A equipa portuguesa da Hitachi Vantara, sucessora da Hitachi Consulting em Portugal, está a trabalhar num projecto do governo britânico que quer preparar a rede de energia para a chegada em força dos veículos eléctricos. Jorge Antunes é director desta empresa para a região EMEA, e, no que toca às cidades inteligentes, mostra-se confiante de que o caminho é fazer da tecnologia “um enabler para algo positivo na vida das pessoas”.

Qual tem sido a participação da Hitachi Vantara em projectos smart cities?

O projecto mais relevante que temos nesta área é o Optimise Prime, criado pelo governo do Reino Unido para conseguir entender as necessidades de energia para fazer face ao crescimento de veículos eléctricos (VE) que se está a verificar. Por enquanto, verificamos que estes são para utilização particular, mas o grande tema acontece quando essa utilização passar dar-se nos veículos comerciais.

O que pode acontecer aí?

Vamos ter uma sobrecarga na utilização da rede para a qual ninguém está preparado. Esta é uma experiência única no mundo que está a ser feita em Londres. A nossa equipa em Portugal criou todo o sistema que faz a integração dos dados de carregamento e dos VE que estão a ser utilizados e também a plataforma que faz a distribuição dos dados e toda a componente de insights para isto funcionar. É uma plataforma Internet of Things, que, por sua vez, tem capacidade para gerar informação para ajudar à criação de novas tarifas e, principalmente, para ajudar na gestão da rede de distribuição eléctrica.

Como é que esta solução vai resolver a sobrecarga da rede?

Se compreendermos os padrões de consumo de energia, conseguimos estruturar a rede com vista a dar-lhes resposta. Nesta primeira fase do projecto, estamos a adquirir a informação para saber quais as necessidades de consumo e, assim, extrapolar as taxas de crescimento e, depois, as necessidades da infra-estrutura, que tem de ser criada para suportar este crescimento. Até hoje, este conhecimento não existe. É um ponto fulcral: passamos para os VE, mas temos de ter infra-estrutura para os alimentar. A infra-estrutura portuguesa não é das mais preocupantes, mas, quando olhamos para outras muito antigas, como a do Reino Unido, há dificuldades em garantir que, em volume, quantidade e potência, se consiga alimentar toda a infra-estrutura. Para além disso, passa a ser possível definir tarifas específicas para aqueles modelos de consumo e, com isso, consegue optimizar-se o mercado.

Dizer que se podem carregar as carrinhas à noite não tem grande ciência, mas, se soubermos que as carrinhas precisam de ser carregadas mais do que uma vez por dia e que o horário entre x e y é o de mais baixo consumo e, por isso, devemos optimizar este slot, então, podemos introduzir estes modelos dentro da rede. Com base no conhecimento que temos dos sistemas, queremos conseguir, com alguns modelos de inteligência artificial, sugerir possíveis curvas de consumo futuras. Quem está a gerir uma infra-estrutura vai utilizar esta informação como um grande input, tudo isto vai formar as decisões de investimento e de gestão de rede.

Precisamos sempre de dados?

É fundamental, caso contrário são meras estimativas sem sentido. Este projecto prevê a partilha do dataset das conclusões para que a comunidade o use e possa acrescentar valor com outras integrações e tecnologias. Não sendo um projecto fechado, conseguimos criar impacto na sociedade e partilhar também os resultados.

Como é que Portugal pode beneficiar do projecto?

Portugal vai poder usar esta informação para sustentar algumas das decisões que têm de se tomar. As conclusões vão dar um valor acrescentado importante. Se, depois, se adopta um modelo semelhante para estar constantemente a monitorizar toda a infra-estrutura para criar modelos de decisão, é ainda prematuro dizer. Portugal está muito avançado na gestão da infra-estrutura eléctrica, não somos um país com problemas nesse aspecto. É um processo que funciona muito bem, mas, quando introduzimos os VE nesta equação e com taxas de crescimento mais agressivas, tudo isto complica muito. E podemos utilizar o output deste projecto para ajudar nessas decisões.

“Pelo que tenho visto, os projectos smart cities têm sido conduzidos para criar vantagens para as empresas que estão associadas à gestão interna da infra-estrutura da cidade e raramente se conseguiu transformar estes projectos em vantagens para o cidadão.”

Quando olhamos para a mobilidade em Portugal, haverá um foco maior em temas como a mobilidade eléctrica em detrimento de outros?

Diria que actualmente não existe um eixo de investimento único. Está a investir-se muito no transporte ferroviário, com a aquisição de novos comboios, eventualmente na linha de alta velocidade (que vai ser um tema muito importante para o país). A mobilidade eléctrica é uma das outras vertentes, mas quero acreditar que, no futuro, a interconexão vai ser mais explorada do que actualmente, porque há muito espaço para trabalhar toda essa zona. Se pusermos a tecnologia a trabalhar a nosso favor, vamos impactar na vida das pessoas e ser verdadeiramente smart. Ser uma smart city não se trata de, por exemplo, ter uma melhor taxa de distribuição de água dentro da cidade – isso é gestão de infra-estruturas.

O que tem falhado nas iniciativas smart cities?

Pelo que tenho visto, os projectos smart cities têm sido conduzidos para criar vantagens para as empresas que estão associadas à gestão interna da infra-estrutura da cidade e raramente se conseguiu transformar estes projectos em vantagens para o cidadão.

O cidadão não é suficientemente tido em conta?

Quando surgiu, o objectivo da smart city era criar um modelo de vida melhor para os cidadãos. Penso que, por vezes, perdemos um pouco essa noção. Não me recordo de nenhum projecto smart city em Portugal que tenha na base o cidadão… Isto faz-me lembrar do conceito de Sociedade 5.0, em cuja definição, formulada, pela primeira vez, no Japão, a Hitachi teve uma grande participação. Até à Sociedade 4.0, tivemos uma série de evoluções, sendo esta completamente focada na tecnologia – a hiperconectividade, as novas tecnologias, o ter tudo disponível na mão, no momento, nas funções mobile, etc. A Sociedade 5.0 é totalmente focada na pessoa e isto muda muito o paradigma.

Em que sentido?

Significa converter toda a tecnologia que temos em alguma coisa que, de facto, ajude as pessoas, caso contrário essa tecnologia vai desaparecer. Isto prende-se com um grande driver que está por detrás da Hitachi, o powering good, que tem a ver com usar a nossa tecnologia como enabler de qualquer coisa positiva para as pessoas.

Nesta abordagem à tecnologia, existem muitas diferenças entre as empresas japonesas e as ocidentais?

Sim, são culturas muito diferente em muitos aspectos. No que se refere à utilização de tecnologia nas cidades, estão muito mais avançados. Por defeito, são muito mais tecnológicos do que nós. Em Tóquio, quando entramos num comboio, sabemos, através de determinada aplicação, que vamos chegar ao destino exactamente à hora prevista, porque tudo – metro, autocarro, etc. – funciona para esse objectivo. Eles conseguiram converter esta hiperconectividade em algo bastante inteligente para as pessoas utilizarem e que impacta verdadeiramente nas suas vidas. Em Portugal, estamos a discutir conceitos como a intermodalidade! Embora tenhamos pessoas brilhantes nessas áreas, estamos a anos-luz. Isto não é uma crítica, mas, enquanto não integrarmos tudo, não vamos conseguir criar impacto na vida das pessoas.

A pandemia é uma nova variável. Na Hitachi Vantara, têm desenvolvido soluções para este momento particular?

Absolutamente, estamos a implementar projectos em Londres, nos quais, através da tecnologia LIDAR, conseguimos mapear as zonas onde se encontram as pessoas e entender os seus movimentos, por exemplo, dentro de uma estação e, assim, determinar quais as possíveis taxas de ocupação de uma carruagem. Se pensar num sistema integrado, é possível calcular as taxas de ocupação de um comboio dentro de uma linha e dizer às pessoas qual a lotação ou a carruagem mais adequada. E conseguimos entrar com variáveis ainda mais interessantes, como o tempo de permanência das pessoas dentro da carruagem, o que é muito importante para diminuir o risco de contágio.

Há outros exemplos que estamos a realizar que são portais de desinfecção, que nebulizam as pessoas, antes de embarcar, com uma substância que teoricamente reduz os efeitos de transmissão pelo contacto. Temos também os tradicionais sensores de temperatura, sendo que há uma grande polémica a nível europeu nessa matéria, pois a maior parte dos sensores de temperatura não tem certificação para utilização médica e só os que têm é que podem ser usados para medir a temperatura a alguém. Em Portugal, ainda não se fala nisso, mas no Reino Unido já saiu legislação nesse sentido e os sensores que foram instalados estão a ser mandados fora, pois não servem. É o mercado a auto-regular-se, o que é normal.

Nesses projectos, há questões com os dados e privacidade?

Tudo o que fazemos hoje está relacionado com dados e privacidade e não podemos fazer outra coisa se não seguir as regras. Na maior parte das vezes, utilizamos tecnologia que faz a anonimização das pessoas e tentamos sempre usar tecnologia que não permite a identificação. A LIDAR não consegue diferenciar as características de cada pessoa, isso chama-se privacy by default. Quando usamos imagens de CCTV, etc., utilizamos tecnologia que faz a anonimização dessas imagens.

Participaram recentemente num projecto com o Metro do Porto. No que consistiu?

O metro do Porto funciona num sistema aberto sem barreiras, o que gerava que pessoas usassem o sistema de forma fraudulenta. Havia a perspectiva de controlar isto. Ganhámos o concurso, que tinha como objectivo detectar a taxa de fraude e implementar mecanismos dissuasores dessa fraude. Com sensores LIDAR, instalados em determinada estação, conseguimos, sem identificar a pessoa, fazer o seu tracking no processo de entrada na estação e verificar se fazia ou não a validação do bilhete. É um projecto de muita inovação, até dentro da Hitachi, e que já está a ser implementado.

Qual a vossa estratégia a nível nacional?

Queremos crescer na área dos transportes, porque faz parte do DNA da Hitachi. Nós construímos comboios, e, portanto, estamos muito activos nesse mercado e queremos ser um player em Portugal. Sentimos que o mercado dos transportes está muito aberto a investimento nesta fase, também por causa dos investimentos do Governo, e estamos a apostar bastante [nele].