalization for the Benefit of our Communities, que escrevi tendo estado ativo no que pode ser denominado como “o Espaço da Cidade Digital” durante 15 anos. E para os empreendimentos das smart cities, as premissas acima aplicam-se, especificamente, a esforços com vista às cidades inteligentes, nos quais tentamos conceber, forjar e acelerar a digitalização, as ferramentas digitais e os princípios resultantes da digitalização nas nossas comunidades. Por outras palavras, a sociedade precisa de “acertar” com a digitalização e, se for possível considerar os esforços da cidade inteligente como estando na vanguarda dos esforços de digitalização do futuro próximo, estas iniciativas poderão levar a que acertemos à primeira tentativa.

O objetivo deste artigo é partilhar dois componentes derivados do “A New Digital Deal”: uma compreensão do que nos estamos a referir com os termos “cidade inteligente” ou “comunidade inteligente” (Parte I) e, em segundo lugar, o que constitui os elementos de base necessários para uma estratégia exequível para as cidades inteligentes (Partes II e III). Permitam-me que comece pelo primeiro.

Os próprios termos “cidade inteligente” e “comunidade inteligente” existem e têm sido largamente utilizados desde o virar do século, tendo adquirido várias definições diferentes ao longo dos anos. Os resultados destas iniciativas de cidades inteligentes têm sido igualmente diversos: um histórico combinado de sucesso pode ser associado, até ao momento, ao termo “cidade inteligente”, com tantas boas práticas, como com outras não tão boas, mas com as quais podemos aprender. E, apesar de muitas iniciativas de comunidades inteligentes terem resultado numa profusão de lições aprendidas, algumas das maiores explosões digitais vieram sem aviso ou plano, contudo afetaram as comunidades de forma mais profunda do que várias iniciativas planeadas.

 

 

A noção de “Cidade Inteligente” foi sempre vaga. Ambas as palavras representam um problema: “inteligente” permanece difícil de definir e quaisquer objeções ao termo tendem a aumentar se contemplarmos o que constitui, exatamente, o oposto de ser “inteligente”. É quase impossível ligar o termo a KPI (indicador de performance) e objetivos mensuráveis, enquanto qualquer tentativa de enquadrar o termo será afetada rapidamente pela ação do tempo – o que é considerado “inteligente” hoje poderá não será ser assim tão inteligente no futuro. A segunda palavra, “cidade” limita substancialmente o âmbito. Não existe nenhum motivo pelo qual uma estratégia de digitalização que tipicamente se poderia aplicar a uma cidade não se aplicaria a uma localidade mais pequena, a uma região, a um campus ou, de facto, a todo um país. Uma grande cidade poderá, potencialmente, ter necessidades diferentes relativamente a uma localidade mais pequena, mas esta possui os seus próprios requisitos e benefícios associados a uma estratégia de digitalização personalizada. Ignorar esta última, enquadrar a digitalização das comunidades como algo que meramente se aplica às cidades, significa tolerar e adicionar fossos digitais modernos.

No centro de muitas definições e iniciativas, para o bem e para o mal, esteve sempre uma premissa tecnológica. No início dos anos 2000, debates, projetos, pilotos e a liderança inovadora focaram-se nas infraestruturas. Banda larga. Na conectividade de alto nível e como esta iria impactar (e mudar) a forma como pensamos sobre cuidados de saúde, mobilidade, lojas de venda a retalho ou educação. O segundo capítulo foi liderado pelas grandes empresas de tecnologia e focou-se em soluções e na arquitetura de soluções, algumas destas fechadas e privadas. O terceiro capítulo focou-se nos dados. Macrodados, análise, visualizar o futuro das cidades inteligentes como um mercado de dados de cidades.

Independentemente do quão importantes estas premissas tecnológicas foram (e representam, efetivamente, o motor do esforço da cidade inteligente), uma estratégia de digitalização de comunidades bem-sucedida é raramente beneficiada ao colocar-se a tecnologia no início e no fim de uma equação, tipicamente com um desafio social lançado no meio. Uma comunidade verdadeiramente “inteligente” é uma comunidade que começa nos seus cidadãos, nas necessidades reais das comunidades, vantagens e desafios comparativos e que é capaz de os abordar, através de estratégias de digitalização e inovação abrangentes, colhendo os frutos da promessa do que a digitalização nos permite.

Tenha-se em atenção: o pré-requisito para que esta se torne realidade é uma compreensão adequada do que constitui a digitalização. A digitalização não se restringe a uma mera aplicação de tecnologias digitais. A digitalização engloba as ferramentas, tecnologias e paradigmas organizacionais, culturais e económicos que acompanham as tecnologias digitais – considere-se a economia de plataformas como um exemplo económico. Ou considere-se a transparência e a colaboração como componentes importantes para uma cultura de digitalização. Uma comunidade verdadeiramente inteligente adota estas noções na sua essência.

Por último, uma comunidade inteligente está plenamente ciente do facto de que os procedimentos de digitalização originam os seus próprios pontos negativos. A perda de postos de emprego devido à automatização, fossos digitais recentes ou preocupações a nível da sociedade relativas à perda de privacidade são meros exemplos de problemas resultantes da digitalização. Uma verdadeira “comunidade inteligente” é uma comunidade capaz de abordar e mitigar esses pontos negativos com eficácia. Porque, no fim de contas, quão inteligente iremos considerar uma comunidade se esta é constituída por milhares de pessoas zangadas e desempregadas a marchar nas suas ruas, a protestar contra os pontos fundamentais que iriam auferir à comunidade o rótulo de “inteligente” em primeiro lugar?

 

Uma boa liderança não pode prescindir de uma governança preparada para o digital, tal como a arte de interligar tudo (Art of Connecting Everything) não pode prescindir da cibersegurança adequada. Não prestar atenção a apenas alguns dos elementos de base pode acabar por desmoronar a iniciativa ao longo da sua execução.

Estratégias para cidades e comunidades inteligentes

No meu livro, A New Digital Deal, foi dada uma definição do que constitui uma “comunidade inteligente”. A necessidade de uma definição era óbvia: sem uma definição atualizada, as estratégias podem provar-se irrelevantes. Aqui está:
Uma comunidade inteligente é uma comunidade que potencia inovações, ferramentas e princípios organizacionais digitais, de forma a auxiliar a comunidade a evoluir para se tornar mais sustentável, inclusiva, bem-sucedida e criativa, acabando por beneficiar o cidadão individual. Uma comunidade inteligente potencia a digitalização para que esta aumente e amplifique de forma positiva o dinamismo social existente da comunidade em questão. Uma comunidade inteligente é capaz de abordar de forma positiva as fraturas sociais através de meios digitais, sendo capaz de mitigar o impacto disruptivo que a mudança digital pode infligir numa comunidade. Uma comunidade inteligente é uma comunidade na qual a digitalização não está limitada a facilitar uma série de – frequentemente, muito impactantes – eficiências. Em vez disso, uma comunidade inteligente potencia as tecnologias em concepções com valor para a humanidade e para seres humanos a nível individual. Uma comunidade inteligente visa potenciar a digitalização para impulsionar o crescimento individual e o bem-estar coletivo.

De seguida, então, o que é necessário para criar uma estratégia para cidades inteligentes com probabilidades de sucesso razoáveis? É claro que a natureza da comunidade poderá diferir. A comunidade visada não precisa de ser, de facto, uma cidade – pode ser um estado, um grande campus, uma aldeia, um conjunto de aldeias, um país, uma cidade ou uma região.

Os objetivos também podem diferir: podem variar entre articular uma resposta da comunidade aos “poderes digitais” – como a chegada da Uber ou Airbnb à cidade – e um programa de digitalização do país ou um plano para uma cidade inteligente proativa e arrojada. É claro também que diferentes tamanhos, necessidades, objetivos e culturas produzem diferentes estratégias e resultados distintos.

Posto isto, podemos aprender muitas lições a partir de diversos esforços de digitalização das comunidades e de iniciativas para cidades inteligentes por todo o mundo, sendo que várias destas perspetivas comprovaram-se extraordinariamente consistentes, independentemente da localização, cultura ou o tamanho e tipo da comunidade. No meu livro, A New Digital Deal, articulei uma estrutura de 20 “elementos de base”. Verificar todas as 20 caixas dos elementos de base irá proporcionar o ponto fundamental para o sucesso. A incapacidade de abordar um certo número dos mesmos reduz as probabilidades de obter os resultados que uma comunidade almeja alcançar.

A marcação positiva de todos os 20 elementos de base é um alicerce para o sucesso, mas não uma garantia. Esta simplesmente significa que possui um conjunto bastante completo de ingredientes com os quais preparar a refeição que tem em mente. Muitos dos elementos de base são interdependentes: uma boa liderança não pode prescindir de uma governança preparada para o digital, tal como a arte de interligar tudo (Art of Connecting Everything) não pode prescindir da cibersegurança adequada. Não prestar atenção a apenas alguns dos elementos de base pode acabar por desmoronar a iniciativa ao longo da sua execução. Novamente: a compreensão é a chave do sucesso.

Continuar a ler: Parte II

Este artigo foi baseado no livro A New Digital Deal – Beyond Smart Cities. How to Best Leverage Digitalization for the Benefit of our Communities, disponível na Amazon.