A digitalização é um tema incontornável na gestão local, com os municípios nacionais a apostarem cada vez mais no e-government como factor decisivo na ligação e interacção entre autarquias, cidadãos e empresas. Apesar de existir um estágio de implementação cada vez maior, ainda há lacunas e desafios por resolver, sobretudo no que diz respeito à prestação de serviços on-line, mas não só. Delfina Soares, directora da Unidade Operacional em Governação Electrónica da Universidade das Nações Unidas, faz o diagnóstico às políticas locais de e-Gov em Portugal e identifica as principais oportunidades de melhoria.

Delfina Soares é Directora da Unidade Operacional em Governação Electrónica da Universidade das Nações Unidas, instalada em Guimarães. É também docente no Departamento de Sistemas de Informação da Universidade do Minho e investigadora no centro ALGORITMI da mesma universidade.
Há hoje duas constatações inegáveis. Uma é o papel central e incontornável que o e-Gov assume para os governos, constituindo uma das prioridades de investimento, actuação e progresso dos países, independentemente da sua dimensão, da sua riqueza e do seu nível de desenvolvimento. A outra é o reconhecimento de que o e-Gov, e a aplicação das tecnologias digitais, não se pode, nem deve, restringir aos organismos centrais dos Estados. A transformação tem de ocorrer de forma holística, e desejavelmente articulada, em todos os níveis administrativos, nomeadamente no local.

Portugal e os municípios portugueses não constituem excepção a estas constatações. O e-Gov é hoje uma realidade no país e na generalidade dos seus 308 municípios. Pode ainda não apresentar a forma e os níveis de cobertura e de qualidade desejados, pode ainda não se apresentar em todo o seu esplendor, mas é já uma realidade.

Ao longo dos últimos anos, tem sido possível observar uma evolução na forma como os municípios têm usado as tecnologias digitais para facilitar, melhorar, modernizar e até transformar o modo como operam, como prestam serviços, como interagem com os cidadãos e lhes dão voz, e como conduzem os seus processos de decisão e de formulação de políticas autárquicas. Esta evolução tem vindo a acentuar-se recentemente. A pressão introduzida pela Covid-19 terá certamente contribuído para acelerar este processo. Mas também o nível de exigência cada vez maior que os cidadãos vão colocando [nos municípios] e a cada vez maior percepção dos responsáveis autárquicos em relação ao papel e ao potencial das tecnologias para os seus municípios têm sido catalisadores.

“Ao longo dos últimos anos, tem sido possível observar uma evolução na forma como os municípios têm usado as tecnologias digitais.”

É hoje evidente que a generalidade dos sites dos municípios disponibiliza uma vasta quantidade de informação, quer ao nível informativo, quer ao nível da transparência da gestão financeira e administrativa, e apresenta um conjunto de características técnicas adequadas. Apesar do referido, há que reconhecer que ainda existe uma série de debilidades e de oportunidades de melhorias, sendo ao nível da prestação de serviços on-line que estas mais se fazem sentir. Embora muitos municípios já disponibilizem, nos seus portais, informação sobre os serviços prestados, ofereçam a possibilidade de descarregar os formulários necessários para a sua prestação e, nalguns casos, também a possibilidade de submissão online, são ainda muito poucos os que permitem a execução integral on-line dos seus serviços – e ainda menos os que permitem o seu pagamento on-line.

O acesso a áreas reservadas para a execução desses serviços é também limitado, havendo muitos municípios que não dispõem sequer de uma área desse tipo. E para os que dispõem, muito poucos são aqueles em que a autenticação pode ser efectuada por cartão de cidadão ou chave móvel digital. O próprio processo de registo do cidadão na área reservada revela limitações, requerendo, em muitos casos, a introdução de demasiada informação e a anexação de vários documentos, não sendo de concretização imediata, e exigindo, por vezes, a deslocação física ao município para conclusão do processo e recolha dos dados de autenticação. A possibilidade de executar os serviços a partir de diferentes canais, que não apenas o portal do município, e de fazê-lo de forma integrada, numa perspectiva omnicanal, é uma realidade ainda praticamente inexistente.

Também ao nível da participação, do envolvimento e do empoderamento do cidadão – do “dar voz ao cidadão”, como tanto se anuncia –, as lacunas existentes são notórias. Apesar de se encontrarem alguns bons exemplos, o número, o tipo e o nível de sofisticação dos mecanismos de participação oferecidos aos cidadãos são ainda muito limitados. O envolvimento dos cidadãos em processos co-criativos de redesenho de serviços e de identificação de novos serviços é, por exemplo, algo ainda pouco usual. O espaço de melhoria a este nível é substancial. Há muito que pode ser feito.

Com efeito, estas são outras duas constatações inegáveis: muito tem sido feito, mas muito há ainda a fazer nos municípios. Sabemos das imensas limitações financeiras e de recursos humanos com as competências necessárias que os municípios enfrentam. Sabemos da complexidade de governar e de gerir o processo de modernização e transformação. Sabemos da necessidade de desenvolver maiores níveis de literacia digital nos municípios. São vários os desafios, mas são também imensas a vontade e a necessidade de continuar e de acelerar este percurso. O caminho faz-se caminhando: importa, pois, continuar a caminhar. E importa, sobretudo, identificar as melhores estratégias para se caminhar bem e o mais rápido possível.

As opiniões expressas são da responsabilidade dos autores e não reflectem necessariamente as ideias da revista Smart Cities.

ESTE ARTIGO FOI ORIGINALMENTE PUBLICADO NA EDIÇÃO DE ABRIL/MAIO/JUNHO DE 2023 DA SMART CITIES.