Os perigos da visão tecnocrática das cidades inteligentes

Em tempo de pandemia, as tecnologias de inteligência urbana são essenciais no suporte à tomada de decisão e à definição de medidas políticas. Mas, se aplicadas no âmbito de uma visão tecnocrática de cidade inteligente, podem conduzir-nos à falsa escolha entre ‘saúde pública’ e ‘privacidade’.

A Coreia do Sul encontra-se a controlar digitalmente o movimento das pessoas infetadas com o novo coronavírus, utilizando os dados das transações dos cartões de crédito e débito, da localização dos telemóveis e de câmaras de videovigilância, muitas vezes, em colaboração com grandes empresas tecnológicas. Os resultados desta monitorização não são apenas utilizados pelas autoridades de saúde, sendo publicados em websites, disponibilizados em aplicações de forma gratuita e enviados através de mensagens SMS para os cidadãos.

O mesmo se passa noutros países, como na China, onde são atribuídos aos habitantes QR Codes que revelam o seu estado de saúde, indicando se estes se podem deslocar livremente (código verde), se devem ficar em casa durante sete dias (código amarelo), ou se terão de estar em quarentena duas semanas (código vermelho). Esta rotulagem de seres humanos conduz, certamente, a comportamentos de estigma e discriminação.

Nesta linha, depois de iniciativas pontuais de alguns países europeus, a Comissão Europeia pretende avançar com um programa de monitorização de dados pessoais fornecidos pelas operadoras de telecomunicações (uma por país) para fazer um seguimento da Covid-19, salientando que os mesmos serão sempre tratados de forma agregada e anonimizada. O objetivo é analisar os padrões de mobilidade, com vista a antecipar o ritmo de evolução dos contágios e a avaliar o impacto das medidas de confinamento.

O receio é o de que estas práticas se instalem e disseminem, passando a fazer parte do ‘novo normal’. De que forma os governos e as grandes corporações irão utilizar estes dados no futuro, nomeadamente os dados biométricos?

O futurista Gerd Leonhard afirma que a vigilância digital por meios tecnológicos irá generalizar-se como forma de mapear o comportamento dos indivíduos nas cidades, após as medidas extraordinárias tomadas para controlar a pandemia. Na verdade, as ações temporárias aplicadas excecionalmente tendem a perdurar após os estados de emergência. É o que nos ensina a História.

Yuval Harari, autor de Sapiens, Homo Deus e 21 Lições para o Século XXI, propõe uma alternativa à ‘vigilância totalitária’, que designa de ‘empoderamento do cidadão’. Trata-se de um cenário onde a informação e o conhecimento permitirão restabelecer a confiança na ciência e nas autoridades públicas, utilizando a tecnologia para capacitar os cidadãos e aproximar as comunidades. Um cenário que exige, de acordo com o mesmo autor, ‘solidariedade global’ em detrimento do ‘isolamento nacionalista’.

Esta visão vai ao encontro de uma visão humanista da cidade inteligente, onde escolhemos a saúde pública com a preservação dos direitos humanos.

As opiniões expressas são da responsabilidade dos autores e não reflectem necessariamente as ideias da revista Smart Cities.