Durante a consulta pública do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), cinco especialistas nacionais em assuntos urbanos apresentaram a sua visão para “uma nova agenda urbana” em Portugal. As propostas incidem, sobretudo, nas escalas mais locais e incluem conceitos como os de proximidade, vizinhança e colaboração, aplicados àquilo que são as necessidades e particularidades de cada território. O PRR já recebeu luz verde de Bruxelas, mas poderá a sua implementação ganhar inspiração neste “Plano Marshall Urbano”?

Portugal já definiu como pretende aplicar a parte que lhe cabe da “bazuca” europeia e foi o primeiro Estado-Membro a submeter o seu PRR à Comissão Europeia, ainda antes do final de Abril e depois de um período de consulta pública, no qual foram recebidos 1951 pareceres e comentários. O documento recebeu recentemente luz verde, contemplando cerca de 16 644 milhões de euros, dos quais perto de 14 mil milhões correspondem a subvenções, que o país vai usar para contrariar e tentar inverter os efeitos danosos da pandemia. Do plano, fazem parte orientações para reforçar a resiliência social, económica e territorial do país, ao mesmo tempo que se aceleraram as transições climática e digital.

O avultado envelope financeiro faz desta uma oportunidade única para levar a cabo mudanças necessárias. Áreas como a mobilidade sustentável, a eficiência energética dos edifícios, a habitação ou a coesão territorial são visadas na estratégia, no entanto, a sua escala mais macro deixa margem para o que pode vir a ser feito nos territórios urbanos e periurbanos, com vista não só a recuperar o país, mas também a prepará-lo para os desafios do futuro. Atentos ao elevado potencial que existe nas cidades, cinco especialistas em assuntos urbanos de diversas áreas submeteram, durante a consulta pública, um parecer sobre como o PRR poderia ser o motor de “uma nova agenda urbana em Portugal”, se este for mais baseado nas escalas de proximidade. João Seixas, José Carlos Mota, Fernando Nogueira, Mário Alves e Frederico Moura e Sá são os autores da proposta e explicaram à Smart Cities no que consistiria este “Plano Marshall urbano”.

Bases para a “nova agenda urbana” portuguesa

Proximidade, vizinhança e colaboração são conceitos chave na proposta destes especialistas, que buscaram inspiração em ideias já há muito debatidas e defendidas por Ebenezer Howard, Clarence Perry, Jane Jacobs ou Jan Gehl e que têm sido aprofundadas mais recentemente com projectos emblemáticos como as supermanzanas de Barcelona ou a cidade dos 15 minutos – cujo modelo foi proposto por Carlos Moreno e está actualmente a ser adoptado em Paris. À inspiração nestes exemplos, antigos e recentes, junta-se a preocupação da possível aderência a cada realidade distinta, já que, para a sua aplicação, é preciso “interpretar, de forma adequada, os múltiplos contextos urbanos e sociais existentes em Portugal”, tendo em conta não só as suas características diversas, mas também as suas limitações e riscos. Nesta receita, o envolvimento das comunidades locais na “reinterpretação e utilização” destes modelos é indispensável, consideram.

No sentido de criar uma “visão de base territorial que coloque as cidades no centro da sua actuação, pressupondo investimentos de carácter mais estruturante e geradores de efeitos multiplicadores”, a proposta dos cinco investigadores assenta em quatro eixos – Filosofia; Planeamento e Ordenamento do Território; Programas de investimento; e Modelos de Governação – e inclui ainda recomendações para dois elementos sectoriais relevantes – mobilidade sustentável e habitação e edificado.

1. Filosofia

Criação de um programa estratégico urbano, inspirado no modelo cidade dos 15 minutos, para implementação nas diversas zonas urbanas do país. Nessa estratégia, devem incluir-se a dinamização das respostas colectivas de proximidade, assim como das economias e empreendedorismo locais, o reforço das redes e laços de proximidade e de vizinhança, a promoção da mobilidade sustentável, a qualificação e valorização do espaço público e ainda a criação de um stock de habitação acessível em cada bairro.

2. Planeamento e Ordenamento do Território

Definição de uma tipologia de bairros e espaços urbanos nas quais seja possível identificar as características diversas dos diferentes territórios urbanos. Conhecer as realidades nestas escalas será essencial para adequar as propostas e a sua implementação. Ao mesmo tempo, são necessários estudos de ordenamento territorial que “enquadrem as propostas de intervenção e equacionem a densificação sustentável e multifuncional dos espaços urbanos construídos”. Neste caso, a prioridade de intervenção deverá ser dada a áreas que tenham já uma elevada acessibilidade em transporte público, favorecendo a mistura funcional.

3. Investimento urbano

Definição de um Programa de Investimentos Urbanos de proximidade, no sentido de promover a utilização multivariada de equipamentos urbanos, como escolas, bibliotecas ou pavilhões desportivos, incluindo em períodos fora do horário normal de funcionamento. Em cada bairro, deverão ser criados centro cívicos de base sociocultural e empresarial, no sentido de se criar, assim, uma rede de laboratórios cívicos urbanos, nos quais as comunidades possam criar saber e conhecimento e também experimentar soluções. Este programa de investimento deverá também visar a promoção de espaços públicos de elevada qualidade e a melhoria das infraestruturas existentes, o que ajudará na valorização dos bairros e dará suporte a modelos de mobilidade urbana mais sustentáveis. A par desta dinâmica, instituições públicas e privadas e a sociedade civil devem ser apoiadas na criação de parcerias de bairro, estimulando o sentido de vizinhança e de solidariedade através da própria co-criação e co-gestão de políticas e de programas.

4. Modelos de Governação

Os programas propostos devem ser integrados numa estratégia nacional, que se desdobre nos níveis regional, intermunicipal e municipal, e que esteja em linha com as principais directrizes europeias. Para que estas funcionem, importa promover uma coordenação política e técnica eficiente, propondo-se uma estrutura nacional própria que defina princípios e estratégias globais nesta matéria, zelando pela sua implementação, acompanhamento e avaliação. Esta Comissão seria composta por entidades dos poderes central e autárquico, assim como entidades independentes da sociedade civil e especialistas em matérias urbanas, e trabalharia em estreita articulação com as estruturas mais locais.

Como promover a mobilidade sustentável?

• Mudar a cultura de mobilidade e promover a mobilidade activa, apostando, por exemplo, em iniciativas educacionais e motivacionais que incentivo ao uso da bicicleta ou ao andar a pé junto das escolas e empresas;

• Implementar medidas de acalmia de tráfego, zonas 30 e de coexistência;

• Reduzir a presença do automóvel nos centros urbanos, aumentando a salubridade e saúde pública destes locais;

• Alargar e melhorar passeios, espaços e percursos pedonais e implementar infraestruturas cicláveis, redistribuindo o espaço viário nas artérias urbanas e interurbanas;

• Identificar e mobilizar territórios abandonados e vazios urbanos, colocando-os à disponibilidade, mesmo que temporária, da gestão colaborativa dos bairros e das actividades dos laboratórios cívicos.

Paris © Jerome LABOUYRIE /Shutterstock

Porquê as cidades?

A pandemia veio travar um período de paulatina recuperação económica do país e os seus efeitos de uma nova e profunda crise, também social, já se fazem sentir. No entanto, antes da chegada da Covid-19, o momento era já de “profundas mudanças nos paradigmas tecnológicos e económicos”, pelo que, com a crise pandémica, os “riscos de desfasamento político-sociais” foram acentuados.

Na visão destes especialistas, ao se canalizarem os investimentos sustentados no PRR por lógicas de carácter urbano, será possível desenvolver respostas mais transversais, coesas e ecológicas aos inúmeros desafios que hoje se colocam. E porquê intervir com ópticas urbanas? Primeiramente, porque é nas cidades que se travam os grandes desafios deste século: o desafio ecológico e o desafio da coesão social. Depois, porque é também nas áreas urbanas que se concentra a maior parte da população e qualquer mudança que aqui tenha lugar, seja tecnológica, seja social e cultural, reforça o papel da urbanidade enquanto “definidora das decisões de localização, garantia da coesão social e da maturação da cidadania”.

Assim, e no que poderia ser uma lógica de aplicação do PRR a uma “nova agenda urbana”, os especialistas defendem investimentos que sustenham “novas perspectivas de habitat e de vida urbana, de criação de valor, de reforço das comunidades, nos mais diversos territórios urbanos e periurbanos do país, bem como novas conceptualizações, instrumentos e práticas de planeamento urbano e ordenamento do território”. Para além disso, sublinham que a “gestão inteligente das cidades se desenvolve de forma pró-activa, com um urbanismo ecológico e humanizado”, capaz de repensar os espaços e tempos da sociedade e territórios contemporâneos, e “instigador de investimentos públicos e privados de proximidade e de largo espectro”.

Com base nestes pressupostos, será possível alcançar cidades inovadoras e resilientes, sendo que, lembram, as que o são verdadeiramente “terão de ter uma densidade sustentável, uma diversidade funcional e um espaço público de excelência”.

Para os autores, aplicar esta abordagem em Portugal, através do PRR, teria “um impacto profundo” que seria sentido na sociedade, economia, ecologia e, claro, nos territórios. Isto porque, com estas ideias, “pretende-se defender uma transformação mais ordenada do território, ou seja, alcançar uma maior qualidade de vida colectiva com, em simultâneo, uma redução de custos (energéticos, ambientais, sociais, económicos e financeiros) e, a médio/longo prazo, um ganho e uma redistribuição consolidada de capitais e de valores”.

Superblocks em Barcelona © Ajuntament de Barcelona.

Assegurar o direito à habitação, actuar no edificado

• Articular a proposta com uma política de habitação a preços e rendas acessíveis. Para além de um programa de dinamização do parque habitacional com rendas acessíveis, devem ser alocadas verbas às necessidades atuais e perspetivas futuras de territórios urbanos com stock de habitação a preços acessíveis. A par da habitação pública, com vista a ampliar este stock, devem ser implementados programas de incentivo e de garantias contratuais com proprietários e investidores privados;

• Mapear os edifícios públicos não utilizados, a nível nacional, repensando potenciais usos ou funções que sirvam as necessidades das comunidades;

• Implementar uma política fiscal de penalização relativamente a fogos e edificado devoluto nas malhas urbanas, em particular, nas zonas densas e com boa acessibilidade em transporte público.

Exemplos inspiradores

Programa Mini Hollands em Londres © BradleyStearn / Shutterstock.com

Menos carros, mais pessoas | Várias cidades do Reino Unido adotaram o programa Low Traffic Neighborhoods, uma iniciativa que visa reduzir o tráfego de passagem através da implementação de elementos dissuasores e barreiras aos veículos motorizados, tais como floreiras, parklets e outros locais de estada. Estes bairros de tráfego reduzido fazem também parte do programa Mini-Hollands, que pretendia transformar os bairros de Londres em hubs cicláveis, com inspiração no modelo dos Países Baixos.

Fazer da escola o centro do bairro | No 18e arrondissement de Paris, as escolas passaram a abrir aos fins-de-semana, transformando-se num espaço de convívio e de partilhas sociais, culturais e intergeracionais. Criado pela associação Home Sweet Mômes com vista a responder “aos problemas sociais do bairro”, o projecto promove a criação de laços de vizinhança e fomenta o desenvolvimento e emancipação dos mais jovens.

Experimentar soluções em laboratórios cívicos | Já existe, pelo menos, um em Portugal e pode ser encontrado em Aveiro, no Bairro de Santiago. Inspirado pelo Experimenta Distrito de Madrid, o Lab Civ Santiago nasceu de um grupo de profissionais de diversas áreas com a missão “de promover formas colaborativas de capacitação e resolução de problemas colectivos das comunidades, num clima de permanente aprendizagem”.

Por toda a Europa, é possível encontrar várias experiências deste tipo que surgem como resposta à necessidade de “aprofundar a democracia participativa e de envolver as comunidades locais na construção de soluções experimentais para alguns problemas do seu quotidiano”. O objectivo é o de “prototipar soluções para problemas urbanos através da experimentação orientada por mediadores, num quadro de envolvimento de cidadãos e de actores locais, para posterior replicação em resultado das aprendizagens”, explicam os autores.

PERGUNTAS E RESPOSTAS SOBRE A “NOVA AGENDA URBANA” PORTUGUESA

Estas propostas podem ser aplicadas às diversas realidades do país – desde as principais cidades aos municípios mais rurais?

As propostas que se sugerem devem ter em conta cada contexto local e respectivas necessidades específicas. Por exemplo, o conceito da cidade de 15 minutos é, numa primeira fase, mais ajustado à realidade dos territórios mais centrais, com maior densidade, multifuncionalidade e condições superiores de acessibilidade não motorizada. Não são receitas universais, mas pistas de solução que devem ajudar a inspirar novas políticas urbanas, novos diálogos institucionais e novas práticas participativas. Contudo, as propostas apresentadas suscitam um pensamento diferente, centrado na vivência do lugar, com consequências sobre o balanço entre o que existe e é acessível na rede urbana e de aglomerados e o que deve ou pode ser “servido” nos lugares.

Ao intervir na escala do bairro, como se garante a uniformidade da estratégia e evita o efeito “manta de retalhos”?

A intervenção de proximidade, à escala do bairro, impõe uma visão complementar à escala da cidade e mesmo à escala dos macro-sistemas regionais e metropolitanos, para prevenir intervenções fragmentadas e desarticuladas. Deve haver um cuidado com a forma como se mobilizam e combinam os diferentes tipos de instrumentos – políticas, planos e projectos – e como articulam os esforços das comunidades (bottom-up) com os dos decisores (top-down). A mudança é de mobilização social e de acupuntura – escola-a-escola, bairro-a-bairro, etc. – porque a grande alteração a promover é, em grande medida, comportamental e resulta se for colectiva e extensiva, mas a cidade, como um todo, necessita de reformas estruturais complementares (equipamentos públicos, transportes colectivos, etc).

Qual a importância da habitação acessível para o sucesso do modelo cidade dos 15 minutos?

É de uma importância vital. O ponto focal da vida urbana – ou melhor, da vida humana –, para todo e qualquer cidadão, é a sua habitação. Estas propostas devem ser directamente conjugadas com políticas socias de habitação activas, quer perante os diferentes tipos de necessidades, quer perante as diferentes tipologias e realidades urbanas. Não é apenas necessário propor um programa de reforço do parque habitacional social e de algum stock a rendas acessíveis, como referido no presente PRR. É fundamental criar efectivas condições e recursos adequados para as necessidades presentes e as perspectivas futuras dos territórios urbanos, como está a suceder em diversas cidades europeias. Um stock provisionado, antes de tudo, através do Estado, mas também através de programas de incentivo e de garantias contratuais com proprietários e investidores privados, o que permitirá ampliar consideravelmente o stock de habitação a preços acessíveis, bem como a tão necessária estabilidade nos mercados residenciais.

Há o risco de estas propostas, se implementadas selectivamente, causarem o efeito de gentrificação?

Uma das críticas que se faz ao modelo da cidade de 15 minutos é a de este poder ser gerador de efeitos de segregação ou mesmo de gentrificação, não se assegurando assim que todos possam beneficiar dos efeitos de proximidade. Daí a necessidade de se incluírem as ópticas de habitação acessível no centro destas equações, a par das perspectivas de qualificação urbana de muitas zonas ainda em necessidade, nomeadamente nas periferias, dotando-as de valências de proximidade. Esta é uma conjugação que vai exigir visões verdadeiramente estratégicas, transversais e de tempos longos.

Dados e novas tecnologias: que papel podem ter aliadas à vossa proposta?

Embora não se saiba ainda o efectivo impacto do teletrabalho no futuro das cidades, determinadas tendências podem estar em curso. Há quem defenda que uma parte do trabalho passará a ser feito à distância e que isso terá dois efeitos: libertará algum do espaço hoje ocupado pelos serviços para outras funções e suscitará novos espaços de trabalho em lugares próximos das residências. Se este efeito vier a ser considerável, deverá ser planeado antecipadamente para prevenir os efeitos perversos e para potenciar efeitos virtuosos – nomeadamente no reforço das dimensões habitacional e também multi-funcional.

As tecnologias serão seguramente muito úteis para a monitorização, gestão e avaliação da evolução dos territórios e das suas tendências. Como, por exemplo, na visão e gestão agregadas das procuras e das disponibilidades, bem como na partilha de recursos. Nas áreas dos transportes, em carpooling, viagens em grupo, a pé, para a escola. A disponibilidade de dados em open access permitirá uma percepção mais imediata (colectiva e partilhada) do que está a suceder e a evoluir, ao nível da alteração dos comportamentos, dos usos funcionais do solo e do território, das redes comunitárias e da própria participação cívica e cooperativa.

Este artigo foi originalmente publicado na edição nº 31 da Smart Cities – Abril/Maio/Junho 2021, aqui com as devidas adaptações.