Governo regista quase uma centena de processos certificados e empresas têm projetos em preparação por todo o país. Especialistas pedem menos burocracia e mais informação aos cidadãos e entidades interessadas.

O número de comunidades de energia renovável e de autoconsumo está a acelerar em Portugal, sinal de que há cada vez mais cidadãos, municípios, instituições particulares e empresas a organizarem-se para terem nas suas mãos a produção e consumo de energia elétrica, partilhando investimentos e fazendo baixar os custos da fatura face ao mercado regulado.

De acordo com o Ministério do Ambiente e da Ação Climática (MAAC), “até ao final de 2023, estavam ativos 791 processos de licenciamento, 775 dos quais relativos a autoconsumo coletivo (ACC) e 16 a Comunidades de Energia Renovável (CER). Do total, 85 encontravam-se certificados, isto é, em condições de iniciar a operação ou em operação”. Nessa altura, “434 processos encontravam-se com o registo concluído, tendo neste caso os promotores os projetos em desenvolvimento”.

Há um ano, havia quatro destas comunidades ou autoconsumos em operação no país, tendo sido submetidos 372 processos para licenciamento.

Desde 2020 que estes sistemas estão previstos na legislação (decreto-lei162/2019, de 25 de outubro) e, na revisão do Plano Nacional de Energia e Clima 2030, estão até definidas metas. Mais concretamente, “atingir 5,5 GW de potência fotovoltaica descentralizada, maioritariamente em autoconsumo, não tendo sido estabelecidos objetivos específicos para ACC e CER”, refere o MAAC, sem, no entanto, adiantar a que potência instalada correspondem os 85 projetos em condições de operar ou já em funcionamento.

Para Pedro Amaral Jorge, presidente da direção da Associação Portuguesa de Energias Renováveis (APREN), as comunidades de energia são “um ativo para ter um aumento da eficiência energética a partir de fontes de energia renovável”. Mas, considera, é “preciso simplificar o enquadramento jurídico, para que se possa mais rapidamente criar estas comunidades”. Há, também, “outras restrições, oriundas de outra legislação fora da área da energia, que precisam de ser adaptadas”, como é o caso da “gestão de condomínios ou espaços industriais”.

Para que estas comunidades funcionem bem, diz, é ainda preciso ter em atenção “como é feita a divisão clara da eletricidade entre os seus membros e, na eventualidade de entradas e saídas”, como se salvaguardam os restantes membros.

Olhando para os dados atuais, o presidente da APREN está confiante: “podemos claramente perceber que iremos alcançar esses 5,5 GW de potência distribuída para autoconsumo”, o que contribuirá para que o país atinja os 85% de energia renovável a que se propôs. Neste aspeto, os números são animadores. “Em 2023 houve uma incorporação de 70% de energia renovável na eletricidade e, em janeiro chegamos aos 80%, dadas as condições climatéricas favoráveis”.

Balcões para dar informação

Ana Rita Antunes, da Cooperativa de Desenvolvimento Sustentável Coopérnico, a única cooperativa que comercializa energia elétrica em todo o país, também diz que ainda há trabalho a fazer para capacitar as pessoas e potenciar a criação deste tipo de comunidades.

Segundo a coordenadora executiva, “falta uma entidade pública que faça esse papel em todo o país e de forma estruturada”, com balcões, para que “qualquer cidadão que queira começar a sua comunidade de energia o possa fazer”, pois encontraria num só espaço informação sobre como formar uma entidade jurídica e começar uma destas comunidades.

Para além disso, falta a desburocratização de todo o processo de como começar um processo de autoconsumo coletivo. “Se a DGEG tem poucos meios técnicos e humanos para dar vazão à quantidade de pedidos que estão a chegar, então é preciso simplificar estes processos”, acrescenta Ana Rita Antunes.

A Coopérnico tem, atualmente, mais de 2 Mw instalados em mais de 30 sistemas fotovoltaicos diferentes espalhados por todo o país, que permitem abastecer nove mil famílias. Apenas um é um autoconsumo coletivo e está localizado na Câmara de Ílhavo.

A entrada em funcionamento desta Unidade de Produção para Autoconsumo Coletivo da Câmara de Ílhavo aconteceu no final de setembro do ano passado. Foi a primeira de âmbito municipal aprovada pela Direção-Geral de Energia e Geologia (DGEG) e surgiu no âmbito do projeto Comunidade de energia Solar com integração de veículos elétricos – COMSOLVE.

Os painéis foram instalados na cobertura do edifício dos paços do concelho, sendo a energia produzida distribuída entre o edifício dos paços do concelho, o do centro cultural municipal que fica ao lado e o abastecimento de um posto de carregamento de veículos elétricos, instalado junto ao mercado.

A durabilidade do projeto é de 25 anos, pelo que a poupança energética da autarquia deverá rondar cerca de 371 mil euros no final do projeto, o que representa uma diminuição de 1846 toneladas de dióxido de carbono. Como a produção anual estimada deverá ultrapassar as necessidades dos equipamentos municipais, o presidente da Câmara, João Campolargo, diz que, no futuro, a energia que não for consumida “poderá vir a ser libertada para a comunidade interessada”.

Projetos alastram pelo país

A Cleanwatts é um exemplo de como o setor já está a mexer. O responsável pelo Marketing e Strategic Business Development em Portugal, Rui Queiroga, diz que a empresa tem “mais de 200 projetos” com entidades para desenvolver unidades para autoconsumo por todo o país, que depois poderão partilhar energia com a comunidade envolvente. Estão em diferentes estados de desenvolvimento, mas no total terão uma capacidade de 73 Mw.

Em operação e a partilhar energia com outros membros há quatro. A primeira, em Miranda do Douro, com a Santa Casa da Misericórdia da localidade, foi inaugurada em 2021. O vice-provedor, Arménio Gomes, confirma que há poupança, ainda que “aquém” do que gostaria.

Em Albergaria-a-Velha, a instalação de 1340 painéis na Metalusa permitiu à indústria uma poupança de “40% nas contas de energia”, que antes rondavam os 4 mil euros, o que “aumenta a competitividade”, conta o diretor de operações e membro da direção executiva, José Amorim. O investimento foi suportado pela Cleanwatts, tendo entrado em funcionamento no verão passado. Aguardam agora autorização para venderem a energia excedente à comunidade.

A obtenção de licenciamentos “não tem sido célere”, mas, diz Rui Queiroga, tem havido “sinais, no último mês, mês e meio, de maior aceleração nas aprovações”. Tem, por isso, esperança que 2024 “seja um ano decisivo para que as coisas verdadeiramente funcionem”. Há um potencial “enorme” neste tipo de projetos e há estimativas que “apontam para que 40 a 50% da produção possa estar descentralizada”, acrescenta.

Segundo Queiroga, estas comunidades poderão apoiar populações, indústrias, pequenas e médias empresas, ou seja, as mais diversas entidades, no processo de descarbonização. Existem diferentes modelos de desenvolvimento: projetos em que é a empresa a fazer os investimentos, outras em que uma entidade faz o investimento para autoconsumo e depois vende a energia restante a membros que se queiram associar, entre outros.

Também Rui Queiroga entende que há “trabalho de literacia energética a desenvolver com as pessoas, para perceberem melhor como são parte ativa do seu próprio consumo”. “Sabem quanto pagam ao fim do mês, pouco sabem sobre como ir buscar condições mais favoráveis e sobre as CER”.

Licenciamento influencia ritmo

Em Ovar, há projetos a avançar. A Santa Casa da Misericórdia de Ovar e a empresa Sustainable Energy Systems (SES) uniram-se para avançar com a construção de uma central fotovoltaica (2100 módulos) em terrenos da instituição social, na Cova do Frade. A ideia é produzir energia que poderá ser usada pela Misericórdia e por pessoas que queiram aderir à comunidade de energia, beneficiando de preços de eletricidade mais baixos do que os do mercado.

Em novembro de 2023, quando anunciaram o projeto, a empresa esperava iniciar a obra em janeiro deste ano, mas ainda aguarda o licenciamento por parte da DGEG. “A nossa expectativa era a central ser construída no primeiro semestre deste ano, mas este atraso no licenciamento pode condicionar a planificação efetuada”, explicou Paulo Silva, administrador executivo da SES.

A central, que custará à empresa entre 800 e 900 mil euros, terá uma produção de cerca de 1,8 milhões de KW/ano, capaz de alimentar até 453 famílias. Evitará, igualmente, a emissão de 843 toneladas de CO2 por ano, o equivalente à plantação de cerca de 5.904 árvores.

Para além dos edifícios da Misericórdia, poderão beneficiar consumidores de âmbito residencial, comercial ou industrial, que estejam num raio de quatro quilómetros. Estima-se que os membros consigam “uma poupança média entre 25 e 30% da energia consumida da Comunidade”, concretiza Paulo Silva.

Painéis solares no Estádio D. Afonso Henriques dão um sinal visível da CER instalada

A SES, acrescenta o administrador, tem vários projetos a aguardar licenciamento e outros em construção. Também tem alguns já em funcionamento, como é o caso do projeto do clube desportivo Vitória de Guimarães, inaugurado em dezembro. “Em breve serão apresentadas duas novas comunidades de energia, uma no Centro, em Cantanhede, e uma outra em Portimão, no Algarve. O ritmo será muito influenciado pela capacidade de licenciamento, estando a SES focada em cumprir o objetivo de alavancar 50 MW em Comunidade de Energia”, finaliza Paulo Silva.

Plataforma para poupar tempo e esforço

Para auxiliar no desenvolvimento de projetos de energia comunitária, foi apresentada, em julho do ano passado, uma plataforma online (Energy Community Platform) desenvolvida por investigadores do Instituto de Ciência e Inovação em Engenharia Mecânica e Engenharia Industrial (INEGI), no Porto, no âmbito do projeto europeu COME RES. Lá se encontram ferramentas para apoiar os projetos nas várias fases, uma rede de especialistas para quem precisar de ajuda profissional, um mapa com comunidades de energia em toda a Europa e um Teste de Sustentabilidade que permite avaliar os benefícios ambientais, sociais e económicos de cada comunidade.

Em comunicado, a investigadora responsável, Isabel Azevedo, explicava que a plataforma pretende “reduzir o tempo e esforço necessário para promover projetos de instalações de energia renovável e comunitária”.

Energia a partir de resíduos dá vantagens a municípios do norte

A Lipor, responsável pelo tratamento dos resíduos urbanos de vários municípios do norte do país, anunciou recentemente que vai avançar com uma Comunidade Energética, partilhando energia elétrica produzida a partir da valorização de resíduos na sua central.

Mas o aproveitamento energético a partir de resíduos não é novo na empresa. De acordo com José Manuel Ribeiro, presidente do Conselho de Administração da LIPOR, a Central de Valorização Energética, na Maia, recebe desde 2000 o lixo que não pode ser aproveitado por processos de compostagem e reciclagem, produzindo, através de um processo de queima controlada, vapor de água que vai gerar eletricidade numa turbina. A capacidade de tratamento ascende às 380 mil toneladas de resíduos por ano (à volta de 1100 toneladas de resíduos por dia) e traduz-se em 170 mil MWh de energia elétrica por ano. Cerca de 90% dessa energia – o equivalente ao necessário para abastecer um aglomerado populacional da ordem de 150 mil habitantes – é injetada na rede pública.

Atualmente a empresa está a tratar das burocracias necessárias junto das autoridades licenciadoras para criar a nova Comunidade Energética Intermunicipal, prevendo-se que “entre em funcionamento no final do presente ano”, explica José Manuel Ribeiro.

Inicialmente produzirá cerca de 170 GWh (gigawatt hora), que poderá ser adquirida pelos parceiros “a um custo mais baixo do que se fosse adquirida no Mercado Normal (Regulado e Livre)”, diz o responsável da Lipor. A eletricidade irá chegar a milhares de “pontos de ligação”, servindo atividades tão diversas como a iluminação pública, pavilhões desportivos, piscinas, paços do concelho, escolas, hospitais, lares e outros equipamentos.

Nesta fase, apenas será para os parceiros, que incluem, para além da Lipor, as câmaras de Gondomar, Maia, Matosinhos, Porto, Póvoa de Varzim, Valongo, Vila do Conde, Trofa, Santo Tirso e Paredes e diversas instituições, como a administração dos Portos do Douro, Leixões e Viana do Castelo, entre outros. Estão em fase de adesão o Centro Hospitalar e Universitário de São João e os STCP (Porto). A Lipor não exclui que, numa fase posterior, possam aderir outros parceiros e particulares, até porque têm recebido “várias manifestações de interesse”.

Para além da atividade “core“, acrescenta ainda José Manuel Ribeiro, esta Comunidade Energética Intermunicipal pretende desenvolver dois projetos, concretamente “Programas de Eficiência Energética a implementar em equipamentos propriedade ou geridos pelos participantes na Comunidade” e “um programa de combate coordenado contra a pobreza energética na região”.

Este artigo foi originalmente publicado na edição nº 42 da Smart Cities – Janeiro/Fevereiro/Março 2024, aqui com as devidas adaptações.