Desde a chegada em força da Covid-19, o ecossistema de inovação português não parou. À medida que os efeitos do novo coronavírus atingiam as diversas áreas da sociedade, os agentes uniram-se para criar, adaptar e reinventar soluções. Mesmo não havendo ainda fim à vista para a crise pandémica, uma coisa é certa: os portugueses estão à procura de uma saída.

A inovação sempre foi um factor de diferenciação dos territórios. Ao longo da História, a capacidade de criar, de resolver problemas, de enfrentar desafios e de estar na vanguarda foi sinónimo de avanço e resiliência das cidades, especialmente em momentos críticos, como os de hoje.

Como é que essa inovação acontece? A literatura sobre smart cities diz-nos que são precisos quatro elementos e é graças à dinâmica entre eles que se chega à inovação: governo, indústria, academia e sociedade civil. Nesta hélice quádrupla, não só se representa a lógica de criação do conhecimento científico mais convencional, como se lhe incorpora a componente da co-criação, da democracia e do envolvimento dos cidadãos na capacidade de resolução dos problemas e desafios urbanos. Quando este processo tem lugar, ninguém pode ficar de fora. Uma cidade só pode ser inteligente se incluir todos os stakeholders no seu processo de inovação, já que, na génese do conceito, estão a partilha de conhecimento e a colaboração de forma transversal na sociedade, escreve a especialista no tema Catarina Selada.

No que toca à inovação no geral, Portugal tem percorrido um longo caminho, com uma crescente dinâmica entre os sectores público e privado e as instituições de ensino e conhecimento científico. Os resultados estão à vista: em Junho, a Comissão Europeia colocou Portugal no grupo de países “fortemente inovadores”, a par da Alemanha, França e Áustria. O nosso país lidera em inovação de pequenas e médias empresas (PME) e obtém a 12ª posição geral no ranking European Innovation Scoreboard 2020.

Por sua vez e, provavelmente, por falta de prática, convocar a sociedade civil para este processo revela-se uma tarefa mais complexa. Ainda assim, o esforço dos municípios por envolver os cidadãos na criação de soluções tem crescido e os orçamentos participativos, cujo sucesso é crescente no nosso país, são exemplo de como as populações se envolvem, criam e propõem novas soluções para os problemas da sua comunidade.

A luta contra a pandemia de Covid-19 meses trouxe urgência ao processo de inovação e colocou o ecossistema português à prova, e não apenas em matéria de saúde. Os efeitos sentem-se de forma transversal nas comunidades, criando novos problemas e pondo a descoberto outros pré-existentes que urge resolver. De forma espontânea, a procura de respostas não tardou em fazer-se e é no seio deste ecossistema de inovação que muitas soluções tecnológicas e de cariz social surgem ou se reinventam. Empresas, start-ups, universidades, centros de investigação, municípios, associações, cidadãos – todos estão a dar, de alguma forma, um contributo para enfrentar o novo coronavírus.

Inovação tecnológica

No fim-de-semana que se seguiu à declaração do primeiro estado de emergência (13 de Março) em Portugal, um grupo de fundadores de start-ups nacionais começava a magicar como poderia contribuir para ajudar os portugueses a enfrentar a pandemia. De forma orgânica, nascia, assim, o movimento #tech4COVID19, que rapidamente juntou mais de 800 pessoas, cerca de 120 entidades tecnológicas, e tinha, de imediato, 12 projectos em andamento.

Entretanto, já se perdeu a conta à quantidade de entidades e voluntários envolvidos e, em Agosto, eram 41 os projectos activos, alguns com impactos muito significativos. O Student Keep é um deles. A iniciativa consiste na angariação de equipamento informático e posterior doação a alunos, do ensino básico ao secundário, que não têm acesso a um computador. Em pleno Verão, o projecto tinha entregado 1591 equipamentos e estava já a ser replicado em Cabo Verde.

Passados meses da criação do #tech4COVID19, o balanço é “muito positivo”, avalia João Figueirinhas da Costa, CEO e fundador da start-up Humaniaks e porta-voz do movimento. Entre iniciativas de apoio a profissionais de saúde e aquisição de material hospitalar e o desenvolvimento de soluções nas áreas da saúde, educação, negócios e lazer, o #tech4COVID19 mostrou-se imparável, despertando o interesse da comunidade em geral. “As empresas tecnológicas e as start-ups estiveram na base do movimento, mas houve também outras empresas a contribuir e a participar, de múltiplas formas, que através da cedência de serviços, de horas de trabalho dos seus colaboradores para que se dedicassem a projectos do movimento, entre outras formas.

O sector público foi também importante, pois quer através de parcerias, ou de uma maior proximidade, recebemos os seus inputs para assegurar que os projectos teriam impacto ou relevância”, ilustra. Para este empreendedor, o sucesso do #tech4COVID19 deveu-se a alguns factores determinantes, começando pelo facto de surgir no contexto de agentes de base tecnológica. “Isso permitiu-nos unir, numa fase muito inicial do movimento, pessoas e pessoas e talento já habituados a processos de co-criação, de trabalho remoto e distribuído, de colaboração com muitos stakeholders, e também habituados a usarem ferramentas digitais, essenciais no desenvolvimento dos projectos”. Não menos importantes foram “a boa vontade, a disponibilidade e o interesse em participar e tentar ter um impacto positivo na comunidade, quer fossem empresas, quer fossem voluntários”.

Inovação social

“A 12 de Março parámos e decidimos estar 15 dias a experimentar coisas”. Foi desta forma que o IES – Social Business School (SBS) começou a quarentena, mas rapidamente o ritmo acelerou e várias iniciativas surgiram na esfera digital: conversas com especialistas para compreender tendências, um programa para pessoas que aproveitavam o momento para reflectir sobre a sua carreira ou mesmo mudar de vida, acções de apoio a municípios parceiros na transição digital, capacitação dos 15 finalistas do concurso Social Innovation Tournament do Banco Europeu de Investimento (que estava para acontecer em Lisboa), o desenvolvimento um kit de sobrevivência para start-ups em tempo de Covid-19, entre outros. “[Afinal] Não temos estado parados”, graceja Carlos Azevedo, CEO desta escola de empreendedorismo de impacto e inovação social.

A crise pandémica expôs algumas necessidades às quais a inovação social está habituada a dar resposta, pelo que a dinâmica não surpreende. No entanto, as restrições impostas pelo novo coronavírus obrigaram a que tudo acontecesse de forma diferente. “Estas pessoas tentam perceber como podem continuar a criar impacto tendo em conta as limitações, e este é um driver muito importante para dar a volta. E conseguem fazê-lo, o que tem muito a ver com o compromisso que têm com as comunidades, os problemas que querem resolver – a solução torna-se instrumental”, explica. Como? É preciso reinventar, ajustar a solução às circunstâncias, e, num contexto de distância física, a digitalização é chave. “Aqueles que são bem-sucedidos na digitalização são os que não transportam a experiência física para o digital de forma linear, mas conseguem construir um novo formato. Os princípios estão lá, mas a experiência não pode ser igual pois não funciona”.

Ao longo destes meses, a mudança foi acelerada, mas há histórias “extraordinárias”, conta este mentor. É o caso do Girl Move, um projecto que capacita jovens mulheres para participarem de forma activa na sociedade e que actua em Portugal e Moçambique. “Digitalizaram a experiência e, para Moçambique, como a internet é frágil, converteram o dinheiro que era antes usado em viagens em pacotes de telecomunicações para que as jovens pudessem aceder aos programas”. Também o SPEAK, que faz o intercâmbio de línguas e culturas entre pessoas do país de acolhimento e imigrantes, se transformou. “Reformularam os conteúdos e a experiência, adaptaram-se à nova realidade e conseguiram atingir perto dos objectivos do ano”, relata. Já o movimento Transformers, que visa emprestar o talento de jovens à comunidade pelo voluntariado, teve de encontrar alternativas ao modelo tradicional que funcionava através das escolas, entretanto, encerradas. Solução? “Passaram a capacitar as associações de estudantes para que estas deixem de precisar deles e criaram uma academia on-line, com vídeos, jogos e modelos de subscrição e, assim, chegam a qualquer jovem do país”.

Ao observar histórias como estas, o IES-SBS criou um kit para sobreviver em tempos de pandemia. De forma breve, Carlos Azevedo partilha algumas das ideias centrais, sublinhando a importância da comunicação “eficaz e positiva”, da activação de mentores e da forma como se escala. “Há que pensar como preservo aquilo que faço bem para criar impacto e retirar o que é acessório, para que possa crescer linearmente e sem dar saltos de estrutura”, recomenda. Até aqui, foi possível identificar três tendências de linearização do modelo: “[o uso de] tecnologia, malta a codificar o que fazia e a capacitar outros para que eles próprios possam fazer mais junto do público-alvo, e a criação de kits”. Tal como fez o IES-SBS.

HÉLICE-QUÁDRUPLA?

Face à reacção portuguesa à pandemia, pode dizer-se que as quatro hélices estão já a funcionar? Catarina Selada, que é também head of policy & intelligence unit do CEiiA, é cautelosa e, apesar de algumas empresas e instituições de I&D terem demonstrado resiliência e reagido à crise, considera que o movimento “foi circunscrito” a alguns sectores.

“Uma organização resiliente não é apenas aquela que demonstra capacidade de retornar à situação prevalecente antes da crise, mas sim a que desenvolve estruturas e atitudes que permitem não só recuperar, mas também reinventar-se. Daí que os agentes económicos e sociais tenham de ser pró-activos face à emergência de um ‘novo normal’, com alterações nas preferências dos consumidores, nos modelos de negócio, nas cadeias de fornecimento e, em última instância, na forma como as pessoas vivem, trabalham, aprendem e se movem nos territórios.

Neste contexto, o envolvimento dos utilizadores ou, de forma mais ampla, das comunidades em processos de co-criação é essencial para garantir a operação do modelo de inovação de hélice-quádrupla, para além da colaboração entre empresas, instituições de ciência e tecnologia e políticas públicas. Parece-nos, em termos genéricos, que ainda falta aprofundar esta dinâmica no ecossistema nacional de inovação”.

Municípios, empreendedores e novas oportunidades

Num modelo à distância, a cidade física deixou de dar o palco para que estas inovações acontecessem, mas terá, enquanto entidade, ficado de fora? “Contámos com a participação de algumas câmaras municipais numa vertente mais de troca de ideias e partilhas de conhecimento”, responde o porta-voz do #tech4COVID19. Embora não se tenha manifestado em nenhum projecto em concreto, o movimento tecnológico realça as interacções existentes com os municípios, em particular com as câmaras municipais de Lisboa e do Porto. “Esta relação e contributo são muito importantes”, reforça.

O trabalho com os municípios não é novidade para o IES-SBS e, por isso, Carlos Azevedo está convicto de que o tema da inovação social interessa aos responsáveis municipais e não apenas em tempos de pandemia. Na agenda da escola,estava previsto um programa on-line com a Área Metropolitana do Porto, no seguimento do trabalho que tem sido desenvolvido com o IES-SBS de construção ecossistémica e capacitação dos técnicos autárquicos para que estes possam, depois, capacitar empreendedores localmente, criando as condições para que a inovação seja real e fique enraizada. Depois, é a vez do programa de scaling on-line da Human Power Up, uma incubadora de impacto com vários verticais em Braga.

O interesse dos territórios em alimentar o ecossistema de inovação existe, mas, para municípios mais pequenos, isso pode representar ainda mais. Quer a inovação tecnológica, quer a inovação social beneficiam do contacto e colaboração entre pessoas, o que faz das cidades hubs de excelência para a criatividade e desenvolvimento de soluções para os desafios que vão surgindo.

A crise sanitária pôs um travão nesse processo criativo, mas abriu espaço na esfera virtual. “A pandemia veio desmistificar se há realmente a necessidade obrigatória de interacção física para criar e inovar”, refere João Figueirinhas da Costa. Com este novo contexto, foi possível perceber “que nem todas as reuniões tinham de acontecer de forma física e acabavam por ser uma fonte de ineficiência”. No entanto, o empreendedor alerta: “para coisas realmente criativas, há benefícios em haver alguma interacção física” e “o facto de estarmos a ser obrigados a criar sem momentos presenciais veio provar que esta é benéfica e acrescenta valor”.

A crescente digitalização e o aumento do trabalho remoto trazem também a possibilidade de viver mais longe dos locais de trabalho, o que pode representar uma oportunidade de atrair pessoas e empresas para territórios mais pequenos. Esta é uma expectativa de João Figueirinhas da Costa, já que, enquanto há empresas que precisam de estar no centro do poder, mobilidade e logística, há também muitos negócios que “só precisam de uma óptima ligação à internet”. Juntando a isto o eventual ganho na qualidade de vida por estar fora das grandes cidades, o responsável acredita que “mais empresas deveriam considerar esta mudança”. Este é, aliás, um movimento que já estava a acontecer antes da pandemia impulsionado por programas desenvolvidos por autarquias e entidades regionais. “Ainda não é algo massificado, ainda não é possível escolher uma qualquer cidade do interior do país e ter lá condições asseguradas. [Mas] Há exemplos como Proença-a-Nova, Pampilhosa da Serra, Alentejo, onde há alguns movimentos nesse sentido, com projectos interessantes, que acredito que venham a ter capacidade de atracção real”, conta.

Inovar depois da Covid-19

Focado na resposta a um pico de emergência, a sustentabilidade a longo prazo dos projectos não está nas preocupações do #tech4COVID19. “A sustentabilidade com que sempre nos preocupámos tem mais a ver com o conceito do projecto – se faz sentido, se suprime uma verdadeira necessidade, de que forma faz sentido, se temos uma equipa sólida o suficiente para gerir o projecto”, revela o porta-voz. Mas tal não significa que todas as iniciativas se esgotem caso a pandemia ceda – “os projectos que não tinham previsão de fim de utilidade terão de se reinventar para conseguirem ser sustentáveis”.

Depois desta experiência, o que vai mudar na forma como inovamos? Para Carlos Azevedo, nada voltará a ser como antes, até porque se percebeu que, com o digital, é possível escalar e aumentar o impacto das acções de inovação social. Porém, para que tal aconteça, é preciso redesenhar a experiência e adaptá-la a um novo formato e a uma nova intensidade. “Não podemos ter alguém a falar dois dias inteiros do outro lado!”, graceja. Na passagem para a esfera virtual, há “um bocadinho que se perde”, mas Carlos Azevedo garante que o bonding de comunidade continua lá. “A experiência física era muito intensa e tinha muitas dúvidas de que isso fosse acontecer da mesma forma on-line, mas a verdade é que acontece”, confessa. “Esta crise teve muitos males, mas também oportunidades que estas pessoas agarraram de alguma forma, também pelo sentimento de contribuir para a resolução dos desafios. Essas mudanças vão ficar”.

Apesar de considerar esta uma experiência “bastante relevante”, João Figueirinhas da Costa não antevê uma “mudança radical na forma como algum projecto poderá ser desenhado e posto a funcionar”. Todavia, a forma como o ecossistema tecnológico se juntou e se agregou é, para o porta-voz, um caso de estudo do qual se podem retirar aprendizagens para o futuro. Nesse futuro, faz falta uma “política de inovação real” e uma academia que seja “muito mais forte” a trabalhar com inovação. “Temos instituições académicas incríveis, mas que não têm sido líderes na capacidade de gerar inovação aplicada, inovação estruturada, e não temos condições para inovação, seja num sentido de investigação e desenvolvimento científico, seja numa lógica mais aplicada. Temos poucos incentivos e muito pouca estrutura e capacidade para fazer investigação com dignidade em Portugal. Se começássemos por uma política de inovação e investigação mais amiga destes criadores, já seria um grande passo para impulsionar este ecossistema”, afirma.

A par disto, não há dúvida de que os territórios podem “ajudar a acelerar o ecossistema de inovação ao serem pólos centralizadores e agregadores”. Como? Para além de incluir a inovação na forma como as cidades são geridas e pensadas, o movimento alerta para a necessidade de políticas municipais focadas na inovação, havendo apenas “bons exemplos isolados”. Apostar na qualidade de vida é também um factor a ter em conta para o representante do #tech4COVID19. “Se as pessoas tiverem mais tempo para pensar, para divagar – e isto traduz-se em, por exemplo, melhores soluções de mobilidade e mais sustentáveis, mais cultura –, verão a sua criatividade mais estimulada. Tudo isto são exemplos de ferramentas que, de forma acumulada e a longo prazo, levam a maior inovação junto das pessoas que frequentam essa cidade”.

A experiência de trabalhar com municípios mostra ao CEO da IES-SBS que, cada vez mais, o empreendedorismo de impacto e a inovação social estão nas agendas municipais. “É uma alteração de paradigma enorme, e penso que há razões económicas para acontecer, pois os hábitos de consumo mudaram, há uma pressão enorme na produção que vem do talento, que procura mais propósito. O talento para ser retido, seja numa cidade, seja numa empresa ou organização, precisa de saber qual é esse propósito e como é que este pode acontecer. As cidades estão a perceber isso, daí a preocupação com a área social face àquilo que eram os investimentos mais típicos em infra-estruturas, etc.”, explana. Para além de acelerar e intensificar o impacto da inovação social, esta abordagem contribui também para atenuar algo que a crise pandémica pôs em evidência: as desigualdades.

“Vou partilhar uma crença: quando há um alinhamento entre interesses pessoais e benefícios sociais, as pessoas realizam toda a sua capacidade, todo o seu talento, são muito mais felizes e contribuem muito mais para aquilo que é o bem-estar da sociedade. Se formamos empreendedores com este alinhamento, quando as cidades ou organizações percebem isto e criam estruturas para o potenciar – porque é fundamental reter talento –, temos uma repartição económica muito mais equilibrada”, conclui.

Este artigo foi originalmente publicado na edição nº 28 da Smart Cities – Julho/Agosto/Setembro 2020, aqui com as devidas adaptações.