Com o rebentar da guerra na Ucrânia, a Europa sentiu-se acorrentada à dependência das importações de combustíveis fósseis russos. Para soltar estes grilhões, a autossuficiência energética, aliada à neutralidade climática, passou a ser uma prioridade dos países da União. Nas cidades, a eficiência energética e as energias renováveis fazem parte das ferramentas disponíveis.

A 24 de Fevereiro, a Europa despertou de um longo sono. Depois de 77 anos de paz e relativa segurança, a invasão russa da Ucrânia trouxe até às portas do velho continente a guerra e o ataque aos valores proclamados nas últimas décadas no seio da comunidade europeia. Ao acordar para a ameaça e barbárie do conflito armado, a Europa tomou também consciência de uma outra realidade: mais de metade da energia (57,5%) de que precisa é importada, sendo o seu principal fornecedor o país agressor no actual conflito.

Dados do Eurostat mostram que, nos últimos dez anos, a Rússia liderou a lista de países fornecedores de produtos energéticos à União Europeia (UE), com uma única excepção, em 2012, quando os Estados Unidos da América assumiram esse comando no que respeita ao carvão. Aquando da invasão da Ucrânia, a Rússia era responsável pelo abastecimento de mais de 40% do consumo de gás da UE, 27% do de petróleo e 46% do de carvão. Estes números, além de ilustrarem a elevada dependência energética europeia do exterior, abriram a porta a que Moscovo usasse a energia como forma de chantagear os países europeus face ao apoio dado à Ucrânia, o que não tardou a acontecer. Em finais de Abril, o abastecimento de gás natural à Polónia e Bulgária foi cortado, como resposta à recusa destes países em fazer o pagamento em rublos.

O pesadelo da guerra e a chantagem russa trouxeram, todavia, um novo sonho à UE: alcançar a independência energética (para já, dos combustíveis russos). A ambição, acompanhada do desejo de regresso da paz, junta-se ao objectivo traçado para 2050 de atingir a neutralidade climática.

Quando falamos em uso de energia, a nível global, as cidades representam a maior fatia – cerca de 75% da energia primária consumida, estima a Organização das Nações Unidas. Um olhar mais detalhado mostra que, nas áreas urbanas, há dois sectores que aparecem como “glutões”: os edifícios e os transportes, representando, cada um, cerca de um terço do consumo de energia final na UE. Alcançar a autossuficiência energética implica, então, que estes sejam prioritários na actuação. Como devemos, então, proceder?

A energia que não se usa

A intenção europeia ficou logo marcada a 8 de Março, quando a Comissão Europeia (CE) anunciou o REPowerEU, uma estratégia para, até ao final do ano, reduzir em dois terços a compra de gás russo e, ainda antes de 2030, tornar a Europa independente da importação de combustíveis fósseis oriundos desse país. No plano, a CE identificou as intenções de acelerar a redução do uso de combustíveis fósseis nos edifícios, na indústria e no sistema eléctrico, e de diversificar as fontes de aprovisionamento de gás.

Para tal, a aposta vai ser em medidas de eficiência energética, no aumento do uso de fontes renováveis – nomeadamente solar fotovoltaica, eólica e bombas de calor – e na resolução de condicionantes relacionadas com a infraestrutura. Em Maio, chegou novo conjunto de propostas para dar corpo à estratégia e que inclui um reforço da meta europeia para as energias renováveis em 2030 (dos 40%, propostos no pacote legislativo Fit for 55, para 45%) e uma estratégia solar que obrigará, já em 2025, a que todos os edifícios públicos tenham sistemas de energia solar fotovoltaica e que cada município com mais de dez mil habitantes tenha, pelo menos, uma comunidade de energia renovável (CER). Em cima da mesa está a possibilidade de tornar a instalação de painéis fotovoltaicos obrigatória na nova construção.

Reduzir a necessidade será sempre o primeiro passo e, à luz da actualidade, segundo a Agência Internacional de Energia (AIE), serve vários propósitos: “Usar menos energia não é apenas uma forma imediata de os europeus reduzirem as suas facturas, é também uma ajuda à Ucrânia através da redução da procura por petróleo e gás russos, ajudando, assim, a reduzir as receitas que financiam a invasão.”

Há já vários anos que a eficiência energética é, em teoria, uma prioridade europeia, ainda que, na prática, as renováveis tenham sido favorecidas. Com uma meta de 32,5% até 2030, definida por uma directiva em processo de revisão, e a imposição de planos de acção nacionais, a melhoria da eficiência energética faz parte da legislação de diversos sectores, incluindo o dos edifícios, cujas regras para o desempenho energético se têm tornado, desde 2002, mais exigentes. A directiva que regula o sector, EPBD, traçou, para os novos edifícios, o objectivo de estes terem necessidades quase nulas de energia, cobertas, no possível, por energia de fontes renováveis gerada nas proximidades. Este conceito, cuja interpretação levantou sempre muitas questões, deverá, com a revisão da lei que se segue, ser substituído por outro mais adequado às ambições futuras: edifícios com emissões zero.

Se na nova construção as coisas parecem encaminhadas, já nos edifícios existentes, a conversa é outra. Apesar de os requisitos para a melhoria do desempenho do parque edificado serem cada vez mais apertados e do impulso dado pela CE com a iniciativa Renovation Wave, a reabilitação energética continua a um ritmo insuficiente para as necessidades.

“Se dissesse que, nos edifícios, há pouco por fazer, estaria a mentir”, admite Nelson Lage. No entanto, para o presidente da ADENE – Agência para a Energia, não houve, até aqui, momento mais oportuno para o fazer, começando pela existência de políticas públicas para o tema, como a Estratégia de Longo Prazo para a Renovação dos Edifícios 2050 (ELPRE), que aborda “o essencial: as melhorias aos níveis do isolamento e de comportamentos dos edifícios” e o problema da pobreza energética.

A isto, acrescem as fontes de financiamento actualmente disponíveis, como o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), que prevê 610 milhões de euros para a eficiência energética de edifícios, dos quais 300 milhões para o sector residencial. “Temos um cenário actual muito interessante que agrega todas estas componentes e há uma consciência muito grande de que a reabilitação urbana é um pilar para a melhoria e eficiência energética dos edifícios. Não podemos falar de política pública ou de eficiência energética sem falar de reabilitação urbana e esta pode dar um grande impulso à revalorização das cidades e também ajudar a ultrapassar problemas estruturais que são ainda grandes [como a pobreza energética].”

De acordo com a ELPRE, este esforço de reabilitação da quase totalidade do parque edificado vai implicar um investimento na ordem dos 143 mil milhões de euros. Face a isto, o montante “que existe em Portugal para lidar com a vaga de renovação é ridículo”, lamentou Eduardo Maldonado, professor catedrático da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, durante uma intervenção no CIAR 2022, que teve lugar em Lisboa no início de Maio. O especialista, que foi coordenador da Acção Concertada para a EPBD, apelou também a uma maior exigência na regulamentação, incluindo para os novos edifícios, isto “se queremos ser sérios com os objectivos”.

“Há quem diga que o dinheiro é pouco, mas, na realidade, depende de como olhamos para o copo: pode estar meio vazio ou meio cheio”, diz Nelson Lage, afirmando-se como “um optimista”. Ainda assim, o responsável da ADENE sublinha que, para cumprir a missão, é preciso contar também com outros instrumentos, para além do PRR, e que “todo o sector tem de estar consciente de que tem um papel a desempenhar; não é apenas esperar que haja incentivos”.

143 mil milhões de euros

É o investimento necessário previsto pela ELPRE para levar a cabo a renovação energética da totalidade do parque edificado português até 2050.

Aquecer as casas com renováveis

Por mais eficiente que seja, um edifício vai sempre consumir algum nível de energia, lembra Eduardo Maldonado. Por esse motivo, alcançar tanto a neutralidade climática como a independência energética vai depender do uso de energias renováveis. E se, em matéria de eficiência energética, há muito a fazer nos edifícios, Nelson Lage destaca que, no que toca à integração de renováveis para garantir consumos, têm sido feitos progressos.

Aproveitando a crescente penetração de renováveis no mix eléctrico, a tendência actual é para a electrificação dos consumos, também no que se refere ao aquecimento e arrefecimento (A&A), que, juntamente com as águas quentes sanitárias (AQS), representam 79% da energia final consumida nos edifícios europeus, sendo 77% desse total ainda de origem fóssil. Mas as renováveis estão a ganhar terreno e, nesta matéria, os portugueses até não estão mal, já que estas representavam, em 2020, 41,5% das fontes de energia usadas para fins de A&A, refere o Eurostat.

Entre as soluções actualmente disponíveis, as bombas de calor são as que aparecem mais bem posicionadas para fazer a transição, mas não só: um estudo recente da European Climate Foundation e da European Alliance to Save Energy indicou que, se aliadas a uma renovação energética do parque edificado, as bombas de calor podem ajudar a “poupar o equivalente a 25% das actuais importações de gás russo até 2030”.

Quer para A&A, quer para AQS, a elevada eficiência, a polivalência e a flexibilidade desta tecnologia jogam a seu favor, mas, no contexto nacional, o custo elevado que a sua aquisição representa continua a ser um entrave para muitos. Além disso, se falarmos de independência energética, há que ter em conta que as bombas de calor precisam sempre de electricidade, lembra Victor Júlio, director da marca de soluções de aquecimento Baxi, sugerindo um candidato “mais adequado” para o país, pelo menos para AQS: o solar térmico. “Numa situação em que eu tenho a incerteza do meu fornecimento de energia, o solar térmico é, sem nenhuma dúvida, a melhor solução numa habitação, porque não vamos abdicar de tomar banho e, se possível, [queremos fazê-lo] com água não fria.” Porém, a solução, embora madura e eficiente, goza de pouco mediatismo e está dependente de haver ou não sol, exigindo sempre um sistema de apoio, que, na melhor das hipóteses, deverá ser sustentável.

Já quando se fala em aquecimento, há, em muitas zonas do país, um outro recurso renovável que faz parte da cultura e que deve ser tido em conta – a biomassa. O uso da madeira e/ou pellets é, de acordo com Nuno Sequeira, CEO da empresa do sector Solzaima, a resposta para deixar de importar gás ou gasóleo para aquecimento, sendo vários os argumentos a favor, desde a disponibilidade do recurso e produção local, até à natureza “muito pouco volátil” do preço comparativamente a outras fontes de energia. Todavia, para áreas mais urbanas, a solução pode não ser a mais cómoda e a emissão de partículas na generalidade dos equipamentos é ainda uma questão a resolver.

No futuro do A&A, há muita expectativa relativamente ao uso de hidrogénio verde, no entanto, os especialistas defendem que há ainda trabalho a fazer nesse sentido. No caminho para a transição e independência energéticas, apontar qual a solução de A&A mais adequada não é, pois, tarefa fácil, até porque não se trata apenas de uma batalha entre tecnologias, e há que considerar outras variáveis, como o impacto no bolso dos portugueses e até que ponto faz sentido abandonar já soluções operacionais de elevada eficiência e que se revelam, por agora, mais económicas, como é o caso de alguns equipamentos a gás – lembrando também que Portugal está relativamente tranquilo na sua dependência de combustíveis fósseis russos, que, segundo a AIE, em 2020, era de apenas 5,3% (gás natural 9,6%, e petróleo 6,7%). A resposta, porém, pode estar numa “abordagem multitecnológica”, refere Luís Monteiro, da Bosch Termotecnologia, e na “diversificação”, acrescenta Nelson Lage.

Cozinhar com o sol

A preparação de alimentos é um dos usos que damos à energia e que passa, muitas vezes, despercebido quando se pensa na factura energética. Será possível, também aí, sermos mais independentes? A resposta é sim e Celestino Ruivo, docente da Universidade do Algarve, tem uma proposta: cozinhar com o sol. Os modelos de cozinhas solares usados no contexto doméstico são os mais simples e apenas permitem cozinhar alimentos quando há sol, podendo ser do tipo painel, caixa, tubo de vácuo ou parabólico.

forno solar

Forno solar. © Celestino Ruivo

“O funcionamento das cozinhas solares rege-se por princípios físicos básicos: a radiação solar incidente na superfície reflectora é reflectida para a zona de cocção, de modo a obter-se uma elevada concentração da radiação no recipiente que contém os alimentos. A superfície exterior do recipiente deve ser preferencialmente preta para que a eficiência na absorção da radiação incidente seja elevada. As cozinhas solares do tipo caixa e do tipo painel necessitam de um dispositivo transparente, em plástico ou em vidro, que propicie o efeito de estufa na zona de cocção onde é colocado o recipiente”, explica.

A solução, que aproveita um recurso abundante em Portugal, contribui para a redução de emissões de CO2 e melhoria da qualidade do ar localmente. Nas cozinhas solares do tipo painel ou de caixa, o processo de cocção é lento, o que permite a conservação das propriedades nutricionais e energéticas dos alimentos, não havendo risco de estes se queimarem ou de ocorrência de incêndio. Nas cozinhas do tipo parabólico mais comuns, os tempos de cocção solar são similares aos dos processos convencionais.

Não menos importante, é a necessidade de dispor de espaço disponível com a orientação adequada a aproveitar o sol. A solução não será, provavelmente, uma opção para o dia-a-dia da maioria dos portugueses, mas, tendo as condições favoráveis e usada com regularidade, pode ajudar a poupar na factura energética e na redução das emissões de CO2 para a atmosfera. [Mais informações disponíveis em www.consolfood.org e www.solarcooking.org]

FOTOVOLTAICO
Acompanhando a tendência de electrificação de consumos, a tecnologia solar fotovoltaica apresenta-se como a solução mais promissora para produzir localmente. Nas cidades, as comunidades de energia renovável levantam cada vez mais interesse.

O mundo mais eléctrico e solar

Os usos de energia são, cada vez mais, eléctricos – para os equipamentos que usamos, para cozinhar e climatizar a casa, aquecer águas e até para nos deslocarmos, com a mobilidade eléctrica a fazer parte da resposta para um sector dos transportes mais autossuficiente. Cumprir os objectivos climáticos e de autossuficiência exige que esta electricidade seja de origem renovável e, de preferência, produzida localmente.

A guerra na Ucrânia acentuou a tendência crescente dos preços da electricidade dos últimos meses, que se aproximam de valores incomportáveis, em particular para as empresas, conforme relata António Cunha Pereira, CEO da Ecoinside. “Posso dar o exemplo de um cliente cuja factura passou de 14 mil euros para 18 mil, depois para 23 mil e agora já vai nos 110 mil euros.” Para o gestor, ultrapassar esta situação passa por reforçar a eficiência energética, mas também por optar por soluções de produção local de energia renovável para autoconsumo. As dificuldades nas cadeias de fornecimento e a inflação têm aumentado os investimentos necessários, mas “qualquer solução de eficiência energética ou de produção de energia para autoconsumo tem um retorno em tempos relativamente curtos”, aponta.

É assim também nas casas e nos municípios portugueses e a tecnologia que se impõe é o solar fotovoltaico. Alexandre Cruz, director de serviços de energia da Tecneira, não tem dúvidas de que “as medidas tangíveis e imediatas na redução dos custos com a electricidade são a eficiência energética e a geração distribuída, com o autoconsumo e as comunidades solares. A contribuição para uma menor dependência energética é uma consequência natural com o proliferar da geração distribuída.”

fotovoltaico

“Devemos continuar a apostar no solar”, reforça Nelson Lage, indicando a direcção a “um modelo misto”, no qual se combina a produção centralizada com a descentralizada, através das CER. “Há um grande potencial [das CER] no que respeita às reduções de emissões e à satisfação das necessidades de energia dos consumidores. A descentralização da produção de energia dá-nos uma maior independência energética e, de certa maneira, acesso a energia verde. Se começarmos a ter [mais] municípios com CER, temos um potencial muito grande de acesso nacional a fontes de energias mais limpas – e não só para o sector privado, mas também para o público, o industrial, o agrícola, etc.”, afirma.

Face à conjuntura actual, Andreia Carreiro, da Cleanwatts, empresa que está a desenvolver 100 CER em Portugal, confirma que “a procura por soluções que possibilitem uma maior autonomia energética e eficiência energética, com o intuito de assegurar a acessibilidade a serviços energéticos a preços baixos, fez com que o interesse pelo desenvolvimento de CER se intensificasse”.

À escala municipal, são também cada vez mais as autarquias interessadas em desenvolver projectos CER e que procuram a ADENE para esclarecimentos sobre o modelo, conta Nelson Lage. Neste tema, a missão da Agência para a Energia passa por informar e orientar, sendo que “pode também capacitar técnicos municipais” para que estes levem os projectos a bom porto. Convicto dos benefícios económicos, ambientais e sociais do modelo, o gestor acrescenta que “os municípios podem usar as CER para a sua autossuficiência, por um lado, e, por outro, para disponibilizar o excesso de energia aos seus munícipes a custos mais baixos”.

Nesta matéria, para Alexandre Cruz, os municípios são os “agentes catalisadores da mudança, construindo comunidades solares que integrem, de forma faseada, entidades públicas e privadas, reduzindo o custo com a electricidade de forma tangível, imediata e descomplexada”.

“Faço a minha parte”

A AIE e a CE elaboraram um guia com um conjunto de acções simples que cada europeu pode fazer no seu dia-a-dia e que contribuem para “poupar dinheiro, reduzir a dependência da energia russa, apoiar a Ucrânia e ajudar o planeta”. São elas:

1. Baixar a temperatura do aquecimento e usar menos o ar condicionado;

2. Ajustar os parâmetros dos equipamentos para aquecimento de água;

3. Trabalhar a partir de casa;

4. Usar o automóvel de forma mais económica;

5. Reduzir a velocidade nas autoestradas;

6. Deixar o automóvel em casa aos domingos nas grandes cidades;

7. Fazer curtas distâncias a pé ou de bicicleta;

8. Usar os transportes públicos;

9. Viajar de comboio, em vez de avião.

Se adoptadas por todos os cidadãos da UE, estas medidas resultariam numa poupança de energia suficiente para encher 120 super-petroleiros e aquecer 20 milhões de casas com gás natural.

Este artigo foi originalmente publicado na edição nº 35 da Smart Cities – Abril/Maio/Junho 2022, aqui com as devidas adaptações.