Num mundo idealizado há vários séculos, a humanidade iria evoluir para um contexto de democracia participativa em que homens bons e livres saberiam escolher o maior bem fazendo prosperar a sociedade em todas as suas dimensões, mas, em particular, na dimensão humana e dos seus valores permanentes. Era um pensamento profundo que inspirou durante séculos novas formas de governação, apesar de, nos seus princípios anárquicos, nunca ter sido possível tornar real esse sonho: o de comunidades se autogovernarem pelas próprias ações, que seriam boas e em consonância com os valores absolutos e inalienáveis, suportando um governo de escolhidos e capazes a quem caberia a gestão diária do processo e distribuição e coordenação de tarefas e outras decisões equilibradas e consensuais.
Esta seria a cidade sem donos, sem proprietários (embora simultaneamente pública e privada). A cidade ideal e que traria prosperidade e paz para os seus habitantes.
Numa reportagem que fiz há três anos com a co-presidente da comissão organizadora do Habitat III (conferência que acontece a cada 20 anos e se foca no habitat e no desenvolvimento urbano sustentável), Maryse Gautier, ouviu-se falar de futuro e de envolvimento de todos os parceiros (públicos, privados, associativos, etc.) na melhoria das condições de vida das cidades do amanhã. Segundo Gautier, “2016 seria um enorme passo” e ainda mais quando, também noutros palcos (COP21), se colocava “muita ênfase nos governos locais”. Assim, 2016 era, para a responsável e para todos os participantes no evento, um momento chave. Seriamos bem-sucedidos no Habitat III se dessemos “voz aos governos locais” e levássemos “os governos nacionais a um comprometimento para dar uma oportunidade aos governos locais para se exprimirem e manifestarem as suas opiniões, ideias e projetos”, referia.
Na mesma reportagem, revelei a visão da head of housing and development board de Singapura, Cheong Koon Hean, que explicou o conceito que estava a implementar: uma smart town. “É um projeto que integra funções como um corpo humano”, explicou. Os edifícios são os músculos; os pulmões são os rios, os parques e zonas verdes; as estradas e vias de comunicação são as veias e artérias por onde tudo tem de fluir de forma harmoniosa; e, finalmente, uma camada intensa de sensores que corresponderá aos cinco sentidos do nosso cérebro, que recolherão e analisarão os dados “de forma a manter um conhecimento e uma aprendizagem permanente do ambiente que permita adaptar-se e evoluir”, explicou.
Uma smart town deve ser acolhedora, eficiente, sustentável e segura. E, para alcançar este objetivo, são necessários planeamento inteligente, ambiente inteligente, serviços públicos inteligentes, habitações inteligentes, etc. Uma vez mais, a necessidade de afinar todos os agentes e forças vivas que governam, planeiam, executam e vivem nas cidades pelo mesmo diapasão smart.
“A cidade nunca teve um só dono, mas tem vários proprietários. Públicos e privados. E tem os cidadãos, que vão começar a escolher os seus habitats mais adequados. Nessa escolha, o fator económico será decisivo, mas, em muitos outros casos, haverá outros fatores, como, por exemplo, a pegada ecológica dos edifícios, a circularidade dos materiais, o usufruto de tecnologias avançadas para a promoção do bem-estar, a automatização e domótica das habitações, etc.”
Esta recordação sobre a última conferência Habitat fazem agora ainda mais sentido no contexto de pandemia em que vivemos. Muitos cidadãos passaram a trabalhar remotamente, em suas casas, e essa nova realidade deve ser tida em conta nesta nova fase. Apesar de todas as inovações tecnológicas que as smart cities podem implementar, é cada vez mais evidente que os locais onde trabalhamos e vivemos devem mesmo ser a prioridade.
O acesso a habitação condigna e acessível era um dos grandes problemas antes da pandemia e, neste momento, é, talvez, o maior fator mundial para impedir a disseminação do vírus. A importância dos governos e autarquias desenvolverem processos e regulamentação para novas urbanizações e, sobretudo, incluir os privados no processo de edificação da cidade inteligente deve avançar já.
É nessa base que começam a nascer, de novo, grandes empreendimentos um pouco por todo o mundo. Verdadeiras cidades construídas de raiz pelos gigantes tecnológicos como a Google, Amazon, Microsoft, Toshiba, Cisco, Alibaba ou Tencent. Uma decisão das empresas que baseiam os seus modelos de negócio na tecnologia que desenvolvem e, sendo cada vez mais difícil integrar estas evoluções em cidades tradicionais (como ocorreu com o projeto da Google em Toronto), decide-se avançar para a criação de novas cidades suportadas na sustentabilidade, eficiência energética e tecnologias de informação que permitam aos cidadãos interagir com as diversas instituições de forma rápida e eficaz, ao mesmo tempo que se melhoram os sectores de saúde, segurança ou educação.
As smart cities devem focar-se ainda no planeamento urbano, na distribuição de infraestruturas, fornecimento de energia, acessibilidade e mobilidade, preparando o terreno para novas alternativas de transporte e encorajando a utilização de veículos elétricos. A Toyota, por exemplo, está a construir a Woven City na base do Monte Fuji. Uma cidade que será uma “incubadora tecnológica”, segundo o CEO da companhia japonesa.
Em 2018, no evento ZOOM SMART CITIES, houve quem ficasse surpreendido com a presença da secretária de Estado da Habitação como representante governamental. Há ainda hoje quem não perceba que as smart cities não são apenas dados e sensores. É estratégia e regulamentação para construir uma cidade que integre todos e que permita um desenvolvimento sustentável da sociedade.
A cidade nunca teve um só dono, mas tem vários proprietários. Públicos e privados. E tem os cidadãos, que vão começar a escolher os seus habitats mais adequados. Nessa escolha, o fator económico será decisivo, mas, em muitos outros casos, haverá outros fatores, como, por exemplo, a pegada ecológica dos edifícios, a circularidade dos materiais, o usufruto de tecnologias avançadas para a promoção do bem-estar, a automatização e domótica das habitações, etc.
O habitat do futuro não é público. Tem de surgir de um modelo de negócio reformulado e adaptado aos novos tempos, com regras definidas e que permita equalizar a oferta e procura em todo o território. Este é o desafio para o momento atual: a construção de uma cidade com todos e para todos.
As opiniões expressas são da responsabilidade dos autores e não reflectem necessariamente as ideias da revista Smart Cities.