Ex-funcionário público, o holandês Richard Budel é hoje o CTO – Government & Public Sector Western Europe & CIO Smart Cities da Huawei. A sua experiência do lado governamental ajusta-se àquilo que é a abordagem da empresa chinesa às smart cities no mercado da Europa Ocidental. Retirar o foco da tecnologia, partilhar os lucros dos projectos e, através deles, revitalizar as indústrias locais são algumas das ideias que o responsável deixou à Smart Cities. Já no que toca aos rumores ligados a questões de segurança e privacidade que envolvem as empresas chinesas, a resposta da Huawei é apenas uma: transparência.
Qual é a abordagem da Huawei ao conceito “cidade inteligente”?
Esse é um tema que vem muitas vezes à baila, porque a Huawei é uma empresa muito tecnológica e, mais do que isso, é também uma empresa orientada para o produto. Não prestamos propriamente os serviços, focamo-nos mais no produto, e o facto de termos 40% da nossa mão-de-obra dedicada a I&D (Investigação e Desenvolvimento) torna-nos uma empresa ainda mais tecnológica.
O meu background é no sector público, na área de segurança pública. O que tentamos fazer na área das smart cities é partir do princípio e, acima de tudo, de que se trata de pessoas. As pessoas fazem parte da característica que define uma cidade, não a geografia, o ambiente político ou a economia. No nosso negócio no Ocidente, definimos a ideia de cidade inteligente como algo que inclui a tecnologia. Se pesquisarmos no Google o que é uma smart city, todos os resultados vão mostrar algo relacionado com tecnologia, mas a pergunta que devemos fazer é se pode uma cidade ser inteligente sem tecnologia. E a resposta é “sim”, por isso, não podemos olhar a tecnologia como a característica que define uma cidade inteligente. A partir daí, definimos o nosso foco: somos uma empresa tecnológica, fornecemos alguma da tecnologia central que é usada para smart cities, mas não entendemos uma cidade inteligente como um projecto tecnológico.
Nos dias de hoje, é possível ter uma cidade sem tecnologia?
Na realidade, claro que não. Precisamos de tecnologia para tudo, mas o que tentamos fazer é afastar a tendência a que se assistiu – pelo menos, na Europa Ocidental –, nos últimos dez anos, em que as smart cities foram dominadas pela tecnologia. Foram concebidas como projectos orientados para a tecnologia, nos quais faltava um grande elemento humano. Um dos principais problemas desta abordagem é que aumentou as divisões sociais, porque foi dito aos fornecedores de tecnologias que podiam desenvolver serviços smart cities, mas tinham de pagar por eles, pois as cidades não querem fazer grandes investimentos em tecnologias de informação (TI). Estas empresas procuram formas de gerar receitas e, como resultado, estes serviços estão muitas vezes focados na classe média ou média-alta, e as pessoas que mais podiam beneficiar desses serviços, que são os que estão mais dependentes deles, são marginalizadas. Por isso, temos um posicionamento muito forte sobre deixar a tecnologia fora da definição, o que pode ser ingénuo e pouco realista, mas pode ser uma boa forma de equilibrar a tendência contrária que existe.
“No domínio das smart cities, o problema a que assistimos é que muitas cidades abdicaram completamente das responsabilidades financeiras, permitindo que o sector privado capturasse o valor comercial para si.”
Estar no negócio das smart cities implica uma mudança no mindset de uma empresa?
Sim, mas o mesmo se aplica ao sector público, que não está pensado para gerar receitas e ser uma entidade empresarial. Olhando da perspectiva comercial, o sector privado é muito poderoso e altamente qualificado, o que coloca os governos em desvantagem. Não podemos virar o pêndulo ao contrário e dar todo o poder aos governos, até porque o sector público também não está interessado. Mas se olharmos para a quantidade de receitas a alcançar, parece-me que é possível, de certeza, encontrar um ponto intermédio. Uma das formas para conseguir isso será deixar de pensar sempre e necessariamente no formato de relação contratual fornecedor-cliente, e mais em jeito de parceria. Com modelos de partilha de receitas, nos quais se continuam a criar bases equitativas, isto porque é preciso que o sector privado seja também rentável – estas empresas precisam de fazer investimentos em I&D e desenvolvimento de produtos. Não penso que seja preciso ser um extremo ou o outro, o desafio é mesmo encontrar o equilíbrio.
Como podemos encontrar esse equilíbrio entre uma orientação empresarial e outra social?
Uma das coisas que aprendi quando comecei a trabalhar no governo é que devemos ter um foco comercial no trabalho que fazemos. Mesmo que não queiramos gerar lucro no sentido de pagar dividendos a accionistas, é preciso ter lucro para garantir que podemos reinvestir nos serviços, quer seja para melhorar os que já existem, quer seja para criar novos. Ter uma visão empresarial é crítico para qualquer serviço público.
No domínio das smart cities, o problema a que assistimos é que muitas cidades abdicaram completamente das responsabilidades financeiras, permitindo que o sector privado capturasse o valor comercial para si. E, como maior parte destas empresas tem benefícios fiscais, com os quais pagam 2 ou 3% de impostos sobre o lucro, não podemos sequer argumentar que o dinheiro é devolvido à sociedade por esse meio. Estamos numa situação em que todos perdem, um modelo puramente capitalista.
Se eu pudesse voltar aos meus dias do sector público, uma das primeiras coisas que faria era tornar isso um crime! Devia ser proibido que um governo municipal permitisse que os lucros de serviços smart cities fossem alocados apenas ao sector privado, principalmente quando maior parte do valor comercial é gerado através de dados que pertencem por direito à cidade ou aos seus habitantes.
A Huawei está a implementar esta abordagem?
É difícil para nós fazê-lo, pois estamos no lado do sector privado. O que tentamos fazer é capacitar as cidades para adoptarem um mindset mais empresarial. Um exemplo disso: em Gelsenkirchen, Alemanha, ajudámos a cidade a criar uma plataforma que vai começar a agregar todos os dados provenientes de bases de dados ou de IoT [Internet of Things] e vai, depois, servir as aplicações que são construídas por cima. Significa que Gelsenkirchen está numa posição em que pode controlar os dados e, se houver retorno financeiro ao investimento, a cidade pode partilhá-lo e trazer de volta uma parte para os seus cidadãos. Não conseguimos alterar as coisas sozinhos, por isso, o que tentamos fazer é capacitar as cidades, dando-lhes ferramentas, como uma plataforma de gestão fácil de dados.
“O objectivo que temos na Huawei não é o de replicar soluções que disseminámos noutros países ou regiões. Sabemos que, quando é bem aplicada, o valor da tecnologia permite que uma cidade opere da forma que se pretende.”
Na sua vida profissional, passou por várias zonas do globo, desde a América do Norte à Ásia, passando também por África. Quão diferentes são estas regiões da Europa Ocidental?
São mundos distintos, mas mesmo dentro da Europa há grandes diferenças. Se pudesse caracterizar de forma sintética a Europa Ocidental, diria que, há sete anos, estávamos a liderar o mundo em projectos smart cities, mas, quando voltei à Europa em meados de 2017, estávamos já atrás do resto do mundo. Isto é compreensível por muitas razões. Uma delas é o facto de que, na Europa Ocidental, podemos dar-nos ao luxo de ser ineficientes e preguiçosos, porque não temos os problemas que encontramos, por exemplo, na Cidade do México, em Pequim ou em Manila, onde se estão a afundar ou a sufocar em smog.
Mesmo com o que aconteceu há seis anos durante a crise, não temos os mesmos problemas financeiros que os Estados Unidos (EUA), onde há cidades a declarar falência. Não temos questões de segurança pública como as que existem em África. Parte do problema que encontro é que temos cidades relativamente bem-sucedidas à nossa medida e a motivação para ser mais inteligente não existe propriamente, enquanto estas outras regiões do globo estão sujeitas a pressões maiores para mudar a forma como funcionam.
Sendo a Huawei uma empresa chinesa e estando a China muito avançada em termos de tecnologias urbanas, é possível beneficiar dessa experiência?
Se falarmos de tecnologia, absolutamente. É um conjunto de circunstâncias totalmente diferente, em muitos casos, as cidades chinesas não têm o mesmo enquadramento legal que as cidades da Europa Ocidental ou dos EUA e, por isso, conseguiram tirar proveito de novas tecnologias e avançar mais rápido. Há muito a aprender e, neste momento, quando vemos um ambiente que está a amadurecer muito rápido, muitas das lições estão a transferir-se de Oriente para o Ocidente. À medida que essas cidades comecem a amadurecer, a lidar com os problemas da estagnação do crescimento e a precisar de se manter, então, vai haver também uma transferência de lições do Ocidente para o Oriente.
Ainda que os contextos sejam muito diferentes. É possível replicar soluções ou teremos de adaptá-las?
Muitas pessoas diriam que não querem, nas cidades europeias, o mesmo tipo de vigilância do governo que existe nas cidades chinesas, o que é um ponto de vista puramente político e cultural. A certo nível, a tecnologia é neutra e, em si mesma, tem zero valor. O seu valor deriva da forma como é usada. O objectivo que temos na Huawei não é o de replicar soluções que disseminámos noutros países ou regiões. Sabemos que, quando é bem aplicada, o valor da tecnologia permite que uma cidade opere da forma que se pretende.
A minha expectativa é a de que, à medida que as cidades se tornam mais inteligentes, se tornem mais diferentes e originais, em vez de mais semelhantes e homogéneas. Quando viajamos pelo mundo e vamos aos centros das cidades, ver as mesmas cadeias de lojas e de restaurantes é já um problema. Essa homogeneização não é uma característica de uma cidade inteligente. E não deveríamos esperar que aconteça a mesma coisa com a tecnologia. Devemos olhar para a tecnologia como algo que permita à cidade controlar e definir como quer ser. E só porque replicamos uma solução de um sítio para o outro não significa que esta vá operar da mesma forma.
Pelas diferenças políticas e culturais, há muitos rumores à volta de empresas chinesas, incluindo a Huawei. Sente alguma desconfiança por parte das cidades europeias?
Para minha surpresa, não. Descobrimos que os nossos clientes são cautelosos, mas de forma universal. Sabemos que há alegações e histórias sobre empresas chinesas, mas também há factos comprovados sobre empresas norte-americanas. Não se trata de se uma empresa de determinada nacionalidade precisa de ser mais escrutinada, mas sim de os clientes considerarem que têm a obrigação com os seus cidadãos de se protegerem e, por isso, qualquer fornecedor deve ser escrutinado da mesma forma.
Diria que tem até sido uma vantagem para nós, porque as pessoas esperam que a Huawei apareça com um conjunto de mensagens e quando começamos a falar sobre o facto de a cidade ter de ser centrada nas pessoas, que a tecnologia não é uma característica e que temos de garantir que as cidades estão no controlo, então, param um segundo e apercebem-se de que esta é uma mensagem diferente daquela que têm ouvido até aqui. Os clientes dizem-nos: “acreditamos em vocês, vamos continuar a observar-vos de perto, mas vamos dar-vos uma oportunidade porque nos trazem algo diferente”.
Pessoalmente, valorizo o facto de a Huawei dizer “se têm desconfianças, por favor, venham, visitem as nossas fábricas, abram os nossos equipamentos, e se encontrarem algo, por favor, alertem-nos, pois, se estiver lá, é acidental”. Essa transparência é muito bem vista pelos nossos clientes.
Para além da plataforma de dados em Gelsenkirchen, em que outros projectos estão a participar em cidades europeias?
A Huawei é relativamente jovem no domínio das smart cities na Europa Ocidental, está neste mercado há cerca de dois anos. Eu fiz projectos smart cities com a IBM há dez anos, por isso, a Huawei é muito recente [aqui]. Gosto sempre de certificar-me de que os clientes compreendem que, se querem que lhes mostre uma referência onde já temos táxis robóticos que andam pela cidade a entregar encomendas ou algo parecido, isso não vai acontecer. Ninguém chegou lá ainda. Estamos numa fase muito inicial. De forma geral, a abordagem da Huawei é começar com o conceito da plataforma para, a partir daí, desenvolver serviços. Temos feito isso com cidades na Holanda, Alemanha – nomeadamente, na Renânia do Norte-Vestefália –, Itália – de Norte a Sul e na Sardenha. Estes são todos projectos de fase 1, mas, se querem ver a verdadeira definição de smart city, voltem [a estes projectos] daqui a três anos. Esta abordagem de ritmo lento é, a meu ver, a mais responsável.
Porquê?
Na minha experiência no sector público, aprendi que, por vezes, temos uma obrigação com a sociedade de ser muito lentos, muito precisos e claros naquilo que são os impactos e resultados, pois as consequências não intencionais do que se faz podem ser muito assustadoras, em particular no âmbito da segurança pública. Estamos focados em fornecer essa layer para os dados, que dá à cidade o poder e controlo da informação, na conectividade da rede e em construir um ecossistema de parceiros que construa os dashboards e a visualização, para que os responsáveis municipais e os cidadãos possam perceber o que está a acontecer na sua cidade.
Qual a estratégia para o mercado português?
Estamos a pensar como fazer isso, pois, à semelhança da Holanda – o meu país de origem –, Portugal tem muitas vantagens naturais. Não é uma área geográfica grande, há já um sentido de comunidade muito grande e tem uma boa distribuição de pequenas, médias e grandes cidades. Há cerca de 18 meses, fiz a minha primeira apresentação em Lisboa e penso que o desafio agora é o de encontrar o ecossistema local de empresas com quem trabalhar. Se pensarmos nas características que definem a cidade como serviço – smart parking, gestão de resíduos inteligente, saúde em casa, iluminação, etc. –, a Huawei não faz nenhuma delas. Costumo brincar, ao dizer que, no domínio das smart cities, a Huawei não fornece nada, o que fazemos é tornar tudo possível, pois fornecemos a infra-estrutura invisível.
Para entrar no mercado português, é preciso um bom ecossistema de parceiros. O que não funcionaria é chegar a Portugal com um conjunto de parceiros chineses ou alemães. Defendo que o dinheiro dos contribuintes deve ser gasto no seu país e um projecto smart city em que todo o dinheiro vai para empresas estrangeiras não me parece bem. Temos de procurar formas de usar estes projectos para revitalizar a indústria local e a Huawei precisa de trabalhar isso em Portugal.