Quase um ano depois da entrada do novo coronavírus nas nossas vidas, o que há a dizer? Não há dúvidas de que a pandemia abalou as nossas estruturas, mas, passado o doloroso choque inicial, é agora possível olhar para o que nos está a acontecer com alguma calma e pés no chão.
A situação é inédita para as nossas gerações, no entanto, sobreviver a uma epidemia não é uma experiência nova para as cidades – claro, com consequências e transformações, muitas radicais. Por exemplo, depois do Grande Incêndio de Londres em 1666, muitos acreditaram que o fogo poderia ser usado como uma estratégia de purificação contra a peste. Aquando da reconstrução do centro de Paris em meados do séc. XIX, as memórias de Haussmann deixam claro que uma das suas motivações foi a vontade de impedir o ressurgimento da cólera na cidade. Pela mesma altura, Nápoles levava a cabo uma autêntica renovação, especificamente para fazer frente ao mesmo inimigo. Dito isto e, como nos afirma Richard Florida, “as cidades vão sobreviver”.
É ainda prematuro fazer considerações sobre a magnitude das mudanças a que a Covid-19 nos vai obrigar, dependendo muito da duração, intensidade e evolução desta pandemia. Na eventualidade de chegarmos a uma vacina eficaz, é até provável que muitas das mudanças a que fomos obrigados se esbatam e voltemos ao business-as-usual. Todavia, há já algumas lições que podemos tirar e das quais não devemos esquecer.
De alguma forma, esta pandemia traz-nos humildade, despiu-nos a soberba de que somos senhores do planeta e do conhecimento. Estávamos esquecidos de que só há muito pouco tempo começámos a dominar a medicina como ciência e da quantidade infinita de coisas, nessa matéria, que ainda nos ultrapassa. Julgávamo-nos invencíveis, só que não somos.
Olhemos para o que a pandemia pôs a descoberto. O que começou por ser um vírus aparentemente “democrático”, que, com excepção da idade e condições de saúde pré-existentes, não olhava a classes, géneros ou etnias, rapidamente afectou de forma séria franjas das populações mais vulneráveis económica e socialmente. Não porque a natureza do vírus assim determinasse, mas porque as medidas que tomámos para nos proteger dele não chegaram a todos. Aqueles que não podem ficar em teletrabalho, que não têm opção senão estar fisicamente presente, que têm medo de denunciar os sintomas com receio de perder o emprego, que não têm alternativa a utilizar transportes públicos lotados, que vivem em casas sem condições e cuja dimensão não permite a distância física, para quem o isolamento, mesmo que obrigatório, não é opção. Estas e muitas situações semelhantes não são mais do que um reflexo do que está mal nas nossas sociedades e mostram-nos que, em casos de vida ou morte, as clivagens são ainda mais abismais.
Não é a primeira vez que nos deparamos com a capacidade de uma doença infecciosa evidenciar problemas existentes – já o vimos acontecer no passado – mas, mesmo assim, não aprendemos. E se antes não dispúnhamos do conhecimento e avanço tecnológico, hoje temos a possibilidade de usar essas ferramentas.
De alguma forma, esta pandemia traz-nos humildade, despiu-nos a soberba de que somos senhores do planeta e do conhecimento. Estávamos esquecidos de que só há muito pouco tempo começámos a dominar a medicina como ciência e da quantidade infinita de coisas, nessa matéria, que ainda nos ultrapassa. Julgávamo-nos invencíveis, só que não somos.
Numa nota mais positiva, o novo coronavírus traz a oportunidade de fazer diferente. Quando deixaremos de entender o crescimento económico como símbolo inequívoco de prosperidade e bem-estar? Quando vamos admitir os danos que estamos a causar ao nosso planeta e a todas as espécies que nele habitam, incluindo a nossa? Quando vamos, finalmente, agir em conformidade com isso? Quando vamos olhar para o outro como igual e garantir que ninguém fica de fora? Este é um tipo de humildade que nos coloca numa incerteza assustadora, mas é também um estado de espírito que nos permite estar mais preparados. Sem perder a esperança, mas humildes para encontrar respostas que não se limitem a funcionar, mas que funcionem para todos.
Editorial originalmente publicado na edição nº28 daSmart Cities (Julho/Agosto/Setembro 2020) aqui com as devidas adaptações
As opiniões expressas são da responsabilidade dos autores e não reflectem necessariamente as ideias da revista Smart Cities.