No caminho para ser uma “smart city”, cidades por todo o mundo estão a debater-se entre a imposição das forças de evolução globais e aquilo que têm de mais seu, a identidade. Depois de uma curta estada em Portugal (e não só), o especialista em urbanismo norte-americano Chuck Wolfe reflecte sobre a sua experiência e sobre a tentativa das cidades para preservar o seu contexto, ao mesmo tempo que vão reformulando o seu posicionamento no panorama global.
Desde Setembro, tenho visitado e trabalhado em 18 cidades na Europa, Austrália e Estados Unidos da América, ouvindo com atenção as mensagens de harmonia e de discórdia comuns.
Tenho estado à espera de que as Sirenes modernas de Odisseia me desviem com uma melodia divina qualquer de urbanismo ou características comuns para conseguir perceber tudo e unir, por exemplo, Brisbane a Cleveland ou a Lisboa ou a Cairns. Em vez disso, vejo cidades unidas em busca de contexto e tentando conciliar a identidade do mundo antigo com as forças de evolução globais.
Com cada visita, mentoria, discurso sobre um livro ou aula expositiva, tem sido desconcertante ver que praticamente todas as cidades têm dificuldades em integrar os desafios do globalismo com a sua história vernácula, ou mesmo exclusiva. A lista de “o que se quer” é interminável: centros tecnológicos, metro de superfície, ciclovias, habitação sofisticada, centros de comando e dados de “cidade inteligente”, variações na altura e escala. E, para além disso, querem-se ainda empregos, habitação, incubadoras, dados, estilo de vida, turismo e mais!
A busca pelo contexto é compreensível, nesta subida aparentemente uniforme em direcção à Luz Verde do Grande Gatsby. A inegável reacção humana de nostalgia é um sintoma dos habitantes citadinos em toda a parte, quer nos mundos urbanos novos, quer nos antigos ou arruinados pela guerra.
O lado negativo do urbanismo da classe criativa era-me muito familiar, em particular o seu extremo mais contemporâneo na Seattle pós-Amazon. Sendo a minha terra natal, tenho observado atentamente Seattle, incluindo a advertência “cuidado com o que deseja”, para os candidatos que procuram o cobiçado prémio “HQ2” (a segunda sede) da Amazon.
“Acha que pode moldar a Amazon?”, perguntou Timothy Egan no New York Times de 20 de Outubro. “Nem pensar. Ela irá moldá-lo a si. Muito antes de a Amazon afectar os livros, música, televisão, mobiliário, tudo, [esta] afectou Seattle”.
Tente aplicar esta história a todo o mundo, onde muitas vezes, uma angústia aparente pela preservação e sucesso da economia lutam com identidades de lugares sublimes que pré-datam a identidade de Seattle por centenas, ou mesmo milhares, de anos.
Para outras cidades que procuram orgulho e prosperidade, as suas posições clássicas na História agora parecem reformuladas de forma estranha, mais rebaixadas a guias turísticos do que o que tinha memória e afastadas por questões gerais de outro lugar – ou, talvez, de todos os lugares. O Império que estava, em tempos localizado, na Lisboa marítima, a cidade do Rust Belt [zona industrial dos EUA] americano, as raízes da colónia penal de Sydney… Todos surgem mais como artefactos da História, incorporando-se com as necessidades omnipresentes de empregos, capital e os motores de dados que alimentam a economia global e tornam a palavra “peculiaridade” menos relevante.
Em Portugal, os jornalistas bombardearam-me com questões, com vozes intensas, tentando consolidar o indefinível. Durante uma entrevista, após a apresentação do meu livro Seeing the Better City, respondi a “interrogatórios” aleatórios e impacientes que pareciam não ter fim. “O que é uma cidade melhor? O que é uma boa cidade? Quando é uma boa cidade uma cidade inteligente? Pode uma cidade inteligente ser uma boa cidade sem tecnologia? Pode uma cidade inteligente não ter tecnologia?”.
Noutra entrevista, uma jornalista de uma estação de televisão local perguntou-me se a sua cidade estava “preparada para ser uma cidade inteligente.” Entre castelos e o que é lendário, a inocência parecia perdida.
Quando, em Setembro, parti de Seattle, a maior cidade em crescimento rápido nos Estados Unidos da América enfrentava as consequências, agora bem documentadas, de se tornar uma campeã da classe criativa dos letrados: um crescimento dramático de sem-abrigos e um aumento significativo dos valores patrimoniais. Quando conto esta história noutros lugares, a resposta varia entre a indiferença e o espanto, porque as preocupações, desde a mera sobrevivência à adaptação bem-sucedida das tendências globais, referem-se a histórias sobre o ritmo da evolução ou a perda de alma da minha cidade natal.
Na minha busca pela harmonia – e discórdia –, por vezes, sou sustentado por abordagens que combinam tendências comuns com um passado vernáculo. A participação do cidadão está a evoluir por toda a parte, através de métodos presenciais convencionais, rede sociais ou abordagens novas à co-criação. Seguem-se dois exemplos:
Primeiro, encontrei-me com membros do CoCreate Cremorne, em Melbourne, na Austrália, um grupo de pequenas empresas situado no bairro que defende a preservação do carácter próprio de uma cidade bem conectada, programada para a adaptação às empresas de tecnologia. Os voluntários bem organizados construíram um esforço de activismo sobre o que é que os membros do bairro querem fazer acontecer: “ruas como zonas, adicionar vegetação, arte de qualidade, misturar os habitantes com negócios e áreas exteriores comuns para trabalhar/encontrar/brincar, com Wi-Fi gratuito”.
Depois, há duas semanas em Guarda, Portugal, conheci líderes municipais que têm esperança em novos postos de trabalho para compensar o êxodo para as cidades maiores, como Lisboa. Juntamente com representantes de empresas tecnológicas, participei numa conferência sobre “cidade inteligente” promovida pelo município – na assistência estavam habitantes, estudantes e representantes eleitos da cidade e equipa – e debati os métodos de exploração urbana que constam do meu livro e que têm por base a percepção óptica humana.
Em resposta aos meus colegas de painel, que, em alternativa, divulgaram aplicações de monitorização de cidade inteligente e ferramentas de recolha de dados, um funcionário municipal animado ripostou: “Não se pode esquecer da nossa História, geografia e a cultura a favor de abordagens intencionadas para todos os lugares”. De repente e, talvez, ironicamente, como um americano de Seattle, peguei no microfone de forma impulsiva antes que os outros pudessem responder. “Tem razão”, disse, e tentei explicar, da melhor forma possível, a função de contexto e a fusão entre o novo e o antigo num mundo em rápida evolução.