Assistimos, recentemente, a um preocupante retrocesso na política de descarbonização europeia, marcada pela guerra na Ucrânia, que precipitou a crise energética na Europa, com vários países a voltarem ao carvão como forma de evitar (de foram imediata) a dependência energética do gás proveniente da Rússia. Já no ano passado as emissões na União Europeia (UE) aumentaram, devido a um crescimento de 18% na produção de energia elétrica a partir do carvão, tendência que deverá manter-se em 2022.

De acordo com o Eurostat, em 2019, o índice de dependência externa da UE-27 era de 90 % para o gás natural e de 97 % para o petróleo bruto. A ambição da Europa em tornar-se neutra em termos de clima até 2050 e reduzir as emissões de gases com efeito de estufa em 55 % até 2030, tal como estipulado na nova Lei do Clima e no pacote de propostas do Pacto Ecológico Europeu, pode estar em risco.

Em Portugal, o cenário não é muito diferente. Cerca de dois terços (65,8%) da energia consumida no país vem do exterior, segundo dados de 2020. Por isso, todos os contributos para reduzir esta dependência devem ser considerados. Está na hora de olharmos para o sector dos resíduos sem preconceitos… Talvez nunca como agora a valorização energética dos resíduos tenha sido tão pertinente. Não é a melhor solução. Não é a única solução. Mas é mais uma solução que não deve ficar de fora do mix energético nacional.

Para vários stakeholders dos resíduos, a necessidade de reforçar esta solução no país é óbvia. Não o é para a tutela, sobretudo desde que a Comissão Europeia anunciou que não haveria financiamento para mais valorização energética. E assim se reescreveu a estratégia dos resíduos em 2018, eliminando a valorização energética, qual solução caída em desgraça.

Olhando o Plano Estratégico para os Resíduos Urbanos (PERSU) 2030, cuja consulta pública se encontra em análise, assolam-me dúvidas relativamente à eficácia da estratégia desenhada para o problema cada vez maior dos resíduos urbanos. Fica a sensação de que uma grande parte do que está por fazer fica por conta do “desejo” que a boa vontade e a consciência dos portugueses sejam suficientes para duplicar a separação dos resíduos.

Faço a apologia dos “heréticos” dos resíduos. Não basta fazer mais do mesmo. Temos de romper com esta tendência de não cumprir metas. E, para isso, temos de fazer diferente. Nos sistemas em baixa, é preciso apostar em modelos inovadores de recolha e generalizar a otimização dos sistemas de gestão, por exemplo. Na alta, enquanto ainda não se percebe que investimentos são necessários nos TMB (Tratamento Mecânico Biológico), é preciso reforçar o que está a funcionar – a valorização energética – e que, neste caso, pode resolver parte do problema da dependência energética.

Países como Alemanha, França, Reino Unido e EUA testam já modelos de valorização energética para combustíveis, em que os resíduos são usados para produzir hidrogénio. O hidrogénio gerado por estas instalações tem a característica única de ser renovável e com baixo teor de carbono. O potencial de utilização deste combustível, que valoriza os resíduos e contribui para reduzir a pegada ecológica, é imensa, mas o PERSU 2030 passa completamente ao lado.

É certo que, além da resistência da tutela a esta visão, haverá também a provável contestação pública associada. Mas o mesmo acontecerá para os aterros que ainda serão necessários e que terão de surgir rapidamente, ou para qualquer outra solução que se queira implementar.

Desenganem-se os crédulos: o fenómeno NIMBY (not in my backyard) está bem presente. Ninguém é contra o tratamento e a valorização dos resíduos, a maior parte é contra o facto de isso poder acontecer perto das suas casas. Como dizia muitas vezes o Prof. Lobato Faria, o resíduo é um recurso fora do sítio. E é esta mensagem que tem de ganhar terreno, mas, para isso, não deveríamos aprovar uma nova estratégia para os resíduos que, à partida, sabe-se que não vai mudar o país à velocidade que seria necessário…

Agora, que o recente ministério do Ambiente e da Ação Climática juntou numa só secretaria de Estado o Ambiente e a Energia, acredito que este desafio possa ser novamente avaliado.

Artigo originalmente publicado na edição de Abril/Maio/Junho de 2022, aqui com as devidas adaptações.

As opiniões expressas são da responsabilidade dos autores e não reflectem necessariamente as ideias da revista Smart Cities.