No passado dia 19 de Fevereiro, a Comissão Europeia (CE) lançou a sua estratégia para o uso de dados e um relatório sobre inteligência artificial (IA). A instituição europeia quer criar um “mercado único” de dados para o sector público e privado e acredita que a forma como se irá organizar o acesso a essa informação “vai determinar a nossa capacidade futura de inovação”. A estratégia visa a partilha de dados na procura do “bem comum”, assim como a protecção dos mesmos e dos direitos fundamentais dos cidadãos. Já no que se refere à utilização de tecnologia de reconhecimento facial, através de IA, para fins de identificação, Bruxelas reitera a sua proibição “por princípio” na União Europeia (UE), mas manifesta a vontade de “lançar um debate” sobre o tema.
A CE quer contrariar a detenção de “uma grande parte dos dados mundiais” por parte de “um pequeno número de grandes empresas tecnológicas”. A estratégia de dados europeia, apresentada no dia 19, tem com objectivo “criar um mercado único de dados, em que informações pessoais e não pessoais, incluindo dados confidenciais e sensíveis, estarão seguros e no qual o sector público e as empresas terão acesso fácil a grandes quantidades de dados de alta qualidade para criar e inovar” – lê-se na página web da Comissão. A “criação de novas oportunidades de negócio” para pequenas e grandes empresas e a procura do “bem comum” são as grandes linhas orientadoras para a estratégia de dados da UE.
Definindo um horizonte de cinco anos, a estratégia de transformação digital europeia encontra nos dois documentos recém publicados os seus “primeiros pilares”. O foco vai estar em três objectivos chave: “tecnologia a funcionar para as pessoas”, “uma economia competitiva e justa” e “uma sociedade aberta, democrática e sustentável”.
Com o propósito de desbloquear “enormes oportunidades” e de trazer “benefícios para cidadãos e empresas” dentro dos Estados-Membros da União, a recém apresentada estratégia visa a utilização de dados abertos para proporcionar “ganhos de produtividade” para as empresas e para a prestação de serviços públicos. O objectivo declarado da Comissão Europeia é o de disponibilizar acesso a dados “a todos, sejam públicos ou privados, start-ups ou gigantes [empresariais]”. Utilizar os dados disponibilizados para melhorar a mobilidade dos cidadãos nas suas deslocações diárias, aumentar a eficiência energética, combater emergências, desenvolver medicamentos personalizados para pacientes ou contribuir para que a Europa se torne no primeiro continente a alcançar a neutralidade climática em 2050 são alguns dos exemplos dados por Bruxelas para realçar a importância da disponibilização de grandes conjuntos de dados. A Comissão Europeia acredita que a partilha de dados entre governos e empresas pode revelar-se “decisiva” para “o bem-estar geral na UE”.
Perante dúvidas de privacidade e de garantia do cumprimento dos direitos fundamentais dos cidadãos, a estratégia procura “garantir que os indivíduos permanecem em total controlo dos seus dados”, dando às pessoas “uma voz mais forte sobre quem pode aceder aos dados” por elas próprias gerados. A Comissão exemplifica, uma vez mais, ao dizer que esta pretensão de dar mais poder às pessoas “pode ser suportada pela adopção de normas mais rígidas aos acessos de dados em tempo real ou através da garantia da neutralidade dos espaços de dados pessoais”. No decorrer do ano, a instituição europeia vai apresentar a Directiva de Serviços Digitais (Digital Services Act), que será o documento responsável pelo estabelecimento das normas de acesso ao mercado único.
Reconhecimento facial é “intrusivo” e “proibido”, mas vai haver debate sobre “excepções”
A Comissão Europeia quer “desbloquear o enorme potencial de novas tecnologias como a IA”. No mesmo dia em que lançou a estratégia de dados europeia, publicou também um relatório sobre inteligência artificial, intitulado On Artificial Intelligence – A European approach to excellence and trust. Segundo a instituição, o documento tem como objectivo promover o desenvolvimento e a utilização de inteligência artificial, assim como “assegurar o respeito pelos direitos humanos fundamentais” neste campo, num momento em que o desenvolvimento e investimento na área está em crescimento. A CE pretende agilizar e aumentar a eficiência na colaboração entre Estados-Membros em matéria de IA, apoiando-se, para isso, no Plano Coordenado Europeu para a Inteligência Artificial, assinado em Dezembro de 2018.
Uma das aplicações mais controversas da IA é a tecnologia de reconhecimento facial. A CE admite que esta tecnologia pode tomar várias formas – podendo, por exemplo, ser utilizada para desbloquear smartphones e em verificações fronteiriças -, mas destaca, sobretudo, a sua utilização mais mediática: a identificação biométrica remota, na qual sistemas de vigilância captam imagens de pessoas e procuram correspondências em bases de dados. A Comissão Europeia considera que “esta é a forma mais intrusiva de reconhecimento facial e é proibida, por princípio, na UE”. Ainda assim, dá conta da “vontade” de “lançar um debate alargado para averiguar quais as circunstâncias que podem vir a justificar excepções no futuro”.
Admitindo que esta tecnologia “representa riscos específicos para os direitos fundamentais”, a CE reforça que as regras comunitárias para a protecção de dados “já proíbem, por princípio, o processamento de dados biométricos para o propósito único de identificar uma pessoa, excepto sob condições específicas”, podendo apenas acontecer em caso de “interesse público substancial” e baseando-se num uso “justificado” e “proporcional”. Para garantir o respeito dos direitos dos cidadãos e a garantia de cumprimento das leis comunitárias contra a discriminação, a CE sublinha a necessidade de certificar, testar e controlar, tal como acontece com “carros, cosméticos e brinquedos”, exemplifica.
O investimento nos sectores dos dados e da IA vai chegar através do Horizonte Europa – o próximo programa-quadro de investigação e inovação da UE -, do Connecting Europe Facility 2 (CEF 2) e do Programa Europa Digital (DEP). A partir do Horizonte Europa, a CE propõe um investimento de 15 mil milhões de euros no cluster “Digital, Indústria e Espaço”, assumindo a inteligência artificial como “actividade chave”. A partir do Programa Europa Digital, a proposta de investimento para plataformas de dados e aplicações de inteligência artificial aproxima-se dos 2,5 mil milhões de euros.
Através de um questionário on-line, a CE está a promover um processo de recolha de opiniões sobre a estratégia de dados. Para o relatório sobre inteligência artificial, decorre também um processo de consulta pública, até 19 de Maio. Fruto das participações registadas, a Comissão “planeia tomar medidas adicionais para apoiar o desenvolvimento de IA de confiança e de uma economia de dados ágil”.