Por:
Jorge Máximo, diretor central no sector bancário e ex-vereador da CM Lisboa (2013-17), e Januário Rodrigues, investigador Doutorando em Sistemas de Energia Sustentável.
Todos acreditamos que o que se passou vai voltar a acontecer com consequências, porventura, piores. Em jeito de balanço, o governo estimou que as cheias terão causado prejuízos de 293 milhões de euros, nomeadamente em equipamentos e infraestruturas municipais e na rede rodoviária, e que seriam concedidos 185 milhões de euros em apoios públicos para mitigar o esforço de recuperação dos danos. Acrescem as despesas diretas não reembolsáveis aos municípios e particulares, e os milhões de euros em indemnizações, que serão exercidas às seguradoras pelos empresários e cidadãos cobertos por apólices de seguros.
Poderia ter sido diferente? Sim, podia. É verdade que não conseguimos evitar intempéries, mas podemos e devemos assegurar mais planeamento, proatividade e informação integrada e em tempo real para permitir antecipar soluções que minimizem danos e acelerem respostas. Stop reacting, start planning!
Recentemente, a Covid-19 levantou questões fundamentais sobre a verdadeira capacidade de resposta a emergências em cidades de grande densidade populacional, onde a gestão de ocorrências tem maior complexidade, mais dependências e importância. Era esperado que as autoanunciadas smart cities estivessem mais bem preparadas do ponto de vista tecnológico para monitorizar e responder à evolução da pandemia. Ao invés, assistimos à introdução de soluções ad-hoc de natureza reativa e experimental, como foi o surgimento intempestivo de apps milagrosas um pouco por todo o mundo para nos informar do risco de contágio a que estávamos expostos e que se revelaram um enorme insucesso em termos de credibilidade, utilidade e adesão. Foi também evidente a descoordenação entre diversos organismos públicos, dos sistemas de saúde às autoridades territoriais, nomeadamente na transmissão tempestiva da informação crítica para a tomada de decisão que assegurasse contramedidas eficientes, impactantes e monitorizáveis por territórios. Em pânico, despejou-se dinheiro na mobilização de profissionais, na aquisição de equipamentos, na abertura de centros de apoio médico, muitos dos quais se revelaram desnecessários, redundantes ou até inoperacionais.
Muitos sentimos que as soluções de inteligência urbana são ainda insuficientes para dar respostas eficientes a emergências de ocorrência regular, seja na antecipação da emergência, seja na própria coordenação da resposta das autoridades e da Proteção Civil que atuam nos territórios; sentimo-nos preocupados e impreparados, duvidando da capacidade das autoridades para proteger a maioria da população, por exemplo, no caso de um grande cataclismo natural, como um grande terramoto ou uma nova pandemia que nos volte a atingir (como no passado).
Não queremos, neste artigo, desempenhar o papel de arautos da desgraça, mas parece-nos que uma visão estratégica e integrada de resposta a emergências deve germinar dos efeitos extremos já sentidos devido às alterações climáticas. É tempo de pôr ao serviço da população novos sistemas de emergência e resposta inteligentes, capazes de ajudarem as autoridades a prepararem as pessoas para intempéries ou cataclismos, que, embora incertos e inesperados, devem ter uma resposta integrada, colaborante e inteligente que minimize os prejuízos materiais e humanos.
Devido aos ciclos políticos e eleitorais, a governança das cidades é, muitas vezes, orientada por reações conjunturais de efeito rápido, cuja visibilidade mediática prevalece sobre medidas estruturais e sobre soluções inovadoras cujos resultados são incertos, tardam a ser atingidos e são pouco conhecidos e eleitoralmente desvalorizados pelos cidadãos. Acresce também o facto de mudanças eleitorais serem normalmente fatores de perturbação ou até de reversão de processos disruptivos já iniciados.
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Em termos orgânicos, o facto de os cargos executivos serem normalmente distribuídos em pelouros por natureza pode ser outro problema. Muitos governantes tendem a executar o seu plano de atividades de uma forma excessivamente individualizada e, portanto, com uma visão e coordenação coletiva pouco integrada. Por sua vez, a coordenação na dimensão plurimunicipal é ainda mais difícil. Sem uma liderança forte ao mais alto nível que o contrarie, a gestão integrada de sistemas de informação urbana tornar-se-á numa prioridade menor dos pelouros executivos. Na ausência de estratégias coordenadas assentes na transformação e integração digital, privilegiam-se normalmente soluções à medida dos requisitos individuais de cada pelouro e de cada autarquia. Neste contexto, os sistemas de informação urbanos tendem a tornar-se silos isolados e desenvolvidos de forma vertical e departamental cuja dimensão os torna excessivamente complexos e caros, redundantes e desintegrados, difíceis de manter e muito dependentes de fornecedores externos. De igual modo, perde-se todo o potencial de aproveitamento de uma enorme quantidade de dados disponíveis, cuja visão e cujo tratamento integrado permitiriam a criação de inteligência que suportasse a boa decisão urbana aos níveis técnico e político.
Para dar corpo à reflexão anterior, tomemos como exemplo Lisboa. Foi pensado em 2015 um sistema integrado de sistemas de informação urbana que servisse o propósito de uma mudança cultural e inteligente, na forma de gestão de respostas a emergências. Era suportado em cinco pilares fundamentais:
- Liderança estratégica assumida ao mais alto nível com comunicação clara, transparente e transversal, quer interna quer externa;
- Política municipal de dados abertos que facilitasse protocolos de integração com os sistemas de outros stakeholders, nucleares para a gestão da cidade (públicos e privados);
- Plataforma de integração e gestão central de inteligência urbana capaz de recolher dados, orquestrar e interagir com todos os principais sistemas internos, e escalar a capacidade e a dimensão da rede de sensores da cidade;
- Estrutura central de planeamento e de gestão da inteligência urbana focada na monitorização, no tratamento e na conversão dos dados da cidade em conhecimento que permitisse otimizar e suportar a decisão urbana;
- Comando integrado em caso de emergência ou perturbação da normalidade, baseado numa visão holística da resposta e da capacidade de decisão central e soberana sobre todos os sistemas integrados, incluindo com a utilização de algoritmos de decisão automática, inteligência artificial e protocolos de alteração hierárquica.
A implementação daquela ambição ficou concluída em 2017, e, após novas eleições e mudança de executivo, voltou a sofrer atrasos e diminuição de importância, muito por culpa da inversão de prioridades do novo executivo.
Outro fator fundamental para concretizar esta mudança cultural necessária é que todos os investimentos sejam pensados de forma multidimensional, permitindo que qualquer inovação possa ser rapidamente capturada e também beneficiada pelos parceiros institucionais, permitindo, dessa forma, o desenvolvimento de sinergias para a criação de novas oportunidades de evolução e respostas conjuntas. Foi anunciado, por exemplo, após as enxurradas de dezembro, que o IPMA acaba de fazer um elevado investimento em tecnologia de monitorização e previsão climática que permite identificar com maior grau de certeza as intempéries que estão a chegar ao nosso território. Pergunta: quantos dos atuais sistemas municipais e de proteção civil estão preparados para integrar essa informação e beneficiar dela? Outro caso refere-se à evolução dos sistemas de alerta e comunicação de emergência aos cidadãos. Quantos estão preparados para convergir e utilizar um protocolo comum, reduzindo custos e aumentando o alcance da mensagem?
Acresce ainda que muitos destes sistemas devem ter redundâncias de vários níveis para assegurar que se mantêm operacionais, mesmo que parcialmente, no caso de serem impactados pelos cataclismos que possam destruir as infraestruturas que suportam o seu funcionamento. A integração de sistemas e a coordenação e cooperação nos investimentos tecnológicos são opções que salvaguardam respostas e podem salvar vidas.
Muitos questionarão sobre os custos desta transformação. Se considerarmos as poupanças que poderão advir no futuro, quer em menores despesas com reparação de danos e o apoio a lesados, quer na maior eficiência na gestão urbana com menores custos de infraestrutura informática, o mais certo é que sejam investimentos facilmente recuperáveis. Acresce que estes investimentos podem e devem ser partilhados em parcerias com outras entidades que deles também irão beneficiar de forma direta, tais como seguradoras e principais operadores de serviços das cidades.
O momento é agora. A transformação digital das cidades não é apenas uma das prioridades do Plano de Recuperação e Resiliência; é, acima de tudo, uma orientação política da Agenda Europeia e das Nações Unidas para o crescimento e desenvolvimento sustentável, pelo que negligenciar esta prioridade e esta oportunidade é um sinal claro de incapacidade e inércia com consequências prejudiciais aos interesses de médio e longo prazo das comunidades e dos territórios.
Lembramos o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 11 das Nações Unidas, subscrito por Portugal, que recomenda que se aumente substancialmente o número de cidades que adotam e implementam “políticas e planos integrados para a inclusão, a eficiência dos recursos, a mitigação e adaptação às mudanças climáticas e a resiliência a desastres ambientais”.
Claro que é fácil apontar este caminho, mas implementá-lo é bastante mais difícil. Por um lado, décadas de erros urbanísticos e de investimentos tecnológicos desarticulados nas cidades não se remendam num só mandato eleitoral. Por outro, sem uma visão estratégica concertada e políticas públicas nacionais que advoguem, facilitem e apoiem a referida mudança, facilitará que muitos, menos conscientes, tenderão a atrasar as suas iniciativas.
Conceitos como inteligência urbana e inteligência territorial devem começar a ser enraizados como indicadores de avaliação de desenvolvimento económico, em comparação e complemento a outros mais tradicionais como o PIB per capita. Todos sabemos que se tivermos de passar duas horas no trânsito diariamente, o PIB deverá aumentar devido ao consumo de viaturas e combustível, mas a nossa qualidade de vida é mais baixa do que se caminhássemos a pé para o local de trabalho, próximo da residência. Faltam índices que avaliem a evolução dos níveis de conforto e confiança urbana, de qualidade de vida e participação cívica, e de concretização dos ODS.
Saber reconhecer e aprender com os erros do passado e agir de forma proactiva e concertada é acautelar o futuro e é smart.
Imagem de destaque: © Shutterstock
As opiniões expressas são da responsabilidade dos autores e não reflectem necessariamente as ideias da revista Smart Cities.
Este artigo foi originalmente publicado na edição nº 38 da Smart Cities – Janeiro/Fevereiro/Março 2023, aqui com as devidas adaptações.