Após um breve afastamento pessoal do setor de Cidades Inteligentes enquanto membro do privado, agora que visitei o Portugal Smart Cities Summit vestindo o chapéu da academia, emerge uma reflexão que me apraz partilhar. Se, por um lado, é bastante prazeroso ver o crescimento do evento desde a sua primeira edição, na qual marcavam presença meia dúzia de empresas e municípios, por outro, a exigência que me assiste olhar de forma crítica o estado do setor faz com que sejam percetíveis várias lacunas quanto à sua competitividade e sustentabilidade.

Competitividade

A visão unificada sobre a cidade que algumas empresas proclamam desde a aparição do conceito em Portugal parece hoje algo disseminado. São inúmeras as entidades que apresentam propostas semelhantes quanto à integração dos diversos verticais numa plataforma urbana única, mostrando-se agnósticas no que ao hardware diz respeito, “limitando-se” a colocar camadas de software em cima de fornecedores, na sua maioria, internacionais.

Esta abordagem é promovida quer por empresas de software, quer por grandes consultoras ou empresas de telecomunicações, tendo já algumas cidades adquirido soluções semelhantes (Porto, Lisboa, Cascais, etc.). Ainda que esta possa ser uma boa prática para garantir a competitividade das cidades face ao contexto internacional, é notória a incapacidade das empresas portuguesas de inovar autonomamente e, principalmente, de apresentar soluções disruptivas que possam ser comercializadas em tempo útil (o que se deve a diversos fatores). Ora, este facto pode evidenciar a falta de competitividade das empresas portuguesas no longo prazo, pois se, por um lado, poderão apenas tornar-se revendedoras de soluções, por outro, as empresas internacionais poderão, elas mesmas, efetuar a comercialização das suas soluções em território nacional, com a sua componente de software.

“Estes são problemas estruturais e que continuarão a existir caso não haja uma direção estratégica definida por parte do Governo central, e que permita que sejam definidas as linhas condutoras sob as quais os municípios deverão guiar a sua ação. Estratégia essa que deverá qualificar, organizar e promover a relação entre empresas, centros de conhecimento e municípios, por forma a garantir uma maior adequação e sustentabilidade dos projetos e da investigação associada.”

Para além disso, ao passear pelos expositores é ainda notória a falta de foco na terceira fase do conceito de Cidades Inteligentes (Smart City 3.0) definido na literatura pela co-criação com os cidadãos. O espaço de reflexão e de pensamento com o cidadão, a conceção de soluções que promovam novas formas de criar a cidade conjuntamente, até para colmatar o hiato existente na disponibilidade financeira através da inclusão do cidadão em fases precoces de planeamento, são tópicos que, ao que parece, ainda não passaram de buzzwords. O que me leva ainda a questionar sobre a falta de colaboração entre grupos de investigação e as cidades de forma metódica, recorrente e planeada.

Sustentabilidade

A falta de financiamento existente estará para ficar. No painel mais ansiado direcionado ao financiamento (como em todos os eventos), a ANI – Agência Nacional de Inovação apresentou as missões do Horizonte Europa e a call do consórcio NetZeroCities. Até aqui nada de errado, aliás, tudo certo; a não ser o facto de este tipo de financiamento ser direcionado, cada vez mais, a iniciativas disruptivas (deep tech, para lá de inovadoras), coisa que sobejamente passa ao lado de grande parte dos municípios que constitui o território nacional.

Foram dados ainda os exemplos dos projetos que envolveram as cidades de Lisboa – Sharing Cities – e de Évora – POCITYF. Projetos excelentes, alavancados na sua grande maioria por consultoras especializadas, mas que estão ao alcance de muito poucas cidades.

Existe, por isso, um largo desfasamento da realidade dos municípios e a respetiva investigação associada. Ainda que possa haver municípios com provas dadas em obter financiamento via projetos deste género, não devemos esquecer de que estes projetos financiam, na sua grande maioria, pilotos. Coisa que certamente não servirá os interesses de 99% dos municípios, que pretenderiam ver respondidas questões primárias relacionadas com infraestrutura base, transição digital e elementos (em massa) do mobiliário urbano.

Além disso, existe ainda uma heterogeneidade grande de fornecedores na aquisição de soluções (ainda que estas sejam semelhantes), algo que poderá também contribuir para a pouca sustentabilidade financeira dos municípios. Faltam, por isso, redes que permitam um investimento conjunto por parte dos municípios, por forma a fazer uma maior standardização das soluções adotadas. Em tempos, houve uma tentativa de se estabelecerem clusters especializados, mas cuja atividade ou existência não são/foram claras.

Penso que é de comum acordo que cada município não deverá ter, por exemplo, uma app diferente para interagir com o cidadão, construída de forma totalmente diferente. Ora, a simplificação e uniformização da experiência dos cidadãos, assim como escolha de fornecedores comuns poderia contribuir para uma maior sustentabilidade, possibilitaria a não abertura de procedimentos separados e a respetiva alocação de recursos humanos, assim como permitiria ainda o efeito de economias de escala.

Estes são problemas estruturais e que continuarão a existir caso não haja uma direção estratégica definida por parte do Governo central, e que permita que sejam definidas as linhas condutoras sob as quais os municípios deverão guiar a sua ação. Estratégia essa que deverá qualificar, organizar e promover a relação entre empresas, centros de conhecimento e municípios, por forma a garantir uma maior adequação e sustentabilidade dos projetos e da investigação associada.

Ainda que possa haver uma personalização da estratégia de cada cidade, deverá haver um conjunto de diretrizes nesta transição digital que garanta que não há um desfasamento tão vincado entre os municípios do nosso território (como aquele que eu próprio identifiquei num artigo científico intitulado de “Reviewing the State-of-the-Art of Smart Cities in Portugal: Evidence Based on Content Analysis of a Portuguese Magazine”), e que se irá realçar ainda mais caso não sejam tomadas medidas. Estas diretrizes deverão ser acompanhadas de pensamento crítico sobre a sustentabilidade financeira dos territórios e a formação dos seus quadros (para a disseminação de conhecimento em todo o território).

Posto isto, a questão que se continua a colocar passados estes anos é: Onde está o plano para o país? Ouve-se pelos corredores que o que estava há tanto tempo a ser cozinhado já não irá ser servido (por mudança de ministro e por estratégia de aplicação do Plano de Recuperação e Resiliência, diz-se). Esperemos que não passem de meros boatos.

 

Fotografia de destaque: ©Portugal Smart Cities Summit by Fundação AIP

As opiniões expressas são da responsabilidade dos autores e não reflectem necessariamente as ideias da revista Smart Cities.