No jogo da nova Ordem Mundial, a tecnologia é cada vez mais uma arma. Poderão as cidades – e os seus cidadãos – escapar à influência dos impérios tecnológicos?
Quando, em 2016, os Estados Unidos da América (EUA), liderados, então, por Donald Trump, lançaram uma ofensiva comercial contra a China, o mundo tremeu. Escrevi, na altura, que a medida, travestida de “Segurança Nacional”, era uma fanfarronice de Trump, que, para o bem e para o mal, ninguém levou muito a sério na Europa. Contudo, os EUA praticamente acabaram com uma das mais proeminentes empresas chinesas da altura, a ZTE, com uma implantação muito forte em solo americano e abalaram a Huawei.
Primeiro, com acusações de espionagem eletrónica e, depois, com sanções e processos judiciais/criminais. O mais mediático, contra Meng Wanzhou, filha do CEO da Huawei, além de ser CFO da companhia. Foi presa em 2018 no Canadá e aguardou extradição para os EUA, acusada de violar as sanções impostas ao Irão, através de subsidiárias. Como retaliação, a China deteve dois cidadãos canadianos, depois de investigações relativas a “atividades que colocam em risco a segurança nacional da China”. Meng foi, entretanto, libertada e regressou à China. Segundo, com nova legislação e imposição de sanções que levaram, inclusive, a Huawei a criar o seu próprio Sistema Operativo.
Estas movimentações ocorriam em simultâneo com os grandes anúncios de parcerias entre a gigante tecnológica chinesa e cidades em toda a Europa. Capitais e metrópoles, umas maiores, outras mais pequenas, que foram seduzidas pelo soft power da China através de empregos, tecnologias, capital de risco e relações económicas entre Europa e Ásia. Assistimos todos a essa “evolução”. A Huawei já vinha sendo uma das maiores patrocinadoras de eventos na Europa (e no mundo). Os EUA, liderados por Trump, perceberam que a team America estava a enfraquecer, após anos de supremacia (da Microsoft, IBM e Cisco, por exemplo).
Foi um tempo de discórdia. A pressão dos americanos aos seus parceiros europeus, nomeadamente através da NATO, que se tornou no principal palco de discussão de segurança eletrónica e tecnológica ao mais alto nível, acentuou-se. Na resposta ao soft power chinês, entrava à bruta na loja de porcelana o elefante Trump.
Se, com o caso da ZTE, devido à influência ocidental no seu modelo de negócio, essa ação levou praticamente ao desmantelamento da empresa e respetiva falência, o mesmo não ocorreu com a Huawei. O Ocidente demorou a perceber que a marca chinesa já não era apenas uma fabricante de telemóveis. A sua maior especialização durante a última década aconteceu em áreas que impulsionaram a China para um patamar superior ao americano no 5G, na Inteligência Artificial (IA), no Cloud Computing ou no Machine Learning. A Huawei vinha a entrar aos poucos na Europa através de contratos públicos de serviços 5G, cloud e smart cities. Trump parecia derrotado, mas obrigou alguns aliados a repensarem as suas estratégias e, assim, verificamos que algumas iniciativas com a Huawei foram canceladas ou suspensas. Outras foram reprogramadas com exigência de garantias de código neutral e aberto no sistema chinês.
“Aparentemente, todos prometem mais liberdade e mais privacidade, mas o que se vê em todos os blocos imperiais em disputa é uma conquista do digital, e há quem duvide de que [esta] seja efetivamente para o nosso bem.”
Com o surgimento da pandemia, curiosamente, com epicentro na cidade de Wuhan – que apresentou, em 2012, nos primórdios da Smart City Expo Barcelona, o seu roadmap para se tornar uma smart city em 2020 –, deu-se um retrocesso no mundo globalizado com a suspensão de viagens, eventos, reuniões presenciais e outro tipo de interações entre stakeholders, nomeadamente entre cidades, eleitos e empresas.
O ano 2020 é também aquele em que entra Joe Biden na Casa Branca, derrotando Donald Trump, e, ao contrário do que muitos analistas previram, o ataque cerrado à China acentuou-se e tornou-se ainda mais agressivo noutros tabuleiros da geopolítica, e não apenas no comércio. A pandemia trouxe uma série de novos avanços tecnológicos, nomeadamente no setor da IA. A crescente (e, em muitos casos, abusiva) utilização de dados privados e certificados digitais catapultou o recrudescimento de enormes unidades centralizadas de dados digitais – na China, suportados em Tecent e Huawei; no Ocidente, a maioria em sistemas Microsoft, IBM, CISCO e outros.
É também o tempo de voltar a falar em ética nos algoritmos de IA e na utilização de dados pessoais e do foro privado. Um aparente contrassenso quando, em diversos países da UE, o Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD) praticamente foi abolido/suspenso durante a pandemia, em virtude dos autoproclamados “Estados de Emergência”. Numa aparente contradição, países que suspenderam direitos e liberdades por causa da pandemia, iniciam processos de ‘digitalização’ dos seus cidadãos, promovendo códigos de conduta e ética, e promovendo plataformas de estudo e desenvolvimento de regras de privacidade e protocolos de segurança.
Do lado chinês, acontece exatamente o mesmo, com Xi Jinping a anunciar novas leis e regulamentos exigentes com penalizações pesadas para as empresas que ‘abusem’ dos dados pessoais dos cidadãos.
No meio de toda esta parafernália de processos e de ações governamentais e corporativas, surgem outras plataformas alegadamente ‘virtuais’ como o Metaverso do Facebook, que, além de promover a criação de um Digital ID, também pretendeu lançar uma nova criptomoeda. De resto, diretamente interligada às intenções de digitalização da identidade individual, surge também uma criptomoeda e uma nova plataforma na Web3.
Independentemente da candura de alguns projetos de smart cities, todos estes novos processos e políticas em curso levantam preocupações e estão também na origem de algumas teorias da conspiração, envolvendo, nomeadamente, o Fórum Económico Mundial e a sua apologia e pressão global para um Great Reset. Pelos vistos, foi preciso iniciar-se mais uma guerra para se começar a clarificar o que era duvidoso no tempo de Trump e na última década de crescimento da China, enquanto superpotência global e económica.
Para já, é a Rússia que está a movimentar-se no tabuleiro geopolítico, criando, por um lado, disrupções, e, por outro, uniões que os americanos vinham a tentar garantir e pressionar há anos. A NATO, por exemplo, acaba reforçada e as relações transatlânticas retomam força e vigor com um novo acordo anunciado recentemente entre UE e EUA para uma nova Framework Transatlântica de Privacidade de Dados.
Aparentemente, todos prometem mais liberdade e mais privacidade, mas o que se vê em todos os blocos imperiais em disputa é uma conquista do digital, e há quem duvide de que [esta] seja efetivamente para o nosso bem. Os próximos meses serão decisivos para verificar a bondade destes processos em curso, contudo, o que podemos observar já é que a Guerra de Impérios está de regresso. E, com a guerra, chega sempre a vitória das elites e a derrota e o sofrimento do povo.
As opiniões expressas são da responsabilidade dos autores e não reflectem necessariamente as ideias da revista Smart Cities.