A Culturgest, em Lisboa, recebe amanhã o Q-Day 2021, um evento organizado pela empresa tecnológica portuguesa Quidgest. A edição deste ano traz ao debate os 17 Objectivos para o Desenvolvimento Sustentável (ODS) das Nações Unidas (ONU) e como estes se interligam com quatro temas centrais na nossa vida: Pessoas, Prosperidade, Paz e Planeta. Joana Miguel Santos, directora de marketing global e estratégico da Quidgest, falou à Smart Cities sobre o momento actual e explicou como podemos usar a tecnologia nesta missão para um futuro sustentável.

 Pessoas, Prosperidade, Paz e Planeta” são as palavras chave do Q-Day 2021 – de que forma a pandemia mudou a abordagem desses temas (tendo em conta o enquadramento da conferência)?

A pandemia teve um papel vital na exposição das fragilidades do nosso mundo. Deu-nos a (re)conhecer as desigualdades mesmo dentro das sociedades mais desenvolvidas. Falo, por exemplo, do acesso à educação de qualidade, o quarto Objectivo para o Desenvolvimento Sustentável: a pandemia privou os alunos de irem presencialmente à escola e enalteceu as diferenças substanciais entre os alunos com uma estrutura mais sólida, que têm acesso à Internet e a dispositivos, e os alunos em maiores dificuldades – não falo de alunos de diferentes geografias ou nem mesmo escolas, mas, sim, das mesmas turmas. Estas diferenças acontecem mesmo dentro destas pequenas comunidades.

Também deu visibilidade à urgente necessidade de um sistema de saúde de qualidade (terceiro ODS), através da esmagadora afluência aos cuidados de saúde nos picos da pandemia e da importância do equilíbrio entre “acudir” aos utentes com Covid-19 e as restantes doenças, com maior ou menor grau de urgência. Nesta linha, destaco também a visibilidade sobre a desigualdade de género (quinto ODS): não só porque as mulheres representam, a nível mundial, a grande maioria dos trabalhadores da saúde, e isso as tornou mais expostas à pandemia, mas também pelos relatos de mulheres que lidaram mais tempo com (ou descobriram) parceiros abusivos devido ao confinamento.

Por fim, mas igualmente importante: tivemos prova, nos primeiros meses de confinamento, do impacto que a forma como as pessoas se movimentam de/para o trabalho tem para o meio ambiente (13.º ODS), dando-nos esperança sobre existir algo que, individualmente, podemos fazer para travar as alterações climáticas e o seu impacto.

Utilizo estes exemplos para responder que nos apercebemos – espero eu –, enquanto sociedade, que o caminho de desenvolvimento social e económico que trilhámos até ao pré-pandemia não é sólido e que não nos conduzirá a bom porto, que tem lacunas que têm de ser resolvidas em todas as frentes, aos níveis das “Pessoas, Planeta, Prosperidade ou da Paz”. Ainda assim, a pandemia também se posiciona como uma oportunidade para revermos estes eixos, como uma nova hipótese de repensarmos o mundo que construímos até então. Esta é uma das mensagens que queremos transmitir no Q-Day: que, se alinharmos as nossas metas, enquanto membros das mais diversas comunidades (locais, regionais, nacionais, organizacionais e empresariais), aos ODS, é possível construirmos um “novo normal” e no qual a tecnologia se posiciona como um veículo fundamental para tornar possível o que já vem tarde.

Vimos um grande acelerar da transição digital. As vantagens do uso das novas tecnologias para alcançar os ODS ficaram mais evidentes neste último ano e meio? Em que medida?

Acredito que sim. À medida que as fragilidades foram sendo expostos, percebemos também como a tecnologia pode ajudar as mais diversas frentes. Ao falarmos de prosperidade económica, por exemplo, vimos que as tecnologias digitais foram fundamentais para apoiar a continuidade dos negócios, independentemente da sua dimensão, que, por sua vez, conseguiram continuar a empregar pessoas e servir a sociedade. Como referi, houve também uma grande alteração na Educação. As plataformas de e-Learning alteraram por completo o paradigma da escola. Hoje, se um aluno tiver acesso a Internet e a um bom dispositivo, tem todas as ferramentas para aprender com os melhores professores do mundo, de ganhar competências digitais e até, no que diz respeito a pessoas em idade adulta, de alterarem a sua carreira profissional.

O serviço dos Estados aos cidadãos por via de meios digitais também foi acentuado durante a pandemia. Hoje, nos países com capacidade para tal, temos tecnologia para servir os cidadãos em qualquer lado e a partir de qualquer dispositivo com acesso à Internet. Vimos a mesma alteração na Saúde, com consultas on-line e com a prescrição electrónica de medicamentos.

Foram precisas novas tecnologias para responder a estas alterações?

Muitas destas soluções já estavam disponíveis pré-pandemia, mas foram adoptadas em larga escala para fazer face às necessidades criadas pelo confinamento e que, certamente, se manterão em funcionamento mesmo depois deste período. No que diz respeito a novas tecnologias criadas para fazer face à pandemia, menciono o VirVi, a solução da Quidgest para controlo e combate de epidemias e pandemias, que permite fazer uma gestão holística de todas as frentes da pandemia – desde os serviços de saúde e testagem ao controlo dos centros de atendimento.

Não obstante, o uso da tecnologia continua a abarcar riscos. A quais devemos estar mais atentos num cenário pós-Covid-19?

Considero que o primeiro ponto a ter em atenção é o aumento das diferenças, já grandes, entre os países com capacidade para aproveitar a tecnologia em proveito das suas pessoas e relações e os países, regiões e pessoas mais pobres. A Agenda das Nações Unidas para o desenvolvimento sustentável deixa clara esta chamada de atenção. Depois, no ambiente que nos é mais próximo, [há que] perceber que estas diferenças também existem entre pessoas da mesma comunidade e merecem atenção nacional, regional, municipal e mesmo ao nível de cada centro, escola, grupo.

Neste contexto da crescente utilização dos meios digitais por todos, sabemos hoje que as mais diversas tecnologias, como o caso dos sistemas de monitorização de cidadãos, podem ser utilizadas para fins que podem colocar em causa os direitos básicos das nossas pessoas, como o da privacidade, directamente.

Esse é um perigo real no nosso contexto?

No caso da União Europeia e com uma nota positiva, temos de ter em consideração que existem reguladores que têm trabalhado sobre estas frentes, de forma a garantir que as tecnologias com maior potencial de disrupção das sociedades são utilizadas para fins que garantem o bem-estar e a qualidade de vida das pessoas e não o oposto. Historicamente, as grandes adversidades enfrentadas pelo ser humano levaram a alterações significativas no nosso comportamento. Esta pandemia trouxe uma nova forma de olhar para os problemas e temos a oportunidade de utilizar a tecnologia para criar um mundo novo de mãos dadas com a sustentabilidade e os ODS.

“Grande parte dos objectivos, como oportunidades iguais, igualdade de género, direitos humanos, erradicar a pobreza e a forma, garantir a educação, deve estar na alçada das cidades. Numa altura de eleições autárquicas, vemos alguns destes temas debatidos por políticos, mas estes pontos estão associados apenas a alguns partidos. Há que ter consciência de que este acordo foi assinado pelos líderes mundiais da ONU e que todos os objectivos devem ser tidos em consideração por todos.”

A transição digital e a transição energética são duas prioridades nacionais e europeias para os próximos anos, havendo para isso muito financiamento previsto. Que recomendação deixaria para assegurar que esses fundos estão alinhados com os ODS?

A transição digital e energética é uma agenda europeia e americana. Os ODS são uma agenda global, pelo que existe uma subordinação natural destas mudanças aos objectivos delineados por todos os membros da ONU.

Estas transições são um exemplo para o futuro. Para os países que têm mais dificuldades e que terão este desafio também. Mas também podem permitir que haja saltos directos de desempenho, quer no digital, quer na área energética. Podem ser vistos como protótipos, desenvolvimentos científicos, inovações, que mais facilmente sejam adaptadas ou adoptadas por outros países.

Para isto tudo resultar, é preciso que se mantenha a consciência de que estamos todos no mesmo planeta. A principal recomendação que deixaria é a de garantir que todos os financiamentos estão alinhados com os objectivos e respectivas metas e que não contribuem para o distanciamento de outros.

É sabido que as cidades são os principais palcos da acção climática e são também determinantes para alcançar os ODS. Quais são as principais tendências que vê para o uso da tecnologia neste sentido em ambiente urbano?

Há várias formas de as cidades olharem para a tecnologia como um meio para garantir a sustentabilidade. Desde logo, podemos apontar a criação de um digital twin, uma tecnologia que permite sentir o pulsar de uma cidade como um ser em constante desenvolvimento. Através de um digital twin, é possível testar, num ambiente digital, as possíveis alterações sem criar entropia no dia-a-dia das pessoas. Por exemplo, podemos antever quais são os benefícios e como a cidade se iria comportar caso implementássemos uma nova linha de metro ou uma nova faixa de rodagem só para bicicletas.

A par disso, vemos também o Green Balanced Scorecard como um meio para planear, implementar, monitorizar e desenvolver novos projectos de sustentabilidade. É uma forma de medirmos o impacto das mais diversas iniciativas e de, por exemplo, avaliarmos se um projecto pode ser escalado ou replicável noutras zonas da cidade. Adicionalmente, permite-nos a criação de iniciativas para a execução das metas definidas ou correcção de desvios.

Importante notar, e aqui mencionando o 17.º ODS – Parcerias para a Implementação dos Objectivos – que as diferentes câmaras municipais não devem reger a sua actividade em silos. Pelo contrário, é importante que os diferentes órgãos à frente dos municípios, de Norte a Sul do país, estabeleçam parcerias, partilhem ideias e se entreajudem numa missão conjunta. Neste campo, aproveito para felicitar iniciativas como a plataforma ODSlocal.

Olhando em concreto para as cidades portuguesas, em que ponto estamos?

Daquilo que tenho conhecimento, neste momento, há algum desconhecimento da agenda da ONU. Grande parte dos objectivos, como oportunidades iguais, igualdade de género, direitos humanos, erradicar a pobreza e a forma, garantir a educação, deve estar na alçada das cidades. Numa altura de eleições autárquicas, vemos alguns destes temas debatidos por políticos, mas estes pontos estão associados apenas a alguns partidos. Há que ter consciência de que este acordo foi assinado pelos líderes mundiais da ONU e que todos os objectivos devem ser tidos em consideração por todos.

Ainda existe um longo caminho a percorrer e a tecnologia pode certamente apoiar as equipas à frente dos diferentes órgãos das cidades a trilhar este caminho: ajudando no planeamento e implementação, monitorização do progresso e comportamento e na avaliação e reação. Cabe-nos também a nós, cidadãos, exigir que as nossas cidades se comportem em conformidade com os objectivos, que vão muito além de ideologias políticas – são eixos fundamentais para o progresso.

O Q-Day 2021 acontece no próximo dia 14. O que podem os municípios (e não só) retirar deste evento?

No Q-Day 2021, os municípios irão conhecer outros actores comprometidos com os ODS e poderão firmar parcerias, criar pontes além-cores partidárias e partilhar experiências. Podem também esperar descobrir iniciativas, ideias e projectos que têm o potencial de transformar por completo a vida dos seus munícipes. No fundo, perceber como a tecnologia pode ser o braço direito da inovação em todos os eixos das suas cidades: da forma como planeiam construir um novo parque à forma como podem melhorar a mobilidade dos habitantes, por exemplo.

Mas, acima de tudo, vão sair do evento com um novo sentido de oportunidade de lutar em prol dos ODS. Compreenderão como a tecnologia pode diminuir custos, melhorar as suas actividades e garantir uma melhor qualidade de vida às pessoas que dependem dos municípios.

Trazemos especialistas com os mais variados backgrounds. Desde líderes de grandes tecnológicas mundiais a mentes brilhantes no que diz respeito à sustentabilidade, inovação e direitos humanos. Todas as informações estão disponíveis no website oficial do evento e gostaria de deixar aqui o nosso convite à participação activa neste debate!