É o objectivo derradeiro de qualquer pessoa: ser feliz. Alcançar esse feito depende de muitos factores e de um tanto ou quanto de sorte. E depende também do local onde vivemos. No sentido de compreender o impacto do ambiente urbano na nossa felicidade, desenvolvem-se, por todo o mundo, estudos, criam-se institutos, geram-se debates e cimeiras em torno do tema. E os especialistas chegam cada vez mais à conclusão de que o segredo para a “cidade feliz” está essencialmente ligado às pessoas, ao seu bem-estar e qualidade de vida.

 

Cada vez mais na moda e na ordem do dia dos objectivos sociais e até económicos dos países, o tema “cidades felizes” é hoje investigado e discutido por todo o mundo, gerando congressos, estudos, colóquios e rankings com indicadores chave para aferir quais são as cidades mais felizes e o que estas fazem para o conseguir. A Dinamarca conta com o Instituto de Pesquisa da Felicidade; o Butão criou o conceito de Felicidade Interna Bruta; Portugal é um dos co-fundadores da Coligação Global para a Felicidade; a Inglaterra faz o Índices de Lugares Prósperos; a cimeira internacional Cidades Felizes vai já para a sua terceira edição; o Brasil está a organizar um mega-evento dedicado ao tema; no ano passado, foi assinada a Declaração das Cidades Felizes; o Dubai tem uma Happiness Agenda; e tanto mais que está a ser desenvolvido para que as cidades e as pessoas sejam cada vez mais felizes. Nesta panóplia de iniciativas, estabelecem-se pilares essenciais, SEO atribuídos domínios, e cada nação aprimora os seus requisitos, mas todos têm levado ao mesmo fim: os seres humanos!

Receitas para a felicidade urbana

Chegados ao consenso de que os habitantes são o elemento principal nesta aferição, cada entidade tem vindo a enumerar factores que considera essenciais numa cidade para que os seus cidadãos sejam felizes, existindo princípios transversais aos mesmos, como a saúde, a segurança, a paz, um ambiente despoluído, boa mobilidade e acessibilidade, o tempo disponível de cada indivíduo, cultura e sociabilização… Na edição do ano passado da Happy Cities Summit, que teve lugar em Andhra Pradesh, na Índia, foram anunciados os seis pilares de felicidade a servir de estrutura para a Declaração das Cidades Felizes: ambiente construído, governação, ambiente natural, economia e meios de subsistência, cultura e comunidade e bem-estar físico e mental.

O assunto não escapa à temática das cidades inteligentes. “O desafio das smart cities tem originado abordagens muito distintas com um nível de complexidade tal que ainda hoje é um tema difícil de entender e de gerar consensos”, diz Jorge Saraiva, presidente da Rede Europeia de Laboratórios Políticos (uma iniciativa da European Innovation Partnership on Smart Cities and Communities). Ainda assim, quando nos afastamos do determinismo tecnológico a que o termo costuma estar associado, uma visão humanística rapidamente nos leva para perto das noções de felicidade e bem-estar. “O que querem as pessoas das cidades? A resposta mais consensual é também a mais óbvia: as pessoas querem ser felizes! O êxodo das multidões para centros urbanos que se vai acentuar durante as próximas décadas deve-se à crescente sensação de que as pessoas são mais felizes nas cidades. As cidades têm uma oferta cultural superior e muito diversa”, explica.

Felizes nas cidades

Então, o que deve existir ou ser alterado numa cidade para tornar os seus cidadãos mais felizes? Para a investigadora britânica Jessica Pykett, a cidade deve “proporcionar as condições para um trabalho decente, seguro e valorizado, salários dignos, oportunidades de aprendizagem, acesso a espaços verdes e ambientes saudáveis, fortes níveis de confiança nas estruturas de governo, redes e actividades de apoio social e oportunidades de fazer escolhas autónomas e de expressão cultural”. Todos estes critérios são reconhecidos internacionalmente como elementos importantes na formação de cidades mais felizes. Mas, para esta especialista em Geografia Humana da Universidade de Birmingham, a busca de critérios não é tão linear. Por exemplo, o “Índice de Lugares Prósperos”, elaborado pela organização britânica Happy City, reúne mais de 60 critérios para aferir se as cidades são mais ou menos felizes, apresentando uma nova forma de ver os pontos fortes e os desafios do lugar onde as pessoas vivem, que mostra se as condições existem para que as pessoas prosperem de uma maneira justa e sustentável. Da sustentabilidade à igualdade ou às condições locais, vários critérios são atribuídos para que se consiga chegar aos “valores” de felicidade em cada sítio e, assim, obter um ranking.

“Muitos factores contribuem para que a população de uma cidade em particular se sinta ‘mais feliz’ do que as de outra. Normalmente, as medidas de felicidade referem-se ao bem-estar subjectivo de uma amostra da população da cidade que respondeu a uma pesquisa sobre o quanto se sente feliz numa escala de 0 a 10. Embora existam muitas limitações para essa abordagem, elas podem fornecer uma rápida descrição de como a felicidade experimentada pelas pessoas nas cidades se compara entre si. Factores que, muitas vezes, dizem contribuir para diferenças na felicidade entre lugares incluem rendimento, desemprego, desigualdade. Esses factores interagem com as características demográficas (idade, sexo, etnia, saúde, religião, ser casado ou solteiro), por isso, os pesquisadores devem ter o cuidado de levar isso em conta nas suas análises. Há também efeitos específicos baseados no local, pelos quais estar num bairro com características particulares pode exacerbar ou reduzir os efeitos da renda e desemprego nos níveis expressos de felicidade das pessoas. Ainda estamos nos primeiros estágios do desenvolvimento de medidas confiáveis para a felicidade e, no futuro, há a esperança de que medidas de base comunitária (e não individualizadas) e qualitativas possam começar a pintar uma imagem mais saudável de quem é feliz, onde e porquê”. O próprio Happy City Index, levado também a cabo pela entidade Happy City de Bristol, utiliza as categorias trabalho, saúde, educação, lugar e comunidade nas suas investigações anuais, encaixando cada uma delas nos três referidos temas: igualdade, sustentabilidade e condições da cidade. Sendo que, posteriormente, aufere parâmetros tão específicos como mortalidade e esperança de vida, educação das crianças e qualificação dos adultos, qualidade de trabalho, saúde mental, entre outros.

Cidades tecnológicas ou cidades sociais e humanizadas?

É um título que todos nós gostaríamos de atribuir ao local onde vivemos: cidade feliz. Ou será, antes, uma aspiração dos cidadãos, a de sermos felizes na nossa cidade do dia-a-dia? Mas o que é verdadeiramente uma cidade feliz? Um local com cidadãos felizes?

Estudos, inquéritos, congressos, fundações, institutos dedicam-se cada vez mais a este tema e surgem como cogumelos na procura da aspirada felicidade, mas o que é que se pretende numa cidade para ser feliz? Saúde, segurança, paz, ambiente despoluído, boa mobilidade e acessibilidade, tempo… surgem como “medidas”. E falaremos de qualidade de vida, de bem-estar ou de felicidade? Como tem vindo a ser defendido, segundo estudos e especialistas, a felicidade nas cidades são as pessoas. De facto, no Hexágono das Cidades Inteligentes, desenvolvido pelo Happy Citizen Design, Boyd Cohen – que foi também o autor da “Roda das Cidades Inteligentes” – e Rob Adams reúnem todo um conjunto de parâmetros: segurança e saúde, mobilidade e acessibilidade, limpeza e ecologia, prosperidade partilhada, relações sociais, cultura e orgulho cívico. Serão esses requisitos essenciais para preencher a total satisfação dos cidadãos? Serão os parâmetros necessários, explicando porque somos felizes na cidade que nos acolhe? Até à data têm sido, pois encontram-se na maioria dos estudos, inquéritos e afins.

Deverá, então, ser a felicidade das pessoas um parâmetro de medição ou a infra-estrutura,  as condições, o bem-estar, etc.? Para Jessica Pykett, que é também co-autora do livro Neuroliberalismo: governo comportamental no século XXI, “as condições para o bem-estar são os factores mais importantes na formação da felicidade. Há muito cepticismo sobre a busca da felicidade como um fim em si mesmo, e esse não é um objectivo culturalmente universal. Há muitos outros propósitos e maneiras de obter uma vida significativa, agradável e boa, e estes devem estar sempre abertos ao debate”.

Já o urbanista Pedro Ribeiro da Silva defende que “há, actualmente, a procura da felicidade desencontrada na cidade. Eternamente desencontrada, porque a cidade não foi concebida para a felicidade, mas para a paixão”. O especialista escolhe o termo “concebida” porque, no seu entender, “a cidade não se constrói, concebe-se. A cidade é um desígnio, não um desenho. Se qualquer um de nós visitasse uma cidade de habitantes todos sorridentes, a passearem-se e a cumprimentarem-se, jornal ou iPad na mão, esplanadas cheias de pessoas com ar de estarem todas bem com a vida que levam, olhando os meninos que brincam na praça perante os seus olhares, sempre protegidos até ao ir para a escola no banco de trás do carros dos pais, as casas todas pintadas e recuperadas com cores alegres e felizes, os centros comerciais com temperaturas sempre moderadas, reproduzindo a primavera mesmo em pleno Inverno, pergunto-me se não acharíamos que esta cidade era feita de gente e pessoas onde a tontice predominaria. Pergunto-me se gostaríamos de viver numa cidade assim?”.

Porque é que somos felizes na nossa cidade?

O Happiness Research Institute, na Dinamarca, mede o bem-estar e a qualidade de vida segundo directrizes de medição da OCDE e da ONU, combinando métodos qualitativos e quantitativos para conseguir dados sobre o nível de bem-estar, felicidade e qualidade de vida. “Quer estejamos a medir a felicidade, quer estejamos a medir o bem-estar ou a qualidade de vida, enfrentamos os mesmos desafios. Eles são todos conceitos complexos. Portanto, precisamos de analisar diferentes componentes. Assim como quando examinamos como a economia está a desenvolver-se, podemos olhar para o PIB per capita, crescimento, desemprego, inflação e taxas de juros. Cada indicador dá-nos informações sobre o status da economia. Da mesma forma, quando medimos a qualidade de vida, podemos examinar diferentes dimensões, como a dimensão cognitiva, a afectiva e a eudaimónica”, referem. Assim sendo, a dimensão cognitiva foca-se na satisfação geral da vida e é o indicador que serve de base a muitos rankings internacionais, como o World Happiness Report. Por seu lado, a dimensão afectiva concentra-se, sobretudo, no género de emoções – positivas e negativas – que as pessoas experimentam diariamente, como alegria, preocupação e stress. Já a dimensão eudamónica baseia-se na percepção de Aristóteles da boa vida e, assim, concentra-se no propósito e no significado.

O capítulo “Happy Cities Agenda” do Global Happiness and Well-Being Policy Report de 2019, participado por vários especialistas dos quatro cantos do planeta, tem como propósito analisar “como criar e manter uma cidade feliz. Considera a tecnologia como um facilitador de acção, em vez de um foco central de trabalho. A pesquisa baseia-se num conjunto diversificado de exemplos de cidades em todo o mundo. Este capítulo enfatiza alguns fundamentos e conceitos, como a noção de uma cidade inteligente para ser aquele que é ‘socialmente inteligente’, onde o foco é na manutenção da eficiência e sustentabilidade em alcançar a felicidade”.

Este capítulo elabora dois conjuntos de temas, apresentados sob a forma de uma ferramenta para os fabricantes da cidade. “O primeiro conjunto de temas aborda como a felicidade está associada ao design de uma cidade – em termos de processos físicos, e fluxo que formam o tecido mais tangível da cidade. O segundo conjunto apresenta os facilitadores de felicidade na cidade, que são frequentemente associadas com os resultados das acções e políticas”. O relatório reforça o que mundialmente está dado como importante para uma cidade feliz: design e planeamento urbano em espaço e lugar conectados, o contacto com a natureza influencia positivamente o bem-estar, a mobilidade numa cidade é crítica para o seu valor, a sustentabilidade e a parceria levam à mudança sustentável e à melhoria do bem-estar, a cultura dá um valioso sentido de singularidade e significado à própria cidade, e a qualidade de serviço é importante para facilitar e tornar acessíveis os serviços a todas as pessoas! Ao mesmo tempo, segundo este mesmo estudo, alcançar a felicidade nas cidades também depende: da confiança, um aspecto chave do bem-estar que pode ser ganho pelo compromisso e transparência; da segurança, uma necessidade fundamental que é um requisito básico de bem-estar; da acessibilidade, já que a falta de habitação a preços acessíveis é um maior detractor da felicidade; da tolerância e inclusão social e económica como bem-estar e valor económico e ético; do equilíbrio da saúde e da vida, numa visão holística da cidade e actividades que promovem equilíbrio e a saúde mental; da socialidade, uma vez que as pessoas precisam de pessoas e maneiras para aumentar e melhorar as relações com outras pessoas; da economia e competências, sendo a principal razão para as pessoas se mudarem para uma cidade a oportunidade económica, incluindo a educação e aprendizagem contínua; do significado e pertença, visto que as pessoas precisam de um sentido e de significado e coerência nas suas vidas, incluindo um sentido de propósito e pertença.

O que nos traz a felicidade

“São inúmeras as vantagens das pessoas felizes face às demais”, explica Jorge Saraiva. “As pessoas felizes são mais resilientes, recuperam de doenças e de situações difíceis muito mais rapidamente do que as restantes, vivem mais tempo. São também mais produtivas e desenvolvem carreiras mais bem sucedidas dos que as pessoas amarguradas e depressivas. Existe ainda uma correlação directa entre os níveis de felicidade de uma sociedade, o crescimento económico e a capacidade de gerar riqueza. Quando se fala de resiliência nas cidades, de desenvolvimento urbano e crescimento económico, na sua génese, está a cidade feliz”. E continua: “a ciência explica a felicidade através da libertação da serotonina, também conhecida como a ‘molécula da felicidade’. Seguindo esta linha científica, surge a grande questão: em que situação o ser humano mais liberta serotonina? A resposta é tanto surpreendente como orientadora: uma pessoa liberta mais serotonina quando está a desenvolver uma relação social ou de interacção com outras pessoas. Em suma, felicidade é uma acção derivada de um acto social! Por isso é que, diariamente, três milhões de pessoas se mudam para os centros urbanos, na expectativa de serem mais felizes porque vão ter mais interacções sociais. Desta forma, o principal pilar para uma cidade feliz é aproximar as pessoas que nela vivem! Da interacção social entre as pessoas nasce a co-criação e uma alteração de comportamentos urbanos capazes de desenvolver um ecossistema mais sustentável”.

Quando Jorge Saraiva desenvolveu o projecto Smart.London, este foi o seu foco. “Se pretendemos desenvolver uma cidade mais inteligente, devemos começar por entender o ADN da cidade e desenvolver o sentido comunitário em torno dessa génese”. Por exemplo, “Londres caracteriza-se pela sua diversidade e é aí que reside o seu ADN e a sua oportunidade de desenvolvimento smart – entendendo-se como desenvolvimento smart uma acção com impacto social, ambiental, governamental e económico”.

Por sua vez, na sua Happiness Agenda, o Dubai defende a parangona de que “o trabalho mais importante a desenvolver por uma cidade é assegurar a felicidade dos seus residentes e visitantes”. Este emirado desenvolveu um índice de felicidade aliado à estratégia inteligente, dizendo-se como a cidade mais feliz do planeta. Será?!

No Hexógono das Cidades Inteligentes, defende-se que “as cidades devem ser concebidas à volta da felicidade e não da tecnologia ou da eficiência”. Boyd Cohen e Rob Adams dizem acreditar “na co-criação de espaços para o cidadão divertidos, envolventes e felizes, um projecto de cada vez, um bairro de cada vez para tornar o mundo um lugar feliz novamente”. Conseguiremos?!