Uma Terra viva é uma terra que respira e que se movimenta e o território continental português, embora aparentemente calmo, não é excepção. Perante a incerteza sísmica, levanta-se a questão de como tornar o território mais resiliente. É nisto que o projecto ReSist, focado na capital, tem pensado.
No alto da colina, ergue-se o antigo castelo. Milhares de pessoas cirandam pelas ruas geometricamente desenhadas. O céu limpo e o sol reflectem-se a pique entre os prédios esbranquiçados e o rio que partilha o espaço com a grande urbe. Num segundo, um pequeno ruído, burburinho de fundo, surge não se sabe de onde. Noutro segundo, o chão parece começar a ondular. E ao terceiro tempo tudo cai. Uma ruína, numa cidade ainda viva. Poderia ser o cenário de um filme, mas em Lisboa isto pode acontecer.
Localizado na Placa Euroasiática, mas próximo da fronteira com as placas tectónicas Africana e Norte-Americana, Portugal regista sismos com frequência. São, no entanto, sismos com baixa magnitude, uma vez que a deformação das placas nesta zona acontece de forma lenta, dando a ilusão de que a terra não treme em terras lusas. Nos Açores, contudo, essa ideia é mais difícil de manter, mas, na verdade, se olharmos para o passado, percebemos que nenhuma cidade portuguesa está isenta deste perigo.
Embora seja impossível determinar quando, o local exacto e a magnitude de sismos futuros, os registos geológicos comprovam que há uma ciclicidade sísmica. Por esse motivo, pelo rasto de destruição que o Grande Terramoto de 1755 nos legou, que ainda está bem presente na História de Portugal e numa memória quase genética nacional, tal como pela ideia de que não há forma de prever este tipo de fenómeno natural, o tema da prevenção ou mitigação de potenciais danos torna-se fundamental para as cidades. É nisto que se foca o ReSist – Programa municipal de promoção da resiliência sísmica do parque edificado privado e municipal e infraestruturas urbanas municipais.
UM PROJECTO PARA O FUTURO
Criado oficialmente em 2021, o ReSist é um projecto desenvolvido pela câmara municipal de Lisboa que avança com 48 acções para tornar a capital mais resiliente em termos sísmicos. Este conjunto de medidas desdobra-se em torno de três vectores: “Infraestrutura de conhecimento e modelação”, “Regulamentação e fiscalização” e “Envolvimento da sociedade”.
Inicialmente apresentado no final de 2020, junto à revisão do último Plano Director Municipal (PDM), correspondendo ao cumular de vários projectos realizados desde 2012, teve início com o mapa de vulnerabilidade sísmica dos solos e com estudos feitos a mais de 13 mil sondagens aos solos da cidade.
É também um trabalho resultante da necessidade de responder aos vários programas e estratégias de Lisboa, no âmbito da promoção da resiliência sísmica da cidade e, ao mesmo tempo, é um projecto derivado do reconhecimento da intensa actividade de reabilitação de que os edifícios foram sendo alvo no sentido da melhoria do seu estado de conservação. Verificando-se, contudo, que esses mesmos trabalhos podem não ter levado em conta a manutenção ou o reforço da resistência sísmica, foi recentemente apresentado o Relatório de Avaliação de Vulnerabilidade Sísmica como forma de garantir que a estrutura de um edifício não será comprometida por via de obras e construção várias.
Numa área densamente habitada, como acontece em Lisboa e respectiva região metropolitana, factores como a distribuição socioeconómica, a demografia (caracterizando-se uma população cada vez mais envelhecida, habitante dos antigos bairros lisboetas), o grau de educação e o tempo de resposta aos eventos têm uma profunda influência nesta análise.
E face aos recentes acontecimentos vividos pela Turquia, que rapidamente correram o mundo, torna-se ainda maior a necessidade de questionar a capacidade actual e moderna de fazer frente a uma potencial catástrofe.
Cláudia Pinto, geóloga, directora e coordenadora do ReSist, afirma que, em caso de um evento extremo, “(…) haverá problemas sérios, mas [que] é exactamente para preveni-los ao máximo e mitigar os danos causados que estamos a trabalhar [no ReSist]”.
INTERVIR NO EDIFICADO
Cidades históricas possuem edifícios antigos. Quer isto dizer que, com edifícios predominantemente anteriores a 1960, Lisboa, apesar da baixa perigosidade sísmica, apresenta uma vulnerabilidade elevada. Quem o explica é Cláudia Pinto, que lembra que os prédios anteriores a 1958 não tiveram qualquer regulamentação anti-sísmica, uma preocupação que só passou a ser considerada em normativas após 1982. E mesmo edifícios que tinham integrado, do ponto de vista histórico, algumas regras anti-sísmicas pombalinas têm vindo a sofrer, ao longo das décadas, contínuas alterações estruturais, sem regulação técnica e fiscalização, nem sistematização nos respectivos volumes de obra.
Além disso, Cláudia acrescenta que dos 55 mil edifícios existentes em Lisboa (município), apenas 5 mil são da responsabilidade da câmara municipal, o que leva a outro tipo de problema. É impossível entrar nos prédios e fazer vistorias técnicas sem autorizações.
Paira uma dúvida no ar. Afinal, qual é o ponto de situação do município de Lisboa e o que se pode, e deve, fazer para mitigar situações de potencial vulnerabilidade e maior risco? É na tentativa de responder a estas questões que a iniciativa ReSist traça, no plano de acção, o seu primeiro vector de acção, “Infraestrutura de conhecimento e modelação”, dedicado à actualização de estudos existentes e à realização de novos estudos no que diz respeito aos edifícios.
Uma das medidas deste primeiro vector consiste no desenvolvimento de uma aplicação que, funcionando como um observatório de cidadãos de livre acesso, permite aos utilizadores identificar e comunicar situações de risco às autoridades competentes. Trata-se da AGEO – Plataforma Atlântica para a Gestão de Risco Geológico e foi desenvolvida por vários actores da população, desde a Proteção Civil e os bombeiros até aos grupos de escoteiros e elementos de universidades sénior. Através desta ferramenta de base gráfica visual, a ideia é que os cidadãos se sintam capacitados a identificarem situações de risco e encorajados a adoptarem um papel mais activo na optimização da resposta da cidade a possíveis catástrofes, emitindo alertas.
Já no vector “Regulamentação e fiscalização” são apresentadas medidas com impacto para o exterior. É dentro deste vector que se encontra o novo Relatório de Avaliação de Vulnerabilidade Sísmica, apresentando oficialmente a 1 de Abril 2023. De acordo com o artigo 1.º da Portaria n.º 302/2019 de 12 de Setembro, para todas as obras de ampliação, alteração ou reconstrução de edifícios, torna-se obrigatório a apresentação deste relatório de avaliação de vulnerabilidade, desde que: 1) existam sinais de degradação no edifício, 2) seja realizada uma alteração a nível estrutural, 3) a área de intervenção, com demolição e ampliação, exceda 25% da área bruta do edifício ou, 4) o custo da obra ultrapasse em 25% o custo de construção nova de edifício equivalente.
Este relatório é também composto por três partes fundamentais: Diagnóstico da situação existente, Avaliação física e Conclusão, tornando o seu preenchimento mais acessível, directo e sem margem para erros. O resultado deverá corresponder ao cumprimento ou não cumprimento das regras. Se não houver coerência, o edifício terá de ser sujeito obrigatoriamente a um projecto de reforço sísmico. Uma das mais valias deste documento é o facto de ser feito em sede de arquitectura e devidas especialidades, algo que para Cláudia Pinto é de elevada importância.
Outra das acções neste vector passa pelo guia Planear a cidade resiliente, que pretende agrupar as melhores práticas a adoptar, reduzindo impactos futuros, tanto nas vias que podem ser pontos de evacuação, como nas que possam funcionar enquanto pontos de abrigo. Neste guia, apresentam-se formas para que a população se possa salvaguardar, por exemplo, em caso de tsunami, junto ao rio, tendo em consideração a existência da linha de comboio, que é uma barreira física à deslocação.
Ainda dentro dos objectivos desta estrutura, ocorre uma cooperação com a Ordem dos Engenheiros Técnicos. Num trabalho conjunto, procuraram-se criar as condições para que haja acreditação de técnicos que futuramente realizem projectos de reforço sísmico em alvenaria. A medida para um plano de formação já está a ser trabalhada junto do ReSist, informa Cláudia Pinto. “As más práticas não resultam apenas de negligência, mas também de desconhecimento. Sendo que 60% do edificado de Lisboa é construído em alvenaria, sabemos que a maioria dos engenheiros não está capacitada para esta tipologia. Nas faculdades ensina-se a trabalhar e a dimensionar apenas o betão.” Por último, o vector “Envolvimento da sociedade” foi criado para o desenvolvimento de acções de capacitação, sendo as Jornadas ReSist um dos seus pontos máximos. Nestas jornadas, a participação de universidades, instituições várias, seguradoras e, claro, dos cidadãos é um factor para o sucesso do projecto.
Defendendo esta ideia, Cláudia Pinto lembra um debate sobre o papel das seguradoras e instituições congéneres em Portugal que aconteceu no último evento do projecto para explicar que, enquanto na restante União Europeia a maioria dos países inclui o risco sísmico como um dos factores a ter em conta nas apólices de seguros, em Portugal apenas 16% dos edifícios estão segurados “contra sismos” – nomeadamente escritórios, edifícios de comércio e empresas. Não existe nenhuma política nas seguradoras que mencione a necessidade de protecção contra sismos, e as entidades bancárias afirmam que não incluir o risco anti-sísmico nas apólices torna-as mais baratas para os clientes. Sendo prática corrente, as seguradoras afirmam não terem mercado para tal por falta de informação clara dos consumidores.
Já o reforço em edifícios patrimoniais também é avaliado neste vector social. Uma vez que estes não podem ser alvo de acções invasivas, com risco de perderem valor cultural, tentou-se alcançar um meio termo para este edificado, na perspectiva de que, se houvesse um dano significativo de origem sísmica, a perda seria igualmente elevada. Para aumentar o potencial de protecção, o projecto trabalha também, neste vector e em conjunto com os agentes locais, a comunicação de risco e a capacitação da população, de que são exemplos as iniciativas Faça Você Mesmo e O que fazer em caso de evento sísmico na cidade.
IMPORTÂNCIA DA EDUCAÇÃO E DA INFORMAÇÃO PARTILHADA
O programa ReSist procura também oferecer mais informação através da partilha de flyers, divulgando os diferentes riscos presentes na app AGEO: sismos, inundações, deslizamentos e riscos geotécnicos. Para tal, realizou recentemente uma série de acções distintas nas juntas de freguesia, direccionadas aos principais riscos identificados nas respectivas áreas. Além da distribuição dos flyers, foi feita uma nova formação para utilização da app AGEO, com exemplos no terreno, permitindo depois que as actividades continuassem através das associações de moradores.
Para Cláudia Pinto, “o caminho do sucesso passa por não sermos parte do problema, mas, sim, [parte] da solução”, pelo que a comunicação é fundamental. “Temos um edificado antigo, sim, uma vulnerabilidade enorme, com grande parte das pessoas a morar nas zonas de maior risco, mas há realmente algo que podemos fazer: envolver os serviços, na minha opinião, é essencial.”
O ReSist é um projecto de simbiose e de vontade, mas também de grande exigência e conhecimento. Abrangendo várias áreas de edificação e planeamento, terá de ser um trabalho contínuo, afecto à população generalizada, dentro e fora da cidade de Lisboa. Por isso, todos os documentos estão disponíveis para quem queira consultá-los e usá-los como base de trabalho futura, criando uma visão estratégica e de longo prazo. A iniciativa é também a certeza de uma resiliência característica do ser humano e da sua capacidade de sobrevivência.
Este artigo foi originalmente publicado na edição nº 39 da Smart Cities – Abril/Maio/Junho 2023, aqui com as devidas adaptações.