O património cultural é um ativo da ação climática nos bairros históricos. Em Lisboa, Alfama é o palco de experimentação de uma nova abordagem de “missões” que se aplica à escala do bairro.
Para a maioria das cidades, os bairros históricos representam a ponte entre o seu passado e o seu futuro. São áreas únicas e ricas em património cultural e que conferem às cidades a sua identidade própria. De acordo com a UNESCO, a definição de património cultural engloba não apenas elementos culturais e naturais tangíveis, mas também valores intangíveis ligados com o conhecimento local, o valor intrínseco das comunidades, as tradições, a arte, as festividades e os antigos ofícios.
Pelas suas características e valor patrimonial, os bairros históricos têm desafios próprios quando comparados com outras áreas urbanas, pois estão mais expostos a processos de turistificação, gentrificação, perda e envelhecimento das suas populações, degradação dos espaços públicos e abandono de edifícios e de outras infraestruturas de valor histórico.
As alterações climáticas vieram condicionar as oportunidades de desenvolvimento e prosperidade destes bairros. Com efeito, estas áreas urbanas são mais sensíveis aos impactos das alterações climáticas, quer pelo risco acrescido de deterioração do seu património tangível, quer pelo nível de vulnerabilidade a que as suas comunidades mais pobres e idosas estão expostas. O edificado histórico construído e outras infraestruturas arqueológicas estão mais vulneráveis à sua degradação por ação de variações bruscas e anómalas de temperaturas, precipitação e humidade, cheias repentinas ou ocorrência de outros eventos extremos.
Os bairros históricos localizados em malha urbana consolidada, pela sua localização central na cidade, são áreas normalmente mais expostas ao fenómeno da ilha de calor urbano, o que condiciona naturalmente as condições de habitabilidade e de conforto térmico dos seus residentes. As comunidades locais destes bairros, predominantemente constituídas por uma população mais envelhecida ou de baixos recursos socioeconómicos, num contexto de alterações climáticas, tornam-se mais vulneráveis a situações de pobreza e de exclusão social, pois têm dificuldades acrescidas em se adaptar e melhorar as suas condições de saúde, habitabilidade, educação e geração de novas oportunidades de trabalho.
Apesar das suas vulnerabilidades, o valor intrínseco das comunidades locais, do seu conhecimento, das suas competências e das tradições é parte integrante do património intangível dos bairros históricos que deve ser preservado, requalificado e readaptado para a regeneração urbana e valorização dos centros históricos.
Neste contexto, o património cultural dos bairros históricos é considerado um ativo essencial da ação climática, sem o qual não será possível promover a regeneração urbana destas áreas fundamentais da cidade através de uma abordagem sistémica, sustentável e integrada.
Estrangulamentos
Esta abordagem sistémica, imprescindível para tratar problemas complexos e interligados, como é caso das alterações climáticas e da regeneração cultural de bairros históricos, apresenta dificuldades práticas de implementação.
O primeiro estrangulamento identificado relaciona-se com uma forma de “pensamento em silos” e de organização das estruturas de governação em áreas relativamente estanques e setoriais. Ao nível dos governos locais das cidades europeias, temos tradicionalmente departamentos que tratam dos temas da mobilidade, do edificado, do património cultural, da inovação e do planeamento urbano, mas faltam ainda estruturas que promovam grupos de trabalho intersetoriais que consigam, de forma articulada, colaborar em torno do mesmo objetivo comum – implementar a ação climática à escala do bairro.
O segundo estrangulamento relaciona-se com o fraco nível de participação, sensibilização e envolvimento dos cidadãos nas ações climáticas e nos processos de regeneração urbana.
O terceiro estrangulamento diz respeito à necessidade de encontrar novos modelos de colaboração e de relacionamento entre os vários atores locais, necessários para promover a transformação sistémica, envolvendo: empresas, terceiro setor, academia, governos locais e cidadãos.
Uma nova abordagem de “Missões”
A abordagem de “missões” vem dar resposta a estes estrangulamentos. Trata-se de uma abordagem colaborativa e orientada por objetivos que está a ser aplicada ao nível das políticas europeias e que trata processos complexos de transformação sistémica.
Mariana Mazzucato, economista influente no contexto internacional, inspirada no sucesso do programa Apollo, que levou o Homem à lua em 1969, retira lições importantes desta “missão” e utiliza-as para ilustrar a sua teoria da Economia de Missão. O sucesso da alunagem é destacado, na medida em que teve a capacidade de reunir agentes públicos e privados, catalisar a inovação e a colaboração em diversos setores da economia.
Quando passamos para os problemas da atualidade e inerentes ao desenvolvimento sustentável da Terra, claramente identificados nos 17 Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas – que incluem erradicar a pobreza, proteger os oceanos, garantir o acesso a energias renováveis, combater as alterações climáticas, ou tornar as cidades resilientes, inclusivas e sustentáveis –, o nível de complexidade aumenta, bem como a necessidade de aplicar um pensamento orientado por missões. Trata-se de problemas cuja resolução interseta questões sociais, políticas, tecnológicas, económicas e comportamentais. A economista salienta que, “no nosso tempo, aplicar um pensamento orientado para missões específicas exige não só adaptação, mas também inovações institucionais que criem novos mercados e reformem os existentes. E muito importante, também, exige a participação dos cidadãos”.
O Pacto Ecológico Europeu também define uma missão ousada e inspiradora para a Europa, que é a de reduzir as emissões de gases com efeito de estufa em 55 % até 2030 e tornar a sociedade neutra em carbono em 2050, ajudando, desta forma, a abrandar o aquecimento global e a mitigar os seus efeitos. Além de definir a estratégia ambiental europeia, o Pacto Ecológico é, ao mesmo tempo, a estratégia de crescimento económico da Europa, focada em novas oportunidades de investimento e inovação.
Mais recentemente, como resposta à crise mundial gerada pela pandemia de Covid-19, o Plano de Recuperação da Europa (Next GenerationEU) vem reforçar o programa de financiamento de longo prazo da União Europeia no valor de mais de 800 mil milhões de euros, alocando cerca de 37% do valor global diretamente aos objetivos do Pacto Ecológico Europeu. Ao adaptar-se às novas circunstâncias, este plano coloca a dupla transição, verde e digital, ainda mais resolutamente no centro da execução de políticas estratégicas, com novos recursos para acelerar a transformação da Europa. Para levar a cabo esta complexa missão, é necessário envolver múltiplos setores da economia, entidades privadas e públicas e, acima de tudo, colocar os cidadãos no centro da missão.
Uma das iniciativas de operacionalização do Pacto Ecológico ao nível das cidades passa pela implementação da Missão 100 Cidades com impacto neutro no clima e inteligentes até 2030, cujo objetivo é assegurar que estas cidades atuem como polos de inovação e experimentação e que todas as cidades europeias sigam o seu exemplo até 2050. Neste contexto, o município de Lisboa, no âmbito da sua ambição para a neutralidade climática até 2030, formalizou a sua manifestação de interesse para integrar a lista das 100 cidades que pretendem ativamente liderar pelo exemplo a missão para a neutralidade climática na Europa e foi uma das escolhidas.
Para além de orientar compromissos internacionais e novos modelos de governação das cidades europeias, esta abordagem, para ser efetiva, deve também influenciar o desenvolvimento de missões a uma escala intraurbana. A experimentação de novas formas de inovação e governação à escala do bairro abre novas oportunidades de participação ativa e co-criação com as comunidades locais e com os cidadãos. Neste contexto, a lógica de missões tem vindo a ser testada na área histórica de Lisboa-Alfama e Mouraria, através da experimentação de laboratórios urbanos e hubs locais de inovação.
Desenho da infraestrutura de apoio à inovação e regeneração do Bairro de Alfama
Alfama é um dos mais antigos e tradicionais bairros históricos de Lisboa, que, devido às suas características únicas, tem sido um dos principais locais turísticos da capital. As suas especificidades resultam da sua história, do modo de vida dos seus habitantes e também da sua morfologia e desenho urbano.
Alfama distribui-se ao longo da encosta entre o Castelo de São Jorge e a frente ribeirinha do Tejo e é conhecida pela sua morfologia de ruas inclinadas, estreitas e labirínticas. Nas últimas décadas, este bairro tem sofrido uma perda significativa de população residente, associada a uma procura crescente de habitações para investimento e ocupações turísticas. Se, por um lado, estas dinâmicas urbanas têm contribuído para uma reabilitação do edificado, por outro, têm também agravado processos de gentrificação e de turistificação do bairro.
Os projetos Alfama SSD (2017) e SUSHI (2018-2020), ambos apoiados pelo EIT-Climate KIC e desenvolvidos, em co-coordenação, pela Lisboa E-Nova e a FCT-NOVA, têm procurado soluções para responder aos principais problemas do bairro, nomeadamente o desaparecimento de negócios tradicionais, a falta de resiliência climática dos espaços públicos e do edificado, a necessidade de uma mobilidade mais sustentável e inclusiva, e, por último, a necessidade de reforçar o espírito de comunidade. Têm sido exploradas soluções para tornar o bairro mais inclusivo e com maior capacidade para reter as suas populações mais idosas e de baixos rendimentos. Têm sido também exploradas formas de reduzir a dependência do turismo, através de uma diversificação das atividades económicas, nomeadamente as ligadas às indústrias criativas e aos processos inovadores de reutilização do património cultural em interação com soluções que combatam as alterações climáticas.
Face à complexidade dos problemas identificados e da necessidade de uma transformação sistémica que gere impactos cruzados na economia local, nas comunidades e no ambiente, foi identificado, como desafio estratégico, a Regeneração urbana e cultural de Alfama, através da inovação, criatividade e da ação climática. Para a operacionalização deste desafio, os projetos definiram a Missão Alfama Sustentável e Saudável Para Todos e, para a sua implementação, foi desenhado o laboratório urbano Alfama Living Lab.
O Alfama Living Lab é a conceptualização de uma infraestrutura destinada a desenvolver, agregar e facilitar um portefólio de projetos de apoio à transformação sistémica de Alfama. Neste contexto, o laboratório assenta em princípios participativos e colaborativos que visam envolver o poder local, atores privados, a academia e os cidadãos, de forma a fomentar processos de inovação aberta e centrados nas comunidades locais.
Uma das iniciativas desenvolvidas neste âmbito foi a atividade SÃO VICENTE CÁ FORA. Tratou-se de uma iniciativa experimental, de duração temporária, que decorreu entre outubro e dezembro de 2020 na Calçada do Cascão, no centro histórico de Lisboa. A SÃO VICENTE CÁ FORA teve como principal objetivo explorar a ligação entre arte-sustentabilidade-criatividade-inovação, como forma de envolver as comunidades locais e transformar os espaços públicos.
Neste contexto, a iniciativa reuniu atividades artísticas temporárias e um programa completo de workshops e conversas de bairro sobre resiliência climática, economia circular, mobilidade sustentável e inclusividade social. Sob a coordenação artística da Zet-Gallery (grupo DST-MOSAIC) e com o envolvimento da comunidade e de jovens artistas, foi construída uma estrutura artística ao ar livre com andaimes e materiais reciclados e foi pintado um mural num edifício devoluto representando o interior de uma habitação sustentável. A estrutura artística serviu de palco a um conjunto de workshops coordenados pela Lisboa E-Nova, sobre sustentabilidade e ação climática e cobrindo temas variados, desde mobilidade sustentável, circularidade dos têxteis, eficiência energética até à inclusividade social.
Para aumentar o impacto do Alfama Living Lab, foi desenvolvida a Alfama Toolkit, uma ferramenta de informação geográfica composta por três módulos: Mapear, Experimentar e Contar. A SÃO VICENTE CÁ FORA é descrita em pormenor no módulo Experimentar e as conversas de bairro com residentes e outros atores locais que participaram na atividade foram reunidas no módulo Contar.
Devido à pandemia, foram enfrentados vários desafios que obrigaram o projeto a adaptar o seu programa. As condicionantes ao número de pessoas que poderiam participar diretamente nas atividades organizadas presencialmente obrigaram a repensar a forma de comunicação e divulgação, intensificando a sua disseminação através de vídeos e nas redes socais.
Em suma, a atividade foi uma oportunidade para aumentar a consciência da comunidade local sobre a reutilização de materiais, energia sustentável e mobilidade e novas utilizações para espaços públicos. Foi também uma experiência muito gratificante na exploração de novas formas de ativar a ligação entre inovação, criatividade e sustentabilidade.
Próximos passos
Estamos a dar continuidade a esta linha de trabalho na cidade de Lisboa e nos seus bairros históricos, aprofundando esta abordagem de “missões” para a ação climática. Procuramos soluções que contribuam para ultrapassar alguns dos estrangulamentos identificados, através da criação de estruturas de governação intersectoriais, de iniciativas participadas e envolvendo proativamente as comunidades e fazendo pontes entre o mercado, os atores e governos locais e os cidadãos.
Os modelos de governação e de operacionalização do Alfama Living Lab estão a evoluir para dar forma ao novo hub local de Alfama e Mouraria, que será desenvolvido no âmbito do projeto europeu HUB-IN. Este hub local será uma infraestrutura mais consolidada que irá funcionar como um nó operacional do ecossistema de inovação climática de Lisboa e que, durante os próximos meses, irá divulgar o seu Roteiro e respetivo Plano de Ação.
Este artigo foi originalmente publicado na edição de Janeiro/Fevereiro/Março de 2022 da Smart Cities.