Serviços que se dizem parte da Economia da Partilha, como a Airbnb ou a Uber, têm sido um pesadelo para quem faz as leis e não só em Portugal. Por todo o mundo, as cidades estão a ser obrigadas a encontrar formas de regular estes serviços e integrá-los nas suas engrenagens. Para o jurista e especialista em Direito Global e da Internet Tito Rendas, nesta missão, a “abertura do legislador” é fundamental. “Portugal só tem a ganhar com as demonstrações de abertura a este género de serviços”, mas, atenção, “é importante esperar, estudar e compreender as nuances dos serviços em questão antes de se legislar”.

 

Os serviços associados à chamada Economia de Partilha encontram-se cada vez mais disseminados, de forma global. Do ponto de vista legal, de que forma é que estas actividades se encontram reguladas?

A expressão “Economia da Partilha” abarca serviços muito diferentes uns dos outros – da partilha de meios de transporte à partilha de habitação, passando pela venda de bens em segunda mão. As regras que regulam, por um lado, os serviços de transporte e, por outro, o alojamento local são, por isso, também elas distintas. Sem prejuízo dos seus elementos comuns, é difícil conceber um conjunto de regras que se aplique aos serviços de partilha em geral. O que se pode e deve fazer é regular cada um destes serviços, tendo em conta as especificidades dos sectores em que se situam. Alguns já foram regulados com sucesso, como o Airbnb. Outros estão por regular, como a Uber.

A maioria destes serviços têm sede noutros países, embora as suas actividades resultem em implicações nacionais. Além disso, num exemplo de mediação digital, fornecedor e cliente podem ser nacionais, numa plataforma criada por uma empresa internacional. Como é que esta questão é vista, do ponto de vista jurídico?

O problema, em si, não é novo. Imagine-se o seguinte caso: João, português, numa viagem a Marrocos, apaixona-se perdidamente por Alessandra, italiana, com quem casa no decurso da viagem. Qual a lei aplicável ao casamento: a portuguesa, a marroquina ou a italiana? Há regras em cada ordenamento jurídico destinadas a resolver estes conflitos de leis no espaço. É certo que a disseminação das tecnologias digitais resultou numa multiplicação do número de situações em que este tipo de questão se coloca e num acréscimo da respectiva complexidade, mas o problema é fundamentalmente o mesmo.

Faz sentido a regulação ser feita tendo em conta a tipologia de serviço (por exemplo, a Airbnb ser equiparada aos hotéis/unidades de alojamento para efeitos de legislação e regulação)? Ou, tendo em conta a natureza de mediação entre pares destes negócios, adequa-se a regulação como serviço digital?

Os serviços que cabem debaixo do guarda-chuva da Economia da Partilha têm algumas características em comum. Todos eles permitem rentabilizar recursos subutilizados. E todos eles são serviços próprios da sociedade de informação, na medida em que assentam numa plataforma digital de intermediação. A Uber é uma plataforma de intermediação, tal como o é o Airbnb. Uma decorrência da sua qualificação como serviços digitais é a de que beneficiam, na União Europeia, da aplicação do princípio da livre prestação de serviços. Mas, como frisei na resposta à sua primeira questão, debaixo deste guarda-chuva abrigam-se fenómenos muito diferentes uns dos outros. Na hora de legislar, a tal tipologia do serviço não pode deixar de ser tida em consideração. Foi o que se fez no novo regime jurídico do alojamento local, aplicável, por exemplo, ao arrendamento de curta duração através do Airbnb.

Do ponto de vista nacional, como está definida a responsabilidade tributária destes serviços de partilha? E em questões como privacidade de dados, relações laborais?

As normas de direito do trabalho e as normas sobre protecção de dados pessoais aplicam-se aos fornecedores de serviços de partilha, tal como a qualquer entidade que celebre contratos de trabalho e que trate dados pessoais. No que respeita aos impostos, os detractores deste tipo de serviços costumam convocar, em apoio da sua posição, o bicho-papão do decréscimo de receita fiscal, causado pela migração dos utilizadores para estes serviços alternativos. Mas este decréscimo parece ser, como o bicho-papão, um mito. No caso da Uber, além de as viagens incluírem IVA à taxa legal e de as empresas parceiras e respectivos motoristas pagarem IRC e IRS em Portugal, o sistema de facturação electrónica dificulta a evasão fiscal – evasão essa muito difícil de combater no sector dos táxis. No caso do Airbnb, o novo regime veio obrigar ao registo dos estabelecimentos de alojamento local e facilitar a fiscalização do cumprimento das obrigações fiscais dos proprietários.

Dado o carácter diferenciador deste tipo de actividades (plataformas digitais, mas com implicações nas actividades existentes potenciando concorrência desleal), defende a necessidade de uma regulação específica para serviços de economia de partilha?

Defendo a abertura do legislador a serviços como aqueles de que temos vindo a falar, que contribuem para uma satisfação apta das necessidades humanas e que permitem o aproveitamento de recursos que, num paradigma tecnológico mais atrasado, eram dificilmente aproveitáveis. Estes serviços permitem-me rentabilizar a minha casa, arrendando-a, enquanto estou de férias, e o meu automóvel, partilhando trajectos e dividindo os custos. Ao contrário dos velhos do Restelo, que antevêem o caos nas estradas provocado pela Uber e a multiplicação dos hotéis abandonados devida ao sucesso do Airbnb, acredito que Portugal só tem a ganhar com as demonstrações de abertura a este género de serviços. É natural que estas novas empresas procurem estabelecer-se e desenvolver-se em países que demonstrem essa abertura. Quanto aos contornos da regulação, como disse, cada caso é um caso. É importante esperar, estudar e compreender as nuances dos serviços em questão antes de se legislar. Mas não se deve perpetuar a incerteza.

Tendo em conta que questões como mobilidade urbana (Uber, por exemplo) ou registo de unidades de alojamento local (Airbnb) têm competências a nível local, que papel podem ter as autarquias na adaptação regulatória ao modelo da economia de partilha?

As autarquias podem tomar decisões com impacto significativo no desenvolvimento e sucesso destes serviços. Pense-se, por exemplo, no impacto para o Airbnb da criação de uma taxa municipal turística. Mas a competência para legislar é da Assembleia da República e do Governo.

De forma geral, acredita que a crescente importância dos serviços da Economia de Partilha vá trazer grandes mudanças a nível da regulação da concorrência, serviços e consumo?  

A relação parece-me circular ou com implicações recíprocas. A popularidade destes serviços leva à sua regulação e esta, por sua vez, ao pôr termo a situações de incerteza, deverá resultar num aumento da adesão por parte dos consumidores. Creio que estes serviços, se devidamente regulados, trarão mudanças muito positivas. Aliás, estas mudanças são palpáveis mesmo antes da regulação. O surgimento da Uber veio elevar a fasquia, fazendo com que mais taxistas recorressem a aplicações tecnológicas como auxiliares na prestação do seu serviço e revelassem uma preocupação maior com o estado do automóvel que conduzem. O maior beneficiário destas mudanças é o consumidor.

 

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