Da procura de origens alternativas à redução do desperdício, há na região ações em marcha para tornar o futuro mais sustentável. E a inovação tecnológica joga um papel importante, como provam a dessalinizadora que se quer construir em Albufeira, o tratamento de efluente que ganha terreno ou a monitorização de condutas que está a ser implementada.
O Algarve enfrenta a pior seca desde que há registos e situação é de tal forma “crítica” que o Governo não descarta a possibilidade de declarar a situação de calamidade, se as medidas de contenção que estão em curso não se revelarem suficientes para assegurarem o abastecimento às populações. Na resolução do Conselho de Ministros publicada no passado dia 20 de fevereiro, diz, ainda, que é necessário implementar medidas que permitam “aumentar a oferta de água”. Já em janeiro, o ex-ministro do Ambiente e da Ação Climática, Duarte Cordeiro, anunciara a redução do consumo de água na ordem dos 15% no setor urbano (habitantes e turismo), 18% no golfe e 25% na agricultura, pois, se não fosse colocado um travão ao consumo, “chegaríamos ao final do ano sem água para o abastecimento público”.
Nos últimos 20 anos, o clima perdeu entre 20 a 30% da precipitação média e a temperatura média atmosférica atingiu um aumento de 1,5 graus e a socio económica, muito dependente do turismo, transformaram o Algarve numa zona particularmente vulnerável, explica Manuela Moreira da Silva, docente da Universidade do Algarve (UAlg). É preciso procurar fontes alternativas e reduzir o desperdício para combater os efeitos das alterações climáticas que se sentem naquele território com grande expressão, olhando para a água “de forma integrada e não como um conflito entre os diversos usos”.
Se o Algarve conseguir definir uma estratégia sustentável para a gestão da água, “pode funcionar como um exemplo de uma região de clima mediterrânico onde a principal atividade económica é o turismo e servir de referência ou farol para outras regiões com características similares”, acredita a também investigadora no CEiiA – Centro de Engenharia e Desenvolvimento.
A primeira origem alternativa é, tendo em conta que região é litoral, a captação de água do mar. A dessalinizadora anunciada para Albufeira deverá começar a produzir, em 2026, 16 milhões de metros cúbicos (m3) de água tratada para consumo humano, reforçada numa segunda fase para os 24 milhões cúbicos. Assim “conseguimos aliviar a pressão sobre os rios e os aquíferos da extração de água para consumo humano e outras atividades, como a agricultura, podem ficar com mais alguma água”, considera Manuela Moreira da Silva.
Há empreendimentos hoteleiros que já olharam para as vantagens desta fonte e aproveitam a água do mar. É o caso Vila Vita Parc, que desde 2015 recorre a uma dessalinizadora. Capta do mar 400 m3 de água por dia, o que lhe permite regar todos os espaços verdes (60% dos 23 hectares são espaço verde) e tornar as 22 piscinas e três lagos autossuficientes na época baixa (outubro/abril).
Foi um investimento de “mais de meio milhão de euros que em menos de cinco anos ficou pago” e que permitiu à unidade distinguir-se pela aposta na sustentabilidade, conta o diretor de Qualidade, André Matos, sublinhando a “responsabilidade e o dever empresarial, moral e social” que os empreendimentos devem ter perante o elevado consumo de recursos.
Em 2025 gostaria de avançar com a expansão da captação (nova bomba, mais tanques, novo sistema de osmose inversa), para chegar aos 700 m3/dia. Isto permitirá que seja autossuficiente na água que não é para consumo humano também na época alta. O objetivo, adianta ainda o responsável, é que no futuro a água possa ser usada também para consumo humano, sendo que para isso terão de fazer outro tipo de mineralização e controlo do ponto de vista físico-químico.
A estratégia do Vila Vita Parc não fica por aqui. Têm vindo, entre outras coisas, a fazer a renovação de plantas por espécies que necessitam de menos água, a substituir algumas tubagens e introduzir sistemas inteligentes e sondas para controlar fugas e avaliar a real necessidade de rega tendo em conta o tempo. Nas piscinas já existe um sistema inteligente de injeção automático de cloro e pH, o que reduz a necessidade de injeções de água nova para manter a qualidade.
Reutilizar efluentes
Nem toda a água que usamos tem de ser potável. Os efluentes que saem das Estações de Tratamento de Águas Residuais (ETAR) devem ser aproveitados para outros usos que não o consumo humano, como a rega de campos de golfe. E há quem esteja a trabalhar para retirar poluentes emergentes e tornar o uso desta água ainda mais seguro, antecipando diretivas europeias que se avizinham. (ler caixa)
Atualmente, o grupo Águas de Portugal dispõe de “195 ETAR em todo o país que produzem Água para Reutilização (ApR) para usos internos e externos compatíveis”. A Águas do Algarve, concretamente, tem “16 ETAR com produção de ApR, atingindo um volume que já representa 11% do efluente tratado pela empresa”. Estão em curso, adianta a empresa, investimentos que permitem incrementar a capacidade para atingir uma taxa de reutilização “de 20% no mínimo”.
Esta água é aproveitada para “lavagens e preparação de reagentes e rega de espaços verdes” nas próprias ETAR e também para usos externos. Serve para regar “campos de golfe, espaços verdes e jardins públicos, sendo ainda adequada para rega agrícola e para suporte de ecossistemas naturais”.
As empresas do grupo Águas de Portugal, gestoras de sistemas municipais de saneamento, consideram que esta é uma “importante fonte alternativa de água para usos não potáveis como a rega de campos de golfe, de jardins, lavagens de ruas e equipamentos ou para usos agrícolas”. Na região do Algarve, especifica, “até final de 2025, no âmbito do Plano de Eficiência Hídrica do Algarve, financiado a 100% pelo Programa de Recuperação e Resiliência (PRR), o investimento global para a produção de ApR ascende a 23 milhões de euros, num volume de 8 hm3/ano”.
No Algarve, onde existem cerca de 40 campos de golfe (cada um com 30 a 35 hectares regados, em média), há “dois campos que usam na totalidade (ou quase) água residual tratada” proveniente de ETAR, conta Joel Nunes, da Associação Portuguesa de Greenkeepers. Outros dois recebem em pequena quantidade, devido a problemas de intrusão salina nas estações de tratamento. Há ainda alguns que gostariam de receber, mas não conseguem. “Todos gostavam de ter, mas as ETAR não foram construídas a pensar nisso, faltam condutas” que levem esta água para os lugares onde pode ser útil.
Entretanto, muitos destes campos vão mudando para relva que necessita de menos rega. Um estudo feito em parceria com a Universidade do Algarve (2016-2021) revelou que estes campos no Algarve são constituídos por 2/3 com relvas de estação quente (que têm menos 15 a 20% de necessidade de água) e 1/3 com relvas de estação fresca. Apenas “6,4% da água do Algarve”, afiança Joel Nunes, é consumida pelos campos de golfe.
Armazenar chuva
Para Manuela Moreira da Silva é, também, “fundamental preparar a região, nomeadamente as zonas urbanas, para absorverem e armazenarem a água das chuvas”, para depois poder ser usada para lavagem de ruas, rega de espaços verdes e outros usos não potáveis. Mas segundo António Pina, líder da comunidade intermunicipal AMAL, nos municípios não existem, neste momento, estruturas para isso.
Há ainda outros caminhos a explorar para se reservar a água potável apenas para os usos em que tem de ser mesmo potável e encontrar, com criatividade, soluções para as outras situações. A água que as piscinas habitualmente têm de descartar para manter a qualidade (são 3 a 5% do seu volume, diariamente), pode ser usada para lavagem de ruas, contentores, viaturas e, se retirado o cloro, para regar espaços verdes. Atualmente há dois municípios (Lagos e São Brás de Alportel) algarvios que aproveitam a água de lavagem dos filtros das piscinas municipais para limpar contentores e ruas. Loulé conta começar em 2025.
Mas há mais. “Uma piscina não tem de ser água doce, uma piscina exterior de um hotel pode usar água salobra”, exemplifica a especialista da UAlg, referindo que há quem esteja, em São Bras Alportel, Cascais e Guimarães, a recorrer a esta possibilidade.
Outras ideias passam por reduzir as perdas na distribuição e melhorar os desperdícios nos edifícios, aproveitando medidas tecnológicas como contadores para identificar perdas, tecnologia digital que permite gerir dados, modelar e gerir o ciclo da água de forma mais preventiva.
Reparar condutas
António Pina, presidente da comunidade intermunicipal AMAL, garante que a região já se está a preparar para esta crise hídrica e recusa alarmismos. No âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), adianta, existem medidas, no valor de 43,9 milhões de euros, para recuperar 125 quilómetros de redes de abastecimento até 2026. A ideia é uma “correção cirúrgica e com critério” das piores zonas, explica António Pina. Isto levará, estima a AMAL, a uma redução de dois hectómetros de m3 na procura de água nos sistemas naturais.
A maioria destas obras ainda não avançou no terreno, mas a intenção é que visem não só a requalificação das condutas, mas também a instalação de zonas de medição e controlo de fugas e a criação de zonas de pressão controlada.
Manuela Moreira da Silva garante que a obra é importante. Os 16 municípios algarvios têm aglomerados habitacionais dispersos, a extensão de condutas é grande e tem perdas elevadas. “Calculamos que, em média, a água distribuída para consumo humano tenha perdas que rondam os 30% na região do Algarve”, diz a especialista.
O presidente da AMAL garante, ainda, que a região tem outras medidas em curso, que passam pelo reaproveitamento de água para limpezas urbanas, controlo da rega de espaços verdes, entre outras. Este mês, as torneiras já têm menos pressão. Em março, as faturas poderão subir entre 15 a 50% para forçar a poupança.
Remover poluentes emergentes das ETAR
Há investigadores a tentar remover pesticidas, fármacos e microplásticos das águas das Estações de Tratamento de Águas Residuais (ETAR), pese embora a legislação ainda não obrigue a isso. A ideia é permitir a sua reutilização com mais segurança e em usos mais diversificados.
“Estes poluentes são emergentes e ainda não estão incluídos na legislação, mas a ciência foi demonstrando que são maléficos para o ambiente. Estão geralmente em quantidades muito pequeninas, mas causam efeitos”, explica Cristina Delerue Matos, investigadora do Instituto Superior de Engenharia do Porto (ISEP) e coordenadora do projeto BioReset. ”Os pesticidas já estão incluídos na diretiva, os fármacos estão agora em discussão, os microplásticos estão por todo o lado e no futuro devem aparecer na legislação”, especifica.
Estes poluentes, continua Cristina Deleure Matos, não aparecem na água devido a acidentes ambientais, vão entrando “todos os dias”. Alguns remédios, por exemplo, “podem transformar-se em produtos mais tóxicos que o próprio fármaco”. E há estudos que provam que provocam efeitos nos organismos.
Os investigadores do BioReset já analisaram efluentes tratados e viram que muitos destes poluentes aparecem efetivamente naquela água. Atualmente estão a desenvolver tecnologias de tratamento terciárias, ou seja, para acrescentar às que já existem nas ETAR, para eliminar estes poluentes emergentes. “Temos de fazer propostas que não prejudiquem ainda mais o ambiente e sejam económicas, para haver capacidade de serem implementadas”, sublinha a investigadora do ISEP.
O projeto, que inclui estudos à escala piloto e real, deverá estar concluído em 2025. Entre os novos usos que podem ser dados a estas águas estão a rega de campos agrícolas e desportivos, limpezas urbanas, lavagem de automóveis e combate a incêndios.
Este artigo foi originalmente publicado na edição nº 42 da Smart Cities – Janeiro/Fevereiro/Março 2024, aqui com as devidas adaptações.