Nos últimos anos, assistiu-se ao progresso vertiginoso da tecnologia em praticamente todas as áreas da vida. A cidadania não foi excepção e as pessoas têm, hoje, à disposição inúmeras ferramentas digitais para participar activamente. Rui Silva, business developer da consultora e analista tecnológica Gartner em Portugal, analisa o caminho que tem sido feito e aponta os benefícios e riscos que a inovação tecnológica trouxe ao cidadão.
Qual tem sido o papel da tecnologia enquanto ferramenta para o cidadão?
É inegável o contributo da tecnologia para uma melhoria da cidadania, não só do ponto de vista da qualidade de vida que aporta, mas também contribuindo de forma inequívoca para a sua democratização. Desde muito cedo ficou patente o potencial da Internet e das então “novas” tecnologias em geral na capacitação dos indivíduos enquanto elementos participativos na gestão governativa e como ferramenta de combate à exclusão. Os modelos mais óbvios de governo digital, voto electrónico e portais colaborativos têm sido implementados com relativo sucesso, sendo que, nalguns casos, os benefícios antecipados não se concretizaram, muito devido a uma participação inferior à esperada (Gartner, Government Portals Are Evolving to Enable Digital Government). Em Portugal, este movimento tem sido liderado pelo Poder Local, a maioria dos municípios disponibiliza já uma qualquer forma de Orçamento Participativo e têm sido feito investimentos em ferramentas de comunicação com o munícipe, que vão desde a disponibilização de uma agenda de eventos até à participação de situações que carecem intervenção camarária (FixCascais em Cascais, FixMyStreet no Reino Unido, Sou Cidadão em Abrantes, Alerta Bragança em Bragança são alguns exemplos). No contexto das Cidades Inteligentes, a Cidadania Inteligente (Smart Public Services) é, de acordo com a Gartner, um dos principais vectores de foco na estratégia operacional governativa. Nas palavras de Bettina Tratz-Ryan, Gartner research vice president, “cidadãos digitais são a chave do sucesso das cidades inteligentes”.
Qual a posição das tecnológicas face a estes movimentos? Estão atentas e a dar resposta?
As empresas tecnológicas estão muito atentas e focadas nestes movimentos. E o interesse é transversal à dimensão ou indústria, existindo desde start-ups, blue chips tecnológicas, telcos ou utilities, que tentam dar resposta a este novo mercado de cidadania, em áreas como redes sociais, IoT, wearables, acessibilidade, comunicação, mobilidade, sustentabilidade energética/ambiental, saúde, etc. Num passado não muito distante, era frequente as empresas publicarem relatórios de sustentabilidade e impacto social com o principal objectivo de melhorar a percepção da própria marca, mas o que ontem era uma estratégia de marketing passou, entretanto, a estratégia comercial numa área em grande crescimento. A Gartner realiza um estudo anual das empresas mais promissoras e disruptivas na sua área de actuação e das 456 analisadas, em 2016, a grande maioria está, de algum modo, focada na melhoria de vida das pessoas, como poderá ser comprovado nos relatórios Cool Vendors in Government, 2015 e Cool Vendors in Smart City Applications and Solutions, 2016.
Há, portanto, interesse, enquanto negócio?
Há muito interesse, pois as oportunidades na área da Cidadania são imensas, não só devido ao crescimento da literacia digital, mas também pelos desafios populacionais. Em 2050, mais de 75% da população do mundo vai residir em cidades. A superlotação e a poluição irão criar novos desafios e oportunidades dentro das cidades. Haverá novos desafios na gestão dos transportes, infra-estruturas e serviços. O aumento de pessoas idosas irá causar uma pressão sem precedentes sobre os orçamentos de Saúde. O alinhamento dos serviços de apoio (tais como habitação, electricidade, educação, saúde e bem-estar económico) às necessidades individuais dos cidadãos depende da estratégia geral de uma cidade, que se pode tornar extremamente complexa e requerer por isso a participação e validação dos seus cidadãos. O mercado existe e está em crescimento. A título de exemplo, veja-se a previsão da Gartner da existência de 1,6 mil milhões de “coisas” ligadas nas Cidades Inteligentes. Numa das conclusões do relatório da Gartner Market Trends: Digital Government Offerings That Engage Citizens and Build Long-Term Sustainability Will Differentiate Providers, pode ler-se que a entrega de serviços tecnológicos que respondam às expectativas dos cidadãos contribuirá para a diferenciação competitiva e criação de novas oportunidades.
Como vê a tecnologia a evoluir de forma a dar resposta a um movimento crescente de envolvimento e empowerment das pessoas?
A tecnologia tem a sua evolução natural, guiada por diversas forças, entre elas o bem-estar, a realização pessoal e a melhoria da qualidade de vida. Mas, na minha opinião, o movimento interessante tem sido o aproveitamento dessa mesma tecnologia para um maior foco no envolvimento dos cidadãos, contribuindo para a realização de expectativas das pessoas enquanto parte de uma comunidade. Atente-se no top 10 de tendências tecnológicas para o Governo em 2016, de acordo com a Gartner:
- 1. Digital Workplace
- 2. Multichannel Citizen Engagement
- 3. Open Any Data
- 4. Citizen e-ID
- 5. Analytics Everywhere
- 6. Smart Machines
- 7. Internet of Things
- 8. Digital Government Platforms
- 9. Software-Defined Architecture
- 10. Risk-Based Security
De notar que algumas destas tendências permitem a geração de eficiências internas, mas muitas delas permitem responder aos desafios da Cidadania Digital e obter uma melhor qualidade governativa. E se é certo que o envolvimento activo da comunidade representa uma área de crescimento de aplicação de tecnologia e Governo Digital, é um facto que o potencial do crowdsourcing está ainda subaproveitado.
Pode apontar bons exemplos?
Uma empresa que está a envolver cidadãos com sucesso é a Waze. A Waze cria um mapa em tempo real dos padrões de tráfego, usando dados dos seus participantes em vez de dados alimentados a partir de sensores. Este método de crowdsourcing é tão bem sucedido que o Rio de Janeiro já formou uma parceria com Waze. Outros exemplos de sucesso são o Air Quality Egg em Amesterdão, onde os cidadão reportam a qualidade do ar, e o FixMystreet no Reino Unido, que permite aos utilizadores reportar problemas locais, tais como avarias em postes de iluminação ou buracos no pavimento. Estamos a assistir a uma fase de criação de experiências inovadoras, por parte das entidades governativas e fornecedores tecnológicos, que partem de projectos simples, autodidactas, de crescimento viral ou sustentado em gamificação, para obter o interesse e envolvimento dos cidadãos, respondendo às suas expectativas e necessidades.
Que elementos são necessários para que as tecnologias consigam efectivamente cumprir esse papel?
O sucesso das tecnologias (ou o aproveitamento destas) enquanto catalisador da participação e empowerment dos cidadãos está intimamente ligado aos resultados que se consigam devolver à comunidade, à realização pessoal e à percepção da qualidade de vida. A aplicação de tecnologia deve, por isso, seguir um modelo de governação bem definido e ter por base uma estratégia que elenque, de forma clara e inequívoca (e preferencialmente disponível publicamente, como no caso de Montréal), os objectivos e benefícios para os cidadãos que se pretendem obter. Não menos importante para o sucesso está a simplicidade, a usabilidade e a democratização ao acesso da tecnologia. A utilização de aplicações para smartphones é uma das melhores formas de envolvimento de cidadãos, como por exemplo a iniciativa “Don’t Flush Me” em Nova Iorque, que utiliza sensores para detectar sobrecargas do sistema de esgotos e avisa os cidadãos quando é seguro descarregar o autoclismo. Sistemas de incentivos à utilização (tal como a gamificação) têm dado boas provas na sustentação do envolvimento e participação das pessoas. Por fim, há o caminho natural da tecnologia, que passa por um período de grande expectativa na entrega de resultados, caindo de seguida para uma fase de desapontamento até finalmente atingir o patamar de produtividade.
A utilização das tecnologias pode trazer, de alguma forma, riscos à plena participação do cidadão nas decisões da sua cidade?
Apesar de considerar que na balança das vantagens e riscos na utilização de tecnologia, o prato pende de forma expressiva para o lado dos benefícios, é um facto inegável que existem alguns perigos inerentes. Desde logo e em primeiro lugar, as questões de privacidade. Uma cidade será tanto mais inteligente quanto maior informação conseguir reunir, analisar e disponibilizar aos seus cidadãos e aos serviços que os servem. No contexto da Cidade Inteligente, a segurança de dados e a privacidade desempenham um papel fulcral. Em muitos casos, as operações municipais e centros de comando são propriedade e operados pelo governo. Se os cidadãos sentirem que uma cidade inteligente interligada é uma invasão da sua privacidade, então a iniciativa irá falhar. Enquanto as cidades se tornam mais ligadas digitalmente e trocam dados complexos entre agências, as redes do governo serão mais susceptíveis a ataques cibernéticos. No campo da IoT, e a título de exemplo, o documento da Gartner How the Internet of Things Will Impact Cybersecurity debruça-se sobre o impacto na segurança e privacidade do crescente número de “coisas” interligadas. Outro risco prende-se com a exclusão digital. Deverão ser tomadas medidas no sentido de fomentar a participação universal, independentemente do estrato social, localização geográfica ou literacia digital. Deve ser privilegiada a aplicação de tecnologia simples, de fácil compreensão e disponível em dispositivos baratos. E, por fim, a utilização de tecnologia sem uma estratégia bem definida e sem o alinhamento com as expectativas dos cidadãos pode promover a auto-exclusão de certos grupos sociais devido à falta de resultados tangíveis.
Na sua opinião, que abordagem funciona melhor: top-down ou bottom-up?
Não existe propriamente uma abordagem certa ou errada, dependendo do contexto, da conjuntura política/social/económica e dos objectivos que se pretendem atingir. Tem-se, no entanto, assistida a uma maior predominância da abordagem bottom-up, com a integração dos movimentos cívicos e o envolvimento generalizado dos cidadãos no governo digital. A aplicação da tecnologia per se não constitui uma fórmula mágica para resolver os problemas típicos das cidades cada vez mais superpovoadas, tais como saúde pública, mobilidade urbana, sustentabilidade, empregabilidade, segurança, etc. A recolha de informação através dos cidadãos permite um melhor conhecimento desses mesmos problemas. A participação das pessoas na estratégia de governo digital permite o alinhamento dos objectivos com as expectativas da comunidade. Conhecidos os problemas, construída a estratégia e definidos os objectivos, pode-se por fim proceder à escolha da tecnologia adequada, de acordo com as tendências e evolução da mesma, aplicabilidade, custos de implementação e riscos envolvidos, áreas onde a Gartner pode ajudar (discussão com analistas, hype-cycles, market trends, cool vendors) para maximizar os benefícios.