Saskia Sassen, socióloga urbana, passou por Portugal em Maio, para o ZOOM Smart Cities 2016. Numa oportunidade para falar sobre cidades inteligentes, a especialista revelou as suas preocupações para o presente, mas também o que a mantém optimista para o futuro. O cidadão, o espaço urbano, a imposição de uma obsolescência tecnológica e o conhecimento que permitirá às cidades trabalhar com o meio ambiente foram alguns dos temas que discutimos com a autora de A Cidade Global.
Muito se fala de cidades inteligentes. Como encara este conceito?
Gosto sempre de realçar que, se uma cidade inteligente não mobiliza a inteligência dos seus cidadãos, então, não é muito inteligente. Se assim for, é apenas a implementação de sistemas técnicos. Quando adicionamos as pessoas, tudo se torna mais complicado. As pessoas não têm apenas uma forma e não podemos controlar as suas opiniões, os desejos, as preocupações. Isto aumenta o nível de complexidade, pelo que digo que smart significa ser capaz de lidar com um cenário muito mais complexo do que aquele que se consegue criar num laboratório para desenvolver uma tecnologia e instalá-la na cidade.
O que é, então, inteligente numa cidade?
Numa smart city, temos de lidar com uma variedade de inteligências, incluindo a loucura dos residentes urbanos. A esse ponto, torna-se muito mais complexo e instável, o que significa que… não é estável! E é isso smart ou não é? É possível dizer se um sistema técnico é ou não inteligente, se dá ou não resposta e por que é que é ou não inteligente. Mas, quando falamos do cenário urbano, há tantas coisas a acontecer que a questão é muito mais difícil de responder.
Essa é uma abordagem que deve vir de cima? Dos governos?
Precisamos de governos com pessoas com conhecimento, de especialistas do lado da academia, de activistas que conheçam os bairros ou as questões das cidades e precisamos do cidadão comum, que não sabe sequer que existe o conceito de smart city. Uma cidade tem de lidar com um número incrível de variáveis – população, opiniões -, o que torna tudo mais difícil. Para mim, o verdadeiro desafio é perceber se existe algum tipo de inteligência que possa conciliar todas essas diferenças. E, quando pensamos numa cidade real, não apenas um conjunto de edifícios, é fantástico olhar para a sua longevidade… As nossas cidades têm vidas muito mais longas do que sistemas muito poderosos, ainda que fechados, seja na forma de governos, seja enquanto corporações muito grandes. Pensemos em Lisboa, quantas corporações que eram extremamente poderosas há 100 anos ainda existem? Mas a cidade e os seus bairros continuam vivos. É algo muito bonito…
Durante essas longas vidas, quais os principais desafios que as cidades têm de enfrentar?
São muitos. Depende da cidade, do quão bem esta está organizada… Penso que as cidades europeias estão muito mais bem organizadas e já existe como que uma infra-estrutura. Paris, por exemplo, está há décadas a tentar “concertar” coisas, a trazer novas competências, a reconhecer necessidades… Uma cidade que se esforça pode realmente ter uma longa história de reconhecimentos, novos desenvolvimentos, progressos tecnológicos, exigências dos cidadãos, etc. Quando isso existe, é muito mais fácil ter-se uma cidade inteligente.
E quando isso não existe? Temos exemplos?
Numa cidade como Nova Iorque (NY), uma das mais ricas do mundo, há um enorme subaproveitamento do conhecimento dos seus residentes – excepto se são a elite, aí as suas opiniões são verdadeiramente respeitadas – e há uma falha na implementação de coisas que podiam ser feitas. Por exemplo, na maior parte das cidades europeias, há Wi-Fi público, o que não existe em NY. É algo tão básico, mas que simplesmente não existe. Se olharmos também para o metro nova-iorquino e o compararmos com os das cidades europeias, apercebemo-nos de que é muito velho e aparenta estar muito degradado. Lá, não se tem essa noção, eu fico muito contente que o metro exista.
O que tem de mudar numa cidade como Nova Iorque?
Levar os seus cidadãos a sério. Esse é um verdadeiro desafio. Quando existe liderança urbana, um mayor que realmente leva as suas pessoas a sério faz a diferença. Medellín é um óptimo exemplo disso. Uma cidade que estava submersa numa onda de violência extrema e o mayor Fajardo decidiu que ia levar os seus cidadãos a sério, incluindo os mais pobres. E ele construiu bibliotecas públicas e escolas com arquitecturas belíssimas e extraordinárias nos bairros mais pobres, que seriam aqueles mais propensos a sofrerem com o conflito, e isso foi um passo muito importante. Ligou os bairros pobres ao centro da cidade. Estas são intervenções que usam a noção total de uma cidade. Funcionou e hoje Medellín é considerada um exemplo absolutamente extraordinário, uma experiência natural, que ninguém previa que acontecesse assim.
As pessoas são o bem mais valioso das cidades?
Bem, sim e não, porque as pessoas vêm em muitas formas. Há pessoas muito destrutivas e isto inclui aqueles que são muito ricos, não só os pobres ou delinquentes. Uma cidade é uma verdadeira mistura, uma mistura de ambiente construído que tem as suas próprias forças. O ambiente construído é algo que foi construído nas nossas cidades durante séculos. É preciso levá-lo a sério… Mas, ao mesmo tempo, temos de destruir algumas coisas e construir outras novas. O espaço urbano está constantemente a mudar, mas está sempre lá. Essa é uma parte muito importante da cidade, mas as pessoas também o são, claro.
Defende que temos de aprender a escutar aquilo que a cidade nos diz. Como?
Através de um conjunto muito particular de elementos, a cidade como que nos diz o que não funciona. É mais fácil compreender o que funciona. Por exemplo, um carro espectacular, capaz de andar em todo o terreno e a alta velocidade, quando chega ao centro de uma cidade, valia mais se fosse um carro mais “inteligente”, já que todas as suas capacidades não têm uso ali. Ou os edifícios de habitação de alta densidade – algo que está a acontecer muito nos EUA, onde se construíram muitos edifícios de alta densidade para os mais pobres e que se tornaram muito maus… Não funcionam, porque estes edifícios precisam de muita manutenção para os elevadores, e se o governo não avança com o dinheiro para a manutenção, torna-se um desastre. Os elevadores avariam, as luzes deixam de funcionar, torna-se perigoso para as pessoas usarem as escadas… Ao olharmos para os fracassos a nível urbano, podemos pensar em como a cidade nos está a tentar dizer qualquer coisa: não funciona. Não devemos fazê-lo.
Mas estes erros podem ser evitados ou têm de acontecer?
Por agora, há alguns erros que não se deviam repetir. Mas errar faz parte da curva de aprendizagem, logo vai sempre acontecer.
Quando olha para as cidades de hoje, o que mais a preocupa?
O facto de, quando olhamos para os sistemas técnicos, a taxa de obsolescência estar a acelerar. Antigamente, quando se construíam edifícios, estes só se tornavam obsoletos passados, talvez, 100 anos, mas hoje bastam dez anos. Tal como acontece com os sistemas técnicos. Como aconteceu com os equipamentos de ar condicionado. Estamos a construir edifícios para cidadãos de terceira classe. De certa forma, é inevitável, pois temos tecnologia, mas, para mim, é interessante ver como a obsolescência está a acelerar. E podemos vê-lo pelos nossos dispositivos digitais, o que está a criar uma crise de resíduos electrónicos. Nunca se fala disso, mas temos montanhas de computadores e telefones que estão obsoletos. Isto é grave… O que vamos fazer com eles?
Esta velocidade é perigosa para a sociedade?
Perigosa não é a palavra, mas é um problema. Há uma espécie de obsolescência necessária com a qual temos de viver, é a nossa história ao longo dos séculos. Algumas coisas tornam-se inevitavelmente obsoletas, mas há também uma obsolescência que é uma função do mercado, da economia. A ideia de haver novos telefones que rapidamente estão desactualizados… Aí, começo a ver problemas. Penso que não tem nada a ver com inovação, mas com interesses comerciais.
É aí que está a ameaça?
Sim, é um modus operandi mau. Temos de sair dele, porque o nosso meio ambiente está a ser destruído. Mesmo que só se olhe para isto do ponto de vista ambiental – e não do moral –, é patético.
Acredita que isso nos vai trazer problemas no futuro próximo?
O problema já está a acontecer! Não sabemos como nos ver livres dos resíduos electrónicos, mas ninguém fala disso. É como se fosse uma conspiração em que ninguém diz nada. Falamos das mais recentes inovações, dos últimos iPhones – por falar nisso, fiquei muito contente por saber que o último modelo não vendeu tão bem. Todo o aparato à volta do tema, pessoas que ficam a pé toda a noite à porta das lojas, isto é espectáculo. Eu adoro espectáculo e, se o objectivo for esse, é fantástico! As cidades também têm de ter isso! Mas temos de ser mais inteligentes, devíamos usar a nossa inteligência…
O que temos de ver?
No meu novo livro Expulsions, dedico um capítulo ao tema. Comecei realmente a olhar para isto e sempre que se abre uma mina, matamos terra e expulsamos pessoas. São circuitos muito complexos e apenas estamos a olhar para um lado, o do lançamento do novo modelo. No fundo, sabemos que há sempre um outro lado e vamos ter de lidar com ele.
Estamos a ignorá-lo?
Posso dizer que os mais jovens começam a reconhecer estas questões. Há sempre uma parte que passa a mensagem de que estar toda a noite à espera de um novo modelo deve ser o ponto alto da vida destas pessoas – o que é também um indicador de outros fracassos, pois será mesmo este o acontecimento mais importante? Admito que seja muito excitante, mas o que é perturbador é que seja relativamente a estas questões e que as pessoas sejam reduzidas a isso.
Mas a tecnologia tem também lados positivos. Está a trabalhar no desenvolvimento de aplicações, certo?
Adoro este projecto! O ponto de partida é o facto de termos desenvolvido uma série de apps para cientistas, profissionais de topo, basicamente para o sector consumista que compõe a maior parte da classe média compradora. Isso é fantástico, mas, em contrapartida, temos feito muito pouco para responder às necessidades dos trabalhadores com baixo rendimentos e dos bairros mais pobres. Estou muito empenhada em perceber o que podemos fazer aí.
Depois deste retrato, acredita que o futuro pode ser positivo?
Vejo coisas muito boas, como o regresso da agricultura urbana ou da bicicleta. As pessoas estão sensibilizadas para a questão ambiental e como lidamos com ela. Precisamos de tudo isso e nas cidades pode fazer-se muita coisa. Estou também a trabalhar a outro nível com pessoas que desenvolvem Ciência dos Materiais e que estão muito empenhadas em desenvolver elementos biológicos – algas, bactérias, fungos – para criar superfícies urbanas de todo o tipo, funcionando com o meio ambiente.
Como assim?
Um exemplo claro: uma bactéria que se aplica como uma tinta no betão e que, com o tempo – porque a biosfera tem a sua própria temporalidade – vai desenvolver um cálcio invisível que sela a superfície e evita a emissão de gases com efeito de estufa. Com o tempo, vai purificar o ar à volta daquela superfície. Outro exemplo, em Copenhaga, cientistas desenvolveram uma bactéria que quando aplicada nas “águas escuras” [lixiviados], passado algum tempo, esta produz uma molécula de plástico durável, resistente e biodegradável. O que era negativo torna-se positivo. A cidade pode vender aquelas “águas escuras” ou montar uma fábrica que produz este plástico. É revolucionário e são poucas as pessoas que sabem que isto está a ser feito. Nesse sentido, vejo que as cidades são espaços muito activos e não apenas a cidade inteligente como descrevi…
Considera que podemos, então, acreditar no futuro?
Exactamente. Podemos fazer as cidades funcionar com a biosfera. Aliás, temos de fazê-lo. Toda a noção de reciclagem é muito pequena. Há conhecimento extraordinário sobre como podemos usar as capacidades da biosfera, em contraste com os plásticos feitos pelo homem que não são biodegradáveis, e há muito pouca sensibilização para isso… Mas vai mudar e os nossos mayors estão muito à frente nessa matéria.
*O artigo foi publicado, originalmente, na edição #12 da revista Smart Cities. Aqui, com as devidas adaptações.