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Jorge Máximo, diretor central no sector bancário e ex-vereador da CM Lisboa (2013-17), e Januário Rodrigues, investigador Doutorando em Sistemas de Energia Sustentável.

No debate sobre o processo e as prioridades para a transição climática das cidades, um dos temas em que invariavelmente se centra a discussão é o da redução do número de viaturas automóveis e das preferências e opções de mobilidade de todos aqueles que circulam diariamente nas cidades.

Neste debate, muitas vezes, esquecemo-nos da complexidade e vastidão da mobilidade em geral. Na realidade, não são só as pessoas, mas também as mercadorias, que necessitam de ser deslocadas de um ponto para o outro. Todo o setor dos transportes é responsável por estas movimentações e pela emissão de gases poluentes para as cidades.

[E, por isso,] A facilidade e, sobretudo, a eficiência energética e o menor impacto ambiental com que isso acontece é um desígnio das smart cities e das sociedades empenhadas em reduzir as emissões de CO2 e em minorar os efeitos da crise climática.

No entanto, apesar de o impacto dos transportes marítimos e da aviação nas emissões de carbono ser muito significativo, quando falamos de mobilidade sustentável pensamos, em primeiro lugar, nos transportes terrestres ligeiros, na diminuição do seu uso e na sua transição para modelos de mobilidade elétrica.

Facto é que, depois de décadas onde as cidades foram desenhadas e transformadas para facilitar a circulação e mobilidade automóvel, nos últimos anos, a circulação em automóvel individual nas cidades adquiriu uma conotação pública de poluidora e ocupadora do espaço público e, por isso, foi penalizada com o condicionamento da circulação ou com o aumento dos preços para estacionamento em zonas públicas.

Apesar do exposto, raros são os casos em que se perceciona uma efetiva mudança comportamental na preferência pelo desuso do automóvel particular. A perceção comum é a de que as cidades têm cada vez mais automóveis em circulação! São os serviços de entregas que crescem com um dinamismo económico assente em transações on-line que obrigam a distribuições ponto a ponto dentro das cidades, é a explosão da procura pelos serviços de TVDE (Transporte em Veículos Descaracterizados a partir de Plataforma Eletrónica), que colocam em circulação diária muitos dos veículos que anteriormente passavam a maior parte do seu tempo parqueados, e são os hábitos enraizados pela flexibilidade facilitada pelo transporte individual que continuam a desmotivar a preferência por outras opções. Nem o forte investimento na melhoria da oferta dos transportes públicos e a significativa redução do seu tarifário parecem ser suficientes para mudar o statu quo.

Aceitando esta realidade, a aposta mais recente é o incentivo à progressiva substituição do parque automóvel a combustão por modelos elétricos, nomeadamente através de incentivos fiscais e vantagens de circulação na cidade. Mas esse é um processo dispendioso, com efeitos muito demorados e, por ora, insuficientes para resolver os atuais problemas de mobilidade e poluição das cidades.

Claro está que substituir todos os veículos atuais de combustão interna por veículos 100% elétricos não vai reduzir os engarrafamentos e o excesso de veículos a entrarem diariamente nas cidades e a saírem delas e, por isso, vários dos atuais problemas de mobilidade com impacto na vida das pessoas continuarão a existir.

Quando tal acontecer, iremos, sim, reduzir de forma espetacular o CO2 emitido e a poluição por gases nocivos, pois estes não serão emitidos para a atmosfera na cidade. Acresce que os veículos elétricos são mais silenciosos e eficientes, o que também se traduz em maior conforto sonoro para as cidades e em menores necessidades de energia para o planeta em termos globais.

Mas não é verosímil pensarmos que, de um momento para outro, iremos conseguir fazer esta mudança. A verdade é que, segundo os relatórios da Associação Europeia de Fabricantes Automóveis (ACEA) de 2023, circulavam em final de 2021 quase 287 milhões de veículos na União Europeia (UE), o que dá cerca de 641 veículos, em média, por cada mil habitantes. Até Portugal, que só com a entrada na então CEE fez crescer o seu parque de veículos, já chegou à média europeia, juntando-se à média de países como a Alemanha, a Espanha, a Áustria e a Chéquia.

Nos últimos anos, em Portugal, venderam-se, em média, perto de 230 mil veículos novos por ano. Temos, atualmente, um parque automóvel com uma média de 12 anos de idade, num total de cerca de cinco milhões de veículos. Isto quer dizer que, se a partir do próximo ano apenas fosse permitido vender veículos elétricos em Portugal, demoraríamos quase 22 anos a substituir o parque automóvel na sua totalidade. Em toda a UE, o cenário é semelhante: 12 milhões de veículos novos por ano, ou seja, para substituir os quase 290 milhões de parque seriam necessários cerca de 25 anos! A este facto, acresce ainda o forte crescimento da procura de veículos automóveis nos mercados emergentes, que tornam insuficientes as capacidades e disponibilidades de meios e recursos para produção de veículos de nova geração sem continuar a pressionar os preços de venda e a implicar danos de outra natureza no planeta. Hoje, tornou-se normal e aceitável esperar nove meses entre a data de encomenda e a data de entrega de um novo veículo. E isso atrasa o processo de mudança.

Não queremos com todos estes números assustar os leitores com cenários pouco animadores, mas os números traduzem factos difíceis de contestar. Seja em Portugal, seja na Europa, as políticas de mobilidade adotadas nos últimos 15 anos vão demorar a fazer efeito na mudança das opções de mobilidade de hidrocarbonetos para as elétricas. Mais uma vez, os números não mentem. Em 2018, na UE, apenas 1% de todos os automóveis ligeiros novos vendidos eram elétricos, enquanto quase 93% tinham motor térmico a gasolina ou gasóleo.

Chegados a 2021, último ano disponível no relatório da ACEA, as vendas de automóveis 100% elétricos já representavam 9,1%, baixando para menos de 60% a venda de automóveis exclusivamente a hidrocarbonetos. Muito recentemente, a ACEA anunciou que junho de 2023 foi o primeiro mês em que venda de viaturas 100% elétricas na Europa superou as vendas de viaturas a diesel, muito influenciada pela redução dos preços dos veículos da norte-americana Tesla.

No entanto, em termos acumulados, ainda representam apenas 15% de vendas de carros novos (veículos híbridos valem cerca de 24%). A invasão da Ucrânia pela Rússia tornou ainda mais premente o acelerar do processo de transição energética na Europa. O plano REPowerEU, apresentado em maio de 2022 pela Comissão Europeia, visa reduzir rapidamente a nossa dependência dos combustíveis fósseis russos, reorientando rapidamente a transição para as energias limpas e unindo esforços a fim de alcançar um sistema energético mais resiliente e
uma verdadeira União da Energia.

É urgente dimensionar as opções estratégicas deste plano, no sentido de perceber se a maioria da energia necessária para a transição elétrica do parque automóvel europeu será proveniente de fontes renováveis, como a hídrica, eólica e fotovoltaica. Não vale a pena estar a eletrificar veículos se posteriormente, para se ter energia elétrica suficiente para as suas necessidades, for necessário queimar gás natural ou carvão nas centrais termoelétricas.

A poluição não estaria nas cidades, mas o planeta continuaria a sofrer as externalidades resultantes do aumento do consumo de gás natural e carvão. Também os postos de carregamento são um problema por resolver! Nomeadamente em cidades envelhecidas, densamente urbanizadas e que não foram planeadas para os novos conceitos de mobilidade. Para além da infraestrutura de carregamento propriamente dita, a rede elétrica da maioria das cidades carece do investimento necessário para suportar o acréscimo de consumo de energia elétrica que a eletrificação de viaturas exigirá. Muito se tem vindo a estudar a propósito deste problema, mas a verdade é que as atuais redes elétricas estão subdimensionadas para as necessidades futuras da mobilidade elétrica, mesmo que o autoconsumo com a colocação de painéis solares nos telhados das habitações das cidades possa ajudar a gerar alguma da energia adicional, necessária ao carregamento de viaturas.

A transição para a mobilidade elétrica traz também um paradoxo que, hipocritamente, muitos dispensam, para já, discutir. O seu impacto na receita fiscal. Não o podemos negar: os impostos sobre hidrocarbonetos e veículos a combustão são, hoje, uma enorme fonte de receita para a maioria dos Estados europeus. Não acreditamos que os benefícios fiscais de que atualmente os veículos elétricos beneficiam sejam sustentáveis a prazo e possam manter-se a médio prazo.

É um facto objetivo que pode desacelerar o processo de transição energética. Os Estados terão de encontrar novas fontes de receitas para permitirem compensar quebras de receitas tradicionais e financiar os investimentos para dotar as cidades da capacidade de facilitar e servir a mobilidade elétrica. Um nó complexo e muito difícil de desatar.

Há, contudo, medidas consensuais que devem ser já tomadas. Por exemplo, as políticas de estímulo à adoção de mobilidade partilhada poderão fazer baixar a necessidade de um parque automóvel de tão grande dimensão, quando está normalmente parqueado em 90% do seu tempo. Mas é uma transição que carece de uma mudança de mentalidade e de hábitos enraizados que, ela própria, será também demorada.

Outro tema essencial é o uso de inteligência na gestão urbana da mobilidade. As cidades inteligentes são ecossistemas conectados para melhorarem toda a rede de serviços e infraestrutura que oferecem. É fundamental aproveitar as tecnologias emergentes como o IoT, o 5G, o big data, a inteligência artificial e a condução autónoma, para conectar todo o sistema de mobilidade urbana aumentando a eficiência do seu funcionamento e permitindo respostas mais ágeis e adequadas às necessidades da movimentação das pessoas e bens, com impactos que vão além das questões ambientais e de saúde pública. Quando precisamos de nos deslocar do ponto A até ao ponto B, tendemos a utilizar o sistema individual ou multimodal mais rápido e eficiente, algo que poderá ser aconselhado com precisão aceitável por uma qualquer plataforma de informação. [Isto para se terem] Respostas de mobilidade multimodal concertadas entre transportes públicos privados e até de mobilidade suave – com a utilização de percursos a pé, de bicicleta e até das “contestadas” trotinetas – ou outros meios emergentes de utilização individual.

Na discussão de estratégias e políticas para veículos e mobilidade elétrica é importante evitar alguns preconceitos e um discurso de greenwashing, que podem levar a decisões precipitadas e sem grande utilidade acrescentada. A transição para a mobilidade elétrica é um caminho longo, penoso, mas que deve ser feito com passos firmes e consequentes. Um verdadeiro “caminho das pedras” que só as cidades inteligentes saberão percorrer com sucesso.

As opiniões expressas são da responsabilidade dos autores e não reflectem necessariamente as ideias da revista Smart Cities.

Este artigo foi originalmente publicado na edição nº 40 da Smart Cities – Julho/Agosto/Setembro 2023, aqui com as devidas adaptações.