Professor universitário e autor de The Rise of the Creative Class (2002) e The New Urban Crisis (2017), Richard Florida é uma das vozes mundiais mais sonantes do pensamento urbano actual. Depois de observar que “as mesmas forças que impulsionaram o crescimento das nossas cidades e da economia em geral também geraram as divisões que nos separam e as contradições que nos impedem de avançar”, Florida defende que a pandemia veio expor ainda mais os sintomas da “nova crise urbana”. Convicto de que “as cidades vão sobreviver”, para o norte-americano, esta é “uma oportunidade única nas nossas vidas” para fomentar a inclusão, equidade, justiça e resiliência nas cidades.

A pandemia de Covid-19 está a expor muitas fragilidades nas cidades. Era expectável que isso acontecesse?

Sim, a pandemia pôs, efectivamente, a descoberto vulnerabilidades e desigualdades nas cidades – a Nova Crise Urbana, tal como a descrevi no meu livro de 2017 [The New Urban Crisis: How Our Cities Are Increasing Inequality, Deepening Segregation, and Failing the Middle Class-and What We Can Do About It]. Se a velha crise urbana estava relacionada com o fracasso e disfunção das cidades, a nova crise é a do sucesso, enraizada num paradoxo do território e dos desafios do capitalismo tardio. Enquanto muitos prosperam nas nossas cidades, outros vão ficando cada vez mais para trás. Como seria de esperar, a exposição e ruptura das divisões e desigualdades nas nossas cidades foram aceleradas não só pela Covid-19, mas também pelos protestos cívicos e as crises que daí vieram.

É possível contrariar isso?

Temos uma oportunidade única nas nossas vidas para lidar com a nova crise urbana e reinventar e reconstruir cidades mais inclusivas, equitativas, justas e resilientes. Mas isto vai exigir uma acção intencional e estratégica que tem de começar a ser desenvolvida e posta em marcha agora.

Desenvolveu o conceito de cidades superstar – as cidades mundiais mais prósperas e vibrantes. Algumas delas, como Nova Iorque, foram gravemente afectadas pela crise pandémica. A elevada densidade populacional foi uma das razões, mas não só. Que outros motivos contribuíram para isso?

Há muitos factores que contribuíram para o facto de as cidades serem mais ou menos vulneráveis ao vírus. A densidade é apenas um factor, sendo que, no que se refere à densidade, é importante considerar, por exemplo, os níveis de rendimento dessas comunidades densas. A idade desempenhou, obviamente, um papel crucial. A classe social e ocupações profissionais também. Por exemplo, os trabalhadores da classe criativa puderam trabalhar remotamente, enquanto muitos dos trabalhadores dos serviços de primeira necessidade estiveram na linha da frente da pandemia. Por fim, é preciso também considerar atributos de capital social, como a religiosidade, a dimensão da família ou a cultura, que foram determinantes no grau de risco que os indivíduos estavam dispostos a correr.

Como é que a classe criativa foi afectada por esta crise? Houve algum impacto na sua essência?

Muitos dos sortudos durante esta pandemia foram os trabalhadores da classe criativa, pois puderam ficar em teletrabalho. Estima-se que, nos Estados Unidos da América, mais de 40% da classe criativa esteja a trabalhar remotamente. Embora isto possa ter criado desafios para a inovação, a colaboração e a criatividade espontânea, permitiu também que muitas destas pessoas continuassem em segurança e mantivessem os postos de trabalho. E se, por um lado, a pandemia trouxe desafios, por outro, apresentou oportunidades para muitos empreendedores para reinventar práticas e modelos de negócio.

“De forma muito simples, a infra-estrutura urbana de hoje já não é apenas ruas, túneis, canalizações e tubos. Esta está integrada e é alavancada por tecnologias avançadas e por dados. As cidades que fizerem isto bem vão liderar a recuperação económica no futuro que se avizinha.”

Agora, o risco da doença impede-nos da interacção social, que é algo que torna as cidades vibrantes, mas as novas tecnologias permitem-nos trabalhar à distância. A atractividade das cidades foi afectada?

Como referi, muitos dos trabalhadores estão já a abraçar o teletrabalho. E, embora considere que muitos deles irão regressar aos escritórios quando houver uma vacina, esta pandemia enfatizou a flexibilidade do trabalho, podendo criar oportunidades de atracção de talento em comunidades mais pequenas e rurais que tenham já investido fortemente na qualidade dos territórios. Dito isto, as cidades vão sobreviver. Sempre e cada vez que tivemos uma pandemia no passado, o poder económico das cidades foi mais do que suficiente para contrariar o poder destrutivo da doença infecciosa.

Mas algo vai mudar?

Sim, provavelmente veremos mudanças nas nossas cidades: os escritórios vão mudar, as paisagens urbanas vão mudar e os padrões de mobilidade vão mudar. Mas vamos também ver as cidades mais focadas em melhorarem a qualidade de vida e com espaços onde todas as comunidades possam prosperar. É por isso que um caminho com vista à inclusão e resiliência é tão importante.

Considera que a Covid-19 vai mudar a forma como se pensa e faz urbanismo?

Muitos dos que pensam sobre cidades acreditam que as mudanças vão ser significativas. Eu tendo a crer que a maioria das alterações vai ser no curto prazo, até termos uma vacina e recuperarmos totalmente. Acredito que as maiores mudanças que vamos ver como resultado da pandemia de Covid-19 vão dar-se no domínio público e na forma construída. Por exemplo, nas ruas, veremos mais máscaras, vamos experienciar mais períodos de espera no exterior e ruas menos ocupadas. O nosso ambiente de escritório também vai mudar: vamos estar mais dispersos e haverá menos co-working. Penso também que veremos horários de trabalho mais flexíveis e muitas pessoas a fazê-lo a partir de casa. Já na mobilidade, podemos ver mais modos activos, isto é, a bicicleta e o andar a pé. Por fim, espero também que haja um pequeno alívio nos custos elevados da habitação nos nossos centros urbanos.

“Se queremos um futuro mais inclusivo, equitativo e resiliente, temos de começar agora. Não podemos esperar! É preciso também lembrarmo-nos de que a saúde pública é, agora, mais importante do que nunca para o desenvolvimento económico e para a inovação.”

Neste período, novas tecnologias ajudaram algumas cidades, como Seoul, a controlar a propagação do vírus de forma mais eficaz. Serão o uso de soluções inteligentes e a analítica de dados novos requisitos para cidades bem-sucedidas e saudáveis?

De forma muito simples, a infra-estrutura urbana de hoje já não é apenas ruas, túneis, canalizações e tubos. Esta está integrada e é alavancada por tecnologias avançadas e por dados. As cidades que fizerem isto bem vão liderar a recuperação económica no futuro que se avizinha.

Que mensagem gostaria de deixar aos autarcas e planeadores urbanos sobre como lidar com esta pandemia?

É muito simples: se queremos um futuro mais inclusivo, equitativo e resiliente, temos de começar agora. Não podemos esperar! É preciso também lembrarmo-nos de que a saúde pública é, agora, mais importante do que nunca para o desenvolvimento económico e para a inovação. Nós temos de construir comunidades saudáveis e activas e garantir que a infra-estrutura necessária para apoiar esse desenvolvimento está lá.