As grandes transições – climática, energética, ecológica, demográfica e migratória, digital e laboral, socioeconómica – e as suas externalidades positivas e negativas ilustram bem as dificuldades do percurso que temos pela frente.
Em matéria ambiental, no sentido amplo, os resultados ficam claramente aquém dos objetivos e são continuamente redefinidos, se pensarmos nas agendas da União Europeia sobre biodiversidade, ecossistemas e serviços de ecossistema, e das Nações Unidas sobre alterações climáticas e Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. A característica comum a todas estas dificuldades é o controlo das externalidades e a efetividade da política pública de regulação que é aplicável.
As próximas décadas reservam-nos grandes incógnitas e grandes transformações: a transição ecológica e a incógnita das alterações climáticas (o advento de uma nova era geoclimática); a transição digital e a incógnita da inteligência artificial (o advento do transumanismo); a transição produtiva e a incógnita das migrações (de pessoas, bens, serviços e capitais e o advento de uma nova geopolítica). E não sabemos se estas transformações serão convergentes ou divergentes.
Já aí está a polémica acerca de um novo regime climático, designado por Antropoceno. As ciências sociais e humanas colam-se mais às ciências naturais em busca de uma explicação; a variável climatérica deixa de ser uma variável exógena para se converter, cada vez mais, numa variável endógena. A severidade e a hostilidade do clima afetam a nossa vida quotidiana, avisando-nos de que a transição ecológica é um horizonte incontornável de sentido para a vida humana, um sentido de finitude, de limite e responsabilidade. Eis, pois, a utilidade social do respeito em toda a sua plenitude. Se não respeitarmos a natureza, não haverá coevolução benigna homem-natureza e o nosso quotidiano poderá transformar-se num verdadeiro inferno.

A segunda grande transição diz respeito à transformação digital. A transição digital é a grande força transformadora do nosso tempo, feita de liberdade e transgressão, desde o infinitamente pequeno das nanotecnologias até ao infinitamente grande da robótica inteligente, numa viagem que transforma profundamente os mercados de trabalho e nos pode levar para lá dos limites do ser humano, em direção ao transumanismo e à pós-humanidade.
A terceira grande transição diz respeito às grandes migrações, de pessoas que buscam trabalho e refúgio; de bens e serviços que buscam a melhor deslocalização para serem produzidos; de capitais que enlouquecem em busca da melhor rentabilidade; de plantas e animais que buscam novos habitats para poderem sobreviver. É a luta pela vida.
Perante esta tripla transição, há muitos sinais contraditórios e suspeições recíprocas. A comunidade ecológica suspeita da arrogância tecnológica e digital, enquanto os atores do digital, marcados pela desmaterialização e pela eficiência, se consideram ecológicos por natureza. As duas transições desencadeiam círculos virtuosos, círculos viciosos e pegadas ecológicas e digitais mais ou menos pronunciadas. Por sua vez, e face a estas duas transições, a perceção do risco fica de tal modo vulnerável e instável que as migrações acabam por acelerar o metabolismo global e sistémico das três transições, ao mesmo tempo que provocam ondas de choque em todas as direções.
Se há um fator comum às três transições é a sua declarada extraterritorialidade, ou seja, elas não respeitam as fronteiras tradicionais dos Estados nacionais e criam uma espécie de terra de ninguém, bem como uma responsabilidade difusa, que é, quase sempre, tida como muito conveniente. Devido à magnitude das alterações climáticas, à aceleração exponencial da tecnologia digital e à ilegalidade de muitos fluxos migratórios, temos imensa dificuldade em reconstituir a origem, o destino e os protagonistas destas profundas transformações e, quase sempre, chegamos tarde a um universo comportamental sem jurisdição apropriada ou com uma jurisdição territorial muito fragilizada.
“A biodiversidade, as alterações climáticas e os serviços de ecossistema são uma ilustração eloquente das fragilidades de uma utopia legalista e normativista do governo global, que ignora, voluntária ou involuntariamente, o realismo das relações de poder entre Estados soberanos na cena internacional.”
Ao mesmo tempo, privatizar o benefício e socializar o prejuízo continua a ser a regra de ouro da teoria das externalidades negativas e do capitalismo mercantilista mais predador. Acresce que a pegada ecológica do digital revela uma contradição insanável: os seus elevados consumos de energia (10%), as emissões de CO2, os consumos elevados de materiais raros e a baixa reciclagem destes materiais, a obsolescência programada de equipamentos. Acrescente-se a cultura produtivista das grandes plataformas, que não só busca a oligopolização dos mercados, como facilita a evasão fiscal, a violação da privacidade e o condicionamento da opinião pública e dos consumidores. A lista dos efeitos externos negativos é longa e desemboca, tarde ou cedo, numa socialização dos prejuízos com cobertura conhecida, ou seja, dos contribuintes anónimos. A chamada “arte de exportar o risco moral para dentro do orçamento geral do Estado”.
Em matéria ambiental, o problema essencial não é apenas de eficiência, redução, reciclagem e reutilização – a chamada sustentabilidade fraca –, mas também de transformação de práticas e comportamentos, da natureza dos produtos e serviços, dos modelos de negócio, da geografia das cadeias de valor e dos jogos entre atores – a chamada sustentabilidade forte.
A efetividade da regulação ambiental
O que dissemos levanta um problema muito sério à eficácia, eficiência e efetividade da política de regulação ambiental; desde logo, problemas de delimitação do objeto, âmbito, escala, fronteira e horizonte temporal de cada problema. Acresce que estes conflitos de fronteira e jurisdição obrigam-nos a atualizar constantemente o objeto e o território da nossa própria escala.
Por sua vez, as escalas são, elas próprias, instâncias de recurso umas das outras. Cada escala gere vetores descendentes, ascendentes e horizontais, em combinatórias variáveis de jurisdições – local, regional, nacional, europeu e internacional. A agenda ambiental é, portanto, um problema transfronteiriço, intertemporal e difuso; logo, com graves problemas de interoperabilidade, além de ser uma construção social e política de primeira grandeza.
Na verdade, devido à geometria variável de cada problema, os conflitos de fronteira são frequentes e remetem-nos para as seguintes questões: quem administra os conflitos de fronteira? As partes em conflito são ou não capazes de fazer autorregulação, há uma procedimentalização bem estabelecida para gerir o conflito, uma hétero regulação? Onde acaba a discricionariedade (deliberação política legítima) e começa a arbitrariedade (abuso de poder) da regulação pública e/ou política?
Os conflitos de jurisdição são, com efeito, fundamentais, porque eles produzem externalidades positivas e negativas e criam benefícios e custos de contexto entre escalas e níveis de regulação. Na ausência de fronteiras bem estabelecidas, algumas atividades podem ser intrusivas no território de outras atividades em declínio ou em perda de prioridade. Por isso, mais uma vez, perguntamos: que institucionalidade acompanha estas mudanças e como estamos a acompanhar politicamente o problema?
Acrescem, ainda, os problemas de invisibilidade do bem comum e da apropriação do espaço público, de lobbying dos interesses, a tirania das pequenas decisões e os critérios de mera oportunidade, a gestão dos episódios acidentais e dos custos de transação mais elevados.
Os problemas emergentes e as agendas mais críticas (biodiversidade e serviços de ecossistema, aquecimento global e descarbonização, transição digital e inteligência artificial, por exemplo) não têm ainda quem os represente eficazmente e efetivamente; ou seja, não há lógicas de ação coletiva reputada por detrás desses problemas. Há sempre uma jurisdição política, mas esta pode estar lá para iludir o problema, fazendo apenas a sua mitigação. Há, também, a questão do próprio regulador, quando ele não tem independência face ao poder político ou não tem competência e meios suficientes para resolver o problema, sendo que, neste caso, o regulador é parte do problema e não parte da solução. E nem sempre é possível fazer esta distinção. Entretanto, quem protege e defende os valores de existência e os valores de opção dos recursos naturais mais valiosos? De que modo a ciência está ou pode contribuir para estas duas missões fundamentais, face aos poderes económico e político, que têm geralmente visões curtas e critérios de oportunidade do problema?
Finalmente, nunca temos toda a informação disponível para tomar a melhor decisão. A informação é parcial e, por vezes, ocultada; o tempo de decisão é diferido, a tomada de decisão confunde, geralmente, deliberação política com produção legislativa, a administração confunde a aplicação da lei com a gestão do problema. Para rematar, temos os tribunais e a administração judiciária e a judicial. No final, alguém ainda reconhece as razões, os motivos, a urgência do problema inicial?
A política foi sempre o governo dos limites e nos limites, porque sempre houve, na política tradicional, um interior e um exterior. Hoje, perante os grandes riscos e a finitude do ecossistema global, todos os grandes problemas tendem a ser problemas domésticos da ordem global cosmopolita e da sociedade doméstica internacional. É aqui que nos encontramos.
A biodiversidade, as alterações climáticas e os serviços de ecossistema são uma ilustração eloquente das fragilidades de uma utopia legalista e normativista do governo global, que ignora, voluntária ou involuntariamente, o realismo das relações de poder entre Estados soberanos na cena internacional. As convenções e os protocolos das Nações Unidas, as agendas, os regulamentos e as diretivas da União Europeia, as leis-quadro e as leis de base dos parlamentos nacionais, o direito administrativo dos governos regionais – eis a fileira legalista e normativista da sociedade cosmopolita internacional, com todas as contradições que ela encerra e, não obstante, o ponto de partida para a construção de um mundo de bens comuns globais.
Notas Finais
Aqui chegados, sabemos já que todas as delimitações são variáveis, plurais, contextuais, provisórias e que esses limites terão de ser definidos e justificados várias vezes de acordo com a evolução do problema em concreto (Innerarity, 2010). Isto é, não só aumenta o número dos problemas que os Estados só podem resolver cooperativamente como teremos de criar uma espécie de networking-state e uma democracia procedimental para configurar politicamente problemas tão complexos.
As grandes transições e os riscos globais impelem-nos nessa direção, pois desafiam a autossuficiência dos sistemas, os limites e as agendas nacionais e obrigam os adversários a estabelecer alianças. Falamos de um novo espaço público para impedir uma nova tragédia dos comuns, de articular o interesse público num âmbito cujos significado e dimensão conhecemos mal. É o regresso da doutrina dos bens comuns.
Como facilmente se observa, em matéria de regulação ambiental, as interrogações prevalecem sobre as respostas – e nem sequer falei de pandemias ou de guerra em solo europeu. No plano da União Europeia, esta nova gramática cosmopolita dos bens comuns está longe de estar bem estabelecida. É certo que a sua complexa estrutura de governação já modificou o modo de conceber e exercer o poder e, em parte, ultrapassou o paradoxo de as perdas de soberania poderem significar ganhos de soberania.
Importa, todavia, não esquecer de que a utopia legalista e normativista, cosmopolita e comunitária desencadeia efeitos cruzados em todas as direções, gerando novas vinculações, obrigações, custos de contexto e de formalidade que, se não forem tomadas medidas de salvaguarda apropriadas, estarão na origem de novas discriminações e exclusões, sociais e empresariais, e acabarão por ter o efeito contrário ao pretendido inicialmente. Por seu lado, pode ser facilmente acusada de excesso de normativismo e, mesmo, de green washing.
É apenas um aviso à navegação, porque os conceitos abstratos e apolíticos da grande sociedade cosmopolita, devido aos efeitos assimétricos que ocasiona, podem estar na origem de novas segregações e exclusões. E, em vez de regulação, tratar-se-ia apenas dissimulação.
As opiniões expressas são da responsabilidade dos autores e não reflectem necessariamente as ideias da revista Smart Cities.